Há alguns aspectos curiosos. Por exemplo: saltando à vista, existe um certo cientificismo, a que se alia um forte academicismo. O primeiro aspecto acaba sendo um pouco inevitável, haja vista que o livro é uma defesa da ciência, de seus métodos e de seus resultados; já o segundo aspecto é bem menos inevitável, embora largamente (em particular desde os anos 1960-1970) o academicismo seja entendido como sinônimo, quando não substituto, do cientificismo.
(O verbete que abre o livro, dedicado à Academia Brasileira de Ciências devido à ordem alfabética dos temas, é exemplar tanto do cientificismo quanto do academicismo. Mas, enfim, talvez esses dois defeitos fossem inevitáveis no livro em geral e nesse verbete em particular; de qualquer maneira, outros verbetes não apresentam esses problemas.)
Mas, enfim, dois outros aspectos chamam em particular a atenção no livro. O primeiro é a variedade, a profundidade e o caráter absolutamente retrógrado (e não meramente reacionário ou conservador) dos negacionismos atuais. Em séculos anteriores a Humanidade presenciou vários negacionismos, sempre a partir de motivos "religiosos" e/ou "ideológicos": a perseguição contra Galileu é exemplar, mas também as ciências identitárias "ariana" de Hitler e "proletária" de Stálin. Nesses casos, o que estava em questão eram concepções filosóficas que tinham consequências políticas e sociais muito diretas. Os negacionaismos atuais também se referem a concepções filosóficas, mas ampliaram-se para questões científicas substantivas, com consequências econômicas, ambientais e até clínicas muito mais amplas que aquelas "apenas" sociais e políticas: o negacionismo climático e o negacionismo vacínico são dois exemplos imediatos que temos visto e vivido nos últimos anos.
O segundo aspecto que chama a atenção é a inclusão, como alvo dos negacionismos, de posturas filosóficas, "narrativas" acadêmicas e "interpretações" alinhadas ao pós-modernismo (como os verbetes dedicados à política identitária e também às "teorias queers"). A inclusão desses verbetes chama a atenção porque, embora sejam alvo dos negacionismos, essas "interpretações", essas "narrativas", essas "teorias" são, elas mesmas, radicalmente anticientíficas (embora sejam profundamente academicistas). Em outras palavras, são - como dizer? - "práticas acadêmicas" que negam, por princípio, a ciência; que rejeitam a concepção de uma realidade objetiva, mais ou menos independente da vontade e da subjetividade humana; que rejeitam a possibilidade de investigação objetiva dessa realidade; que rejeitam a possibilidade de acordo racional e bem intencionado entre as pessoas a respeito dessa objetividade e dessa investigação objetiva. Tudo ao contrário: essas "práticas acadêmicas" entendem que há apenas subjetividades; que há apenas "narrativas"; que essas "narrativas" são sempre particulares e particularizantes; que não há objetividade (na verdade, a objetividade seria um mito ocidental, "branco", "macho", falocêntrico, burguês e qualquer outro adjetivo que esteja à disposição como xingamento ressentido); que não há acordo entre as pessoas, mas apenas lutas, conflitos e dominações (mais ou menos temporárias). Mas, ao mesmo tempo em que são radicalmente anticientíficas - de modo que, por qualquer parâmetro, a elas dever-se-ia aplicar o adjetivo de "negacionistas" -, elas são profundamente academicistas, ou seja, são práticas realizadas por pessoas que vivem nas e das universidades e que fazem questão de viver em ambientes ultraintelectualistas (de preferência, mas é claro que não somente, nos Estados Unidos, embora esse país seja a atual pátria do capitalismo) e que também fazem questão de divertir-se passeando e ganhando dinheiro em amplos circuitos internacionais de palestras.
Surge então a pergunta: se essas "práticas acadêmicas" são negacionistas, por que elas foram incluídas em um livro que denuncia os negacionismos? Eu sugiro dois ou três motivos. O primeiro é que essas "práticas acadêmicas" são negacionistas de esquerda: é o negacionismo de direita que atualmente tem causado os maiores danos. Em segundo lugar, como os negacionismos de direita criticam não apenas questões científicas mas também criticam os negacionismos de esquerda, estes últimos beneficiaram-se, como passageiros clandestinos, da crítica às posturas negacionistas de direita. Em terceiro lugar, os negacionismos de esquerda são academicistas: como o academicismo cada vez mais é o sinônimo, quando não o substituto, da cientificidade, novamente os negacionismos de esquerda beneficiam-se como passageiros clandestinos de algo que, em situações normais, não lhes seria oferecido.