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11 junho 2024

Síntese subjetiva e relativa como quarto estado

No dia 23 de São Paulo de 170 (11.6.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos uma questão central para o Positivismo e para todos os seres humanos: a noção de positividade filosófica, superior à mera positividade científica, como um quarto estado da lei dos três estados.

Antes do sermão comentamos alguns livros:

- Ascensão e reinado dos mamíferos, de Steve Brusatte

- A esquerda não é woke, de Susan Neiman

 A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/ArsP0) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/hmfvr).

A leitura comentada começou aos 48 min 05 s; o sermão começou a 1h 09 min 43 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas (e atualizadas) abaixo.

*   *   *

A síntese subjetiva como quarto estado

(23.São Paulo.170/11.6.2024) 

1.      A prédica de hoje trata de um assunto que é da maior importância para o Positivismo, isto é, para a Religião da Humanidade e, por extensão, para o ser humano, para o bem-estar público e para a felicidade individual

1.1.   Trata-se da incorporação da síntese subjetiva na lei dos três estados, ou melhor, da atualização da lei dos três estados em face da síntese subjetiva

1.2.   Essa atualização é importante porque corrige uma ambigüidade daninha presente desde o início da lei dos três estados

2.      Antes de passarmos à parte mais substantiva deste sermão, podemos responder a uma pequena dúvida que, por vezes, apresenta-se aos leitores de Augusto Comte (incluindo, evidentemente, os positivistas)

2.1.   A dúvida é a seguinte: devemos dizer “estados” ou “estágios”?

2.2.   A formulação de Augusto Comte é bem clara: ele usa “état”, ou seja, “estado”: é a “loi des trois états

2.3.   Mas se na formulação ele usa “estado”, em seus escritos ele não se apega a essa palavra, usando alternadamente “estado”, “estágio”, “fase”, “modo” etc.

2.3.1.     Os positivistas, da mesma forma, adotam essas várias palavras

2.4.   Para além da palavra consagrada no enunciado, o que evidentemente importava para Augusto Comte, conforme depreendemos de seus escritos, é que cada um dos estados descritos na lei dos três estados (1) representa um modo distinto de conceber e interpretar a realidade, (2) que segue uma determinada seqüência lógica e histórica em seu desenvolvimento

2.5.   Assim, na prática, podemos dizer que o enunciado deve ser feito com “estados” (por motivos de respeito e de uniformidade), mas que ao longo das exposições e das reflexões podemos usar sem maiores dificuldades as outras palavras

3.      A lei dos três estados a que nos referimos é a lei intelectual dos três estados

3.1.   Ela foi primeiramente enunciada em 1822, no texto, ou livro, chamado “Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade”

3.1.1.     Esse livro era chamado por Augusto Comte também de “opúsculo fundamental”

3.1.2.     Além disso, é popularmente conhecido apenas como “Reorganizar a sociedade”

3.1.3.     Ele teve uma reedição aumentada em 1824, em que Augusto Comte chamou-o – prematuramente, como ele mesmo depois reconheceu – de “Sistema depolítica positiva

3.2.   Ao apresentar a lei dos três estados, inserindo-a em uma reflexão histórica mais ampla, o “Reorganizar a sociedade” tem o mérito e a glória de ao mesmo tempo fundar a Sociologia e o Positivismo

3.3.   O enunciado dessa lei mudou com o passar do tempo, refletindo mudanças, ou melhor, a evolução das concepções de nosso mestre

3.4.   O enunciado final, “canônico”, é o que aparece no corpo da Filosofia Primeira, conforme publicado no Catecismo positivista:

3.4.1.     “Cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes”

3.4.2.     Vale lembrar que essa é a sétima lei do total de 15 leis da Filosofia Primeira; ela integra o segundo grupo de leis, “essencialmente subjetivo”, na sua segunda série, que compreende as leis dinâmicas do entendimento

3.4.3.     Essa segunda série apresenta as três leis dos três estados (intelectuais, afetivos e práticos)

3.5.   As idéias da lei intelectual dos três estados são bem claras:

3.5.1.     Toda concepção humana passa por três fases, ou seja, três modos de entender o mundo

3.5.2.     Esses três modos são, sucessivamente, o fictício, o abstrato e o positivo

3.5.2.1.           Insistamos: os modos são três, são sucessivos, são os indicados acima e desenvolvem-se nessa ordem

3.5.3.     A velocidade da passagem de um modo de conceber a realidade para outro varia de acordo com a generalidade objetiva de cada concepção, o que também equivale a dizer: conforme a generalidade subjetiva e o grau de complicação das concepções

4.      Pois bem: a ambigüidade que mais ou menos sempre se apresentou consiste, precisamente, no fato de que o estado positivo apresentava dois sentidos diferentes

4.1.   Esses dois sentidos são: (1) positivo como “científico” e (2) positivo como “filosófico”

4.2.   O sentido “científico” foi o que primeiro apresentou-se a Augusto Comte, refletindo o desenvolvimento das ciências; ele opõe-se de maneira bastante clara à teologia e à metafísica

4.3.   O sentido “filosófico”, nas primeiras formulações, não estava muito evidente – o que, é importante enfatizar, não significa que não se apresentasse de maneira nenhuma –, mas, à medida que nosso mestre desenvolveu sua obra, a importância da síntese filosófica foi evidenciando-se cada vez mais

4.4.   Assim, nas formulações iniciais – ou seja, nos opúsculos de juventude (como o “Reorganizar a sociedade”, de 1822-1824) e ao longo dos cinco primeiros volumes da Filosofia positiva (de um total de seis) (1830-1841) –, Augusto Comte afirmava ao mesmo tempo, a importância da cientificidade (usando, para isso, a lei dos três estados como apoio) e a necessidade de concepções gerais, sintéticas e francamente relativas

4.4.1.     A necessidade das concepções gerais, sintéticas e relativas era afirmada em conjunto com a cientificidade, mas ela não era plena e conscientemente integrada à lei dos três estados, que se limitava assim, em seu enunciado, ao positivo como cientificidade

4.5.   Conforme nosso mestre disse em carta ao dr. Audiffrent de 15 de Homero de 69 (12 de fevereiro de 1857), apenas a partir do último volume da Filosofia positiva (1842) é que o enunciado, ou melhor, que o sentido pura ou predominantemente científico na lei dos três estados mudou

4.6.   O relacionamento com Clotilde permitiu que Augusto Comte mudasse claramente o sentido, assumindo então que a positividade não pode ser apenas a cientificidade, mas deve ser, ainda mais, o aspecto sintético, subjetivo e relativo

4.7.   A Religião da Humanidade, proposta no Discurso sobre o conjunto do Positivismo (1848), fundada plenamente na Política positiva (1851-1854) e aprofundada na Síntese subjetiva (1856) consagrou definitivamente o sentido pleno da positividade, isto é, como síntese filosófica, relativa e subjetiva

5.      Pois bem: o ano de 1857 foi dedicado por Augusto Comte para reflexão e amadurecimento filosófico, preparando-se para a redação dos volumes seguintes da Síntese subjetiva

5.1.   No âmbito dessas reflexões, em conversas epistolares com seus discípulos, Augusto Comte apresentava e desenvolvia suas novas concepções

5.2.   Na já mencionada carta ao dr. Audiffrent, de 15 de Homero de 69 (12 de fevereiro de 1857), nosso mestre formaliza a concepção de positividade presente na lei intelectual dos três estados, desdobrando-a em uma lei dos quatro estados

5.2.1.     A positividade, assim, assume duas fases sucessivas: uma preparatória, a científica, e a outra verdadeiramente definitiva, a filosófica

5.2.2.     Além do aspecto filosófico, explicitamente ao mesmo tempo sintético, relativo e subjetivo, Augusto Comte indica que a verdadeira positividade exige que a utilidade seja claramente acrescida à realidade das concepções

5.2.2.1.           A mera realidade pode resultar – e, como sabemos, com freqüência resulta – no absolutismo científico

5.2.2.2.           Por outro lado, o pleno e conseqüente emprego da utilidade resulta em que é possível, e necessário, que criemos concepções que sejam fictícias mas úteis

5.2.2.2.1.                O critério da realidade não é final, mas não pode ser desprezado; assim, as ficções positivas, sem se limitarem à realidade, não podem negar as concepções reais

5.2.2.2.2.                Evidentemente, a subjetividade tem um largo papel aí, seja na forma da imaginação artística, seja na incorporação do fetichismo à positividade

5.2.2.2.3.                Isso tudo resulta em que, por um lado, as utopias positivas podem ser desenvolvidas com plena positividade e que, por outro lado, mesmo as concepções científicas abrem-se plenamente para enunciados simpáticos, isto é, ao mesmo tempo altruístas e artísticos

5.3.   Ao distinguir a positividade científica (que é preparatória e, portanto, provisória) da positividade plena, que é filosófica, nosso mestre também distingue a verdadeira positividade do mero cientificismo (e, por extensão, também do academicismo)

5.4.   Eis como Augusto Comte caracteriza cada um dos quatro estados:

5.4.1.      Teológico: provisório

5.4.2.      Metafísico: transitório

5.4.3.      Científico: preparatório

5.4.4.      Positivo (filosófico): definitivo

5.5.   Comentário estritamente pessoal: no fundo, podemos talvez considerar que o novo enunciado estabelece uma leis dos “dois estados”, indicando a gigantesca transição do absolutismo para o relativismo

5.5.1.     Ou, quem sabe, considerando a transição do absolutismo para o relativismo, uma outra lei dos três estados: fetichismo, teologia/metafísica, positividade

5.6.   Comentário feito pelo nosso amigo Hernani na tarde de hoje (23.São Paulo.170/11.6.2024), a título de auxílio para esta prédica:

“A caracterização intelectual da síntese subjetiva foi feita por Augusto Comte em suas últimas reflexões tomando por base dois pares de conceitos. A síntese positiva é (1) demonstrável e discutível e (2) relativa e subjetiva. Ora, com base apenas nessa dupla caracterização torna-se fácil justificar a lei dos três estados com o acréscimo de uma quarta fase, bastando decompor o estado metafísico em seus dois pólos opostos (o espiritualismo e o materialismo). Basta realizar a seguinte operação: ao teologismo corresponderia uma síntese a um tempo subjetiva e absoluta, donde seu caráter a um tempo indemonstrável e indiscutível.

Em seguida, à primeira expressão da metafísica, isto é, à metafísica espiritualista corresponderia uma tentativa de síntese objetiva e absoluta, donde seu caráter indemonstrável porém discutível.

Ao segundo e último estágio metafísico, isto é, ao cientificismo materialista, corresponde uma tentativa de síntese objetiva e relativa, donde seu caráter demonstrável porém ainda indiscutível.

E por fim, o quarto e último estado do entendimento, a síntese positiva, esta define-se como subjetiva e relativa, donde seu caráter demonstrável e discutível.

Repare que o caráter contraditório das duas sínteses metafísicas fica aí plenamente manifesto, assim como o contraste entre essas duas sínteses em comparação com o caráter orgânico das sínteses teológica e positiva”.

5.6.1.     A sugestão do Hernani é que o antigo critério de positividade – que, no final das contas, é o cientificismo – seja incorporado à metafísica (que, assim, desdobra-se em duas fases), deixando a positividade propriamente dita para a síntese subjetiva e relativa

5.7.   Mais algumas observações de nosso amigo Hernani, agora feitas durante a prédica:

“Em sua primeira fase, mais objetiva, Augusto Comte havia formulado a lei dos três estados a partir das produções exteriores da Humanidade. Ela é então uma apresentação eminentemente histórica e empírica. A teologia, a metafísica e a ciência são aí oferecidas como sinais empíricos reveladores dessa passagem íntima.

Na segunda de suas fases, progressivamente subjetiva, a formulação de Augusto Comte enuncia a mesma lei considerando antes o caráter interno de cada estado, ou seja, o caráter lógico inerente de cada um deles. Então se tratou de revelar o caráter fictício das construções da teologia, o caráter abstrato das especulações metafísicas e o caráter positivo das leis da ciência.

A morte privou Augusto Comte de uma terceira formulação da lei da evolução intelectual, na qual o conjunto do Positivismo já pudesse ser apresentado como livre dos últimos vestígios do cientificismo, o que já havia ocorrido a partir do quarto volume da Política positiva, de 1854, com a teoria subjetiva dos números, com a incorporação do fetichismo etc.

É curioso ver como o resumo de Harriett Martineau[1] foi elogiado por Augusto Comte, dentre outras virtudes, pelo fato de ela haver excluído daí o artigo escrito por Augusto Comte, em 1832, intitulado Memória sobre a hipótese cosmogônica de Laplace[2], adiantando-se assim à exclusão de um assunto que ainda estava presente no Sistema de filosofia positiva e que o Positivismo viria a considerar como mais uma especulação da metafísica cientificista”.

5.8.   A carta de 12 de fevereiro foi aprofundada em uma outra, de 27 de Aristóteles de 69 (24 de março de 1857)

6.      As cartas de A. Comte ao dr. Audiffrent foram publicadas pelo próprio dr. Audiffrent em 1880, no livro O Positivismo dos últimos tempos (LePositivisme des derniers temps) – embora tenham sido apenas trechos dessas epístolas

6.1.   Teixeira Mendes traduziu e publicou esses trechos em 1898 (As últimas concepções de Augusto Comte) e novamente em 1900 (O ano sem par)

6.2.   Finalmente, em 1990, Paulo Carneiro, dando seguimento e concluindo o principal de organização e publicação da correspondência de Augusto Comte, publicou-as na íntegra, no volume VIII da correspondência e das confissões anuais de nosso mestre (esse volume em particular contou com o auxílio de Angèle Kremer-Marietti)

7.      Eis os trechos da bela e importante carta de fevereiro de 1857 que o dr. Audiffrent publicou em 1880[3]:

“A respeito da principal parte de vossa memorável carta, devo sobretudo esboçar a sistematização direta das reflexões gerais que precedentemente vos indiquei sobre a emancipação científica especialmente instituída, conforme o caso mais decisivo, ainda que sob um modo espontaneamente latente no volume que vós reledes agora. É necessário perceber diretamente tal emancipação como o complemento normal da evolução fundamental que caracteriza a lei dos três estados. O último estado deve ser, a esse respeito, decomposto em seus dois modos sucessivos, um científico, o outro filosófico, respectivamente analítico e sintético. É somente ao segundo que pertence a qualificação de definitivo, inicialmente aplicado confusamente ao seu conjunto. No fundo, a ciência propriamente dita é tão preliminar quanto a teologia e a metafísica e deve ser finalmente tanto quanto [elas] eliminada pela religião universal, em relação à qual esses três preâmbulos são um o provisório, o outro, transitório, e o último, preparatório. Eu ouso mesmo recusar às ciências o atributo de plena positividade, que não consiste somente na realidade das especulações, mas em sua combinação contínua com a utilidade, sempre referida ao Grande Ser e desde então não podendo nunca ser dignamente apreciada senão conforme a síntese total, vale dizer, subjetiva e relativa. Na construção final, o início teológico da preparação humana não tem menos eficácia que seu término científico. Se este fornece os materiais exteriores, a outra esboça as disposições interiores, ao compensar a imaginaridade[4] pela generalidade, cuja ausência interdiz toda verdadeira racionalidade teórica.

Sob um aspecto mais sistemático, a primeira vida [teológica] é sobretudo distinguida no indivíduo, como na espécie, pela vã pesquisa contínua de uma síntese essencialmente objetiva, ao passo que a segunda [a positividade] constrói e desenvolve a síntese puramente subjetiva, de que a outra forneceu espontaneamente os materiais necessários. Mesmo quando a ciência já sentiu a inanidade das causas e fez gradualmente prevalecer as leis, ela aspira tanto quanto a teologia e a metafísica à objetividade completa, sonhando com a universalidade de explicação exterior segundo uma única lei, não menos absoluta que os deuses e as entidades seguindo a utopia acadêmica. A esse respeito, eu devo ingenuamente estender uma palavra de minha última circular que prolonga esse reproche até a mim mesmo, a respeito da minha obra fundamental [o Sistema de filosofia positiva], em que, não fosse senão a esse título, a posteridade não veria, como eu pude já o dizer nobremente, senão uma construção de estréia, um trabalho de primeira vida, não tendendo para a segunda senão no tomo final, todos os outros permanecendo mais ou menos submetidos ao prestígio científico de que somente o estado plenamente religioso libertou-me”.

8.      Eis o trecho da carta de março de 1857, também publicada pelo dr. Audiffrent em 1880[5]:

“O MESTRE – Vejo que apreciastes agora o meu novo volume [Síntese subjetiva], de maneira a utilizá-lo mais do que ninguém. A sua reação geral sobre a vossa final emancipação científica me é sobretudo preciosa, como garantindo a integridade das vossas disposições sintéticas e a sua eficácia religiosa. Sentistes dignamente que a ciência, longe de constituir o estado positivo, limita-se a fornecer-lhe, após a teologia e a metafísica, uma última preparação necessária que, como as outras duas, tem tanto seus inconvenientes como suas vantagens, e torna-se profundamente nociva prolongando-se fora de medida. Para caracterizar a positividade das nossas concepções, é preciso sempre que a sua realidade se combine com a sua utilidade, a qual não é verdadeiramente suscetível de ser julgada senão religiosamente, em virtude da relação de cada parte com o conjunto. Sente-se que a ciência seria menos apta do que a teologia para constituir um estado fixo, pois que o entendimento não poderia nunca tomar para uma verdadeira residência uma simples escala, unicamente apropriada para subir ou descer entre o mundo e o homem, quando as nossas necessidades o exigem, e de modo algum capaz de fornecer-nos um domicílio permanente. É tempo que os verdadeiros teoristas se libertem, a tal respeito, de uma dominação degradante, a fim de poderem dignamente instalar as grandes noções religiosas contra as quais a ciência será em breve insurgida com mais animosidade do que a teologia e a metafísica, porque ela aspira mais a perpetuar o interregno espiritual”

9.      Em suma:

9.1.   A verdadeira positividade é filosófica, relativa e subjetiva

9.1.1.     A verdadeira positividade não se confunde com o cientificismo – aliás, não se confunde nem com a mera ciência

9.1.2.     O que distingue a verdadeira positividade da ciência e do cientificismo são suas vistas gerais, o reconhecimento de que a inteligência é um atributo humano (embora, claro, não exclusivamente nosso) que está e deve estar a serviço do ser humano – portanto, também a utilidade do conhecimento deve limitar e orientar a aplicação da inteligência

9.2.   Essa distinção tem importância evidente para nós, positivistas, mas, como tudo o mais na Religião da Humanidade, tem importância para todos os seres humanos: tratam-se de concepções importantes para a Humanidade em geral e para cada sociedade e indivíduo em particular

9.2.1.     A correção e a justiça das concepções de Augusto Comte – incluindo a retificação formal da lei dos três estados, no sentido de recusar à mera ciência o caráter de positividade – é atestada pelas mais diferentes manifestações filosóficas e políticas feitas desde antes de Augusto Comte, passando por críticos e comentadores de sua época e chegando aos nossos dias

9.2.1.1.           Não apenas comentadores do Positivismo, mas filósofos que refletem em geral afirmam e exigem a ultrapassagem do cientificismo em favor de concepções mais amplas

9.2.1.2.           O Positivismo afirma tais concepções mais amplas com todas as letras mais ou menos desde sempre:

9.2.1.2.1.                A exigência das visões de conjunto, da síntese filosófica, subjetiva e relativa sempre esteve presente

9.2.1.2.2.                A Religião da Humanidade formaliza essa ultrapassagem

9.2.1.2.3.                Por fim, a incorporação formal (mas também substantiva) dessa ultrapassagem na lei dos três estados ocorreu em 1857




[1] Referência à condensação do Sistema de filosofia positiva feito por Harriet Martineau em 1855, em dois volumes, sob o título “A política positiva de Augusto Comte” (The Positive Philosophy of Auguste Comte). O v. 1 pode ser consultado aqui: https://archive.org/details/positivephilosop0000comt/page/n3/mode/2up.

[2] Referência ao documento Premier memóire sur la cosmogonie positive (“Primeira memória sobre a cosmogonia positiva”), conhecido popularmente como Memóire sur la cosmogonie de Laplace (“Memória sobre a cosmogonia de Laplace”), publicado em 1835 por Augusto Comte.

[3] A tradução é minha, a partir da correspondência de Augusto Comte organizada e publicada por Paulo Carneiro e Angèle Kremer-Marietti em 1990.

[4] Augusto Comte usa no original “imaginarité”, no sentido de “imaginação”; essa palavra foi empregada no original para ecoar, ou rimar, tanto “généralité” (generalidade) quanto “rationalité” (racionalidade). Usamos o neologismo “imaginariedade” a partir da palavra “imaginário”, a fim de seguir a rima de Augusto Comte.

[5] A tradução é de Teixeira Mendes, presente em As últimas concepções de Augusto Comte (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898, p. 286).

21 abril 2023

Lógica positiva, de Augusto Comte

Digitalizamos e postamos no portal Internet Archive o opúsculo Introdução geral ao estudo da lógica, ou Matemática, organizado por Luís Bueno Horta Barbosa em 1933.

Essa pequena e interessante obra consiste na seleção, indexação e tradução de trechos da "Introdução" à Síntese subjetiva, publicada por Augusto em 1855. Essa "Introdução", em particular, trata, em um primeiro momento, da definição da lógica positiva, bem como de seus meios, seus objetivos, sua história filosófica e suas relações com o conjunto dos conhecimentos abstratos. Em um segundo momento, esse capítulo aborda a filosofia da Matemática, conforme entendida por Augusto Comte a partir da síntese subjetiva.

O arquivo encontra-se disponível, em versão PDF, aqui: https://archive.org/details/augusto-comte-logica-positiva.





Definição da lógica positiva (Augusto Comte, na sua "Síntese subjetiva")

Reproduzimos abaixo alguns trechos iniciais da grandiosa última obra de Augusto Comte, a sua Síntese subjetiva (1855), que, planejada para ter quatro volumes, ficou apenas em seu volume inicial, dedicado à lógica.

Os trechos reproduzidos abaixo são alguns dos que foram inicialmente selecionados, indexados e traduzidos por Luís Bueno Horta Barbosa; eles apresentam o conceito positivo de lógica, com as necessárias reflexões teóricas e históricas que o justificam. Como se verá, a partir de um entendimento real do ser humano (afetivo, prático e intelectual, em sua interação com o mundo e com o próprio ser humano), a lógica não é reduzida à operação intelectualista de símbolos, mas é ententendida como um instrumento que se vale de diversos recursos para auxiliar o ser humano em suas atividades.

*   *   *

Instituição da Lógica Positiva[1]

 

Definição normal da lógica

“Para caracterizar a lógica relativa que convém à síntese subjetiva, é preciso comparar a sua definição normal com o esboço que formulei, seis anos atrás, na introdução da minha obra principal[2]. Guiado pelo coração, eu já ali proclamei e mesmo sistematizei a influência teórica do sentimento. Uma apreciação mais completa fez-me também consagrar, no mesmo lugar, o ofício fundamental das imagens nas especulações quaisquer. Sob este duplo aspecto, o referido esboço foi satisfatório pois abraçou o conjunto dos meios lógicos, retificando a redução que deles fazia a metafísica que só empregava os sinais. Toda a imperfeição desse esboço consiste em que o destino de tais meios achou-se excessivamente restrito, por não me haver eu desprendido bastante dos hábitos científicos. Parece, por essa definição, que a verdadeira lógica limita-se a desvendar-nos as verdades que nos convêm, como se o domínio fictício não existisse para nós, ou não comportasse nenhuma regra. Nós devemos sistematizar tanto a conjectura quanto a demonstração, votando todas as nossas forças intelectuais, bem com as nossas forças quaisquer, ao serviço continuo da sociabilidade, única fonte da verdadeira unidade.

Reconstruída convenientemente, a definição da lógica, incidentemente formulada na pagina 448 do tomo primeiro da minha Política positiva, exige duas retificações conexas, não no que se refere aos meios mas sim no que se refere ao objetivo. Deve-se substituir nela desvendar as verdades por inspirar as concepções, para caracterizar a natureza essencialmente subjetiva das construções intelectuais, e a extensão total do seu domínio, não menos interior do que exterior. Com esta dupla retificação, a minha fórmula inicial torna-se plenamente suficiente. Então somos finalmente conduzidos a definir a lógica: O concurso normal dos sentimentos, das imagens, e dos sinais, para inspirar-nos as concepções que convêm às nossas necessidades morais, intelectuais e físicas. Não obstante, esta definição exige duas explicações conexas, a primeira relativa aos meios que ela indica, a segunda relativa ao fim que assinala” (Síntese subjetiva, p. 26).

 

Apreciação dos meios lógicos

“Considerada sob o primeiro aspecto, basta que essa definição se ache convenientemente ligada á teoria fundamental da natureza humana. Segundo esta teoria, o conjunto do cérebro concorre para as operações quaisquer da sua região especulativa. Elaboradas pelo espírito sob o impulso do coração assistido do caráter, todas as nossas concepções devem trazer a marca destas três influências. À frente dos meios lógicos, é preciso pois colocar os sentimentos que, por fornecerem ao mesmo tempo a fonte e o destino dos pensamentos, servem-se da conexidade das emoções correspondentes para combiná-los. Nada poderia substituir esta lógica espontânea, à qual se devem sempre, não somente os primeiros sucessos dos espíritos sem cultura, mas também os mais poderosos esforços das inteligências bem cultivadas.

Não podemos sistematizar a lógica, como não podemos regular o conjunto da existência humana, senão subordinando os dois outros meios essenciais a este processo fundamental, único comum a todos os modos e graus do entendimento. As operações intelectuais, limitadas a este regime, poderiam ser fortes e profundas; mas ficariam vagas e confusas, porque ele não comporta a precisão e a rapidez exigidas por tais operações, visto a impossibilidade de se tornar ele bastante voluntário. Juntas aos sentimentos, as imagens tornam o espírito mais pronto e mais nítido, por ser o uso delas mais facultativo. Elas combinam-se com eles, mediante a ligação natural entre cada emoção e o quadro da sua realização. Toda a eficácia delas resulta desta conexidade, que permite ás imagens evocar os sentimentos dos quais elas inicialmente derivaram.

Sob tal assistência, o coração institui um segundo regime lógico mais preciso e mais rápido do que o primeiro, mas menos seguro e menos poderoso, no qual as concepções formam-se pela combinação das imagens. Uma espontaneidade menor distingue este modo do precedente e não lhe permite uma equivalente generalidade, embora ele surja sem cultura. Nunca ele basta para tornar as deduções, as induções, ou as construções, tão prontas e tão nítidas quanto o exige o seu destino estético, teórico ou prático. Elas só podem preencher estas condições juntando o socorro dos sinais propriamente ditos ao poder dos sentimentos assistidos das imagens. Tal é o complemento necessário da verdadeira lógica, inteiramente esboçada na animalidade, mas só desenvolvida pela sociabilidade” (Síntese subjetiva, p. 27).

 

A teoria lógica dos metafísicos

“Devemos considerar a teoria lógica dos metafísicos como caracterizando-lhes ao mesmo tempo a impotência para regularem o estado social e inaptidão para conceberem-na. Antes do surto deles na Grécia, o teologismo tinha tido os seus vícios teóricos espontaneamente compensados pelo seu destino prático, embora o seu método seja tão pessoal quanto o do ontologismo. Todos os perigos desse método desenvolveram-se quando a cultura intelectual passou dos padres para os filósofos, os quais, apesar das suas tendências pedantocráticas, não puderam instituir a especulação abstrata senão afastando o ponto de vista coletivo. Uma intuição necessariamente individual, na qual a inteligência esquecia ao mesmo tempo a sua subordinação ao sentimento e o seu destino para a atividade, foi então erigida em estado normal da razão teórica. Nada pode caracterizar melhor esta degradação do que a sistematização da lógica pelo emprego exclusivos dos sinais, afastando os sentimentos e mesmo as imagens. Ela constituiu a primeira e principal manifestação da doença ocidental, na qual o homem isola-se da Humanidade” (Síntese subjetiva, p. 31).

 

A elaboração dos pensamentos pelos sentimentos auxiliados pelos sinais e pelas imagens

“Em virtude desta explicação, a sistematização lógica é devida, tanto quanto a unidade geral, a preponderância do coração sobre o espírito. Devemos considerar os sinais e as imagens como auxiliares dos sentimentos na elaboração dos pensamentos. Esta assistência acha-se assim fornecida pelas duas partes essenciais do aparelho intelectual, respectivamente consagradas uma à concepção, a outra à expressão, sendo que esta exige sempre a ação. Toda meditação que não produz imagem é incompleta, e toda contemplação torna-se confusa sem semelhante guia. Uma e outra são, pois, caracterizadas pelas imagens, cuja consideração, ativa ou passiva, forma o principal domínio do espírito interiormente dirigido pelo coração. Uma última função torna-se então necessária para transmitir ao exterior o resultado geral da elaboração realizada no interior. Referidos a este destino, do qual se deriva a sua reação mental, os sinais adquirem a sua principal dignidade, visto caber-lhes o privilegio de instituir, entre o Grão-Ser e os seus servidores, as comunicações que proporcionam, a estes os elementos, àquele o produto, do trabalho intelectual” (Síntese subjetiva, p. 33).

 

Apreciação do objetivo da lógica

Disciplinar a inteligência

“Considerada quanto ao seu fim, a lógica teve de ser ao mesmo tempo a mais antiga e a mais viciosa das construções filosóficas. Ela quis diretamente regular o elemento médio da existência humana separando-o da sua fonte social e do seu destino prático. Ciência, a lógica pôs o aforismo fundamental que subordina a ordem intelectual à ordem física[3], sem daí concluir que o conhecimento da primeira exigia a apreciação da segunda, cujo estudo achava-se então limitado aos fenômenos mais simples. Arte, ela não pôde instituir mais do que um vão aparelho de regras metafísicas, que não comportavam outra eficácia, senão a de compensar, por alguns hábitos de generalidade, a especialidade necessária da positividade preliminar. Por ter renunciado ao domínio poético, a lógica, na sua exclusiva preocupação da verdade, não tardou a sentir-se incapaz de iniciativa, e contentou-se com sistematizar a aptidão, mais nociva do que útil, de provar sem achar” (Síntese subjetiva, p. 34).

Impossibilidade de disciplinar a inteligência antes do positivismo

“Na realidade não se podia instituir a lógica antes que a construção da religião positiva tivesse essencialmente terminado a iniciação humana. Mas alcançado esse termo, uma solução decisiva torna-se possível, e mesmo oportuna, para o grande problema que a Idade Média pôs, por um esboço provisório, visando regular as forças quaisquer” (Síntese subjetiva, p. 35).

Em que consiste a dificuldade dessa solução

“Vista no seu conjunto, a dificuldade consiste sobretudo em disciplinar o espírito, já porque ele foi o elemento mais perturbado pela revolução moderna, já porque é preciso colocá-lo em condições de assistir ao principio regenerador na sistematização universal” (Síntese subjetiva, p. 35).

Verdadeiro destino da inteligência

“Reduzida ao seu verdadeiro destino, a inteligência deve ajudar o sentimento a dirigir a atividade: este oficio basta para instituir o regime mental. Então o espírito, renunciando à estéril independência sonhada pelo orgulho metafísico, coloca a sua verdadeira grandeza na digna submissão à ordem fundamental que nós devemos suportar e modificar. Guiada pelo espetáculo exterior, a inteligência adapta a marcha das suas concepções à marcha dos fenômenos, cujos estados futuros ou passados podem ser assim julgados por meio das nossas operações interiores, visto a perpetuidade das duas economias paralelas. Ela reconheceu que esta correspondência nunca pode ser absoluta; ela aspira instituí-la apenas no grau que o exigem as nossas verdadeiras necessidades” (Síntese subjetiva, p. 35).



[1] Seleção, indexação e tradução de Luís Bueno Horta Barbosa (Introdução geral ao estudo da lógica, ou matemática. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio, 1933). Os trechos citados são extraídos de Augusto Comte (Synthèse subjective, Paris, 1855).

[2] Referência ao Sistema de política positiva, cujo volume 1 é de 1851.

[3] Referência à observação de Aristóteles de que “não existe nada na inteligência que não provenha dos sentidos”, correspondente à primeira metade da 4ª lei de Filosofia Primeira, que é completada com a noção de Kant: “exceto a própria inteligência”.

16 novembro 2022

Luiz Hildebrando de Horta Barbosa: Introdução à filosofia das ciências

A Revista do Serviço Público, publicada desde 1939 pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (o DASP) e atualmente a cargo da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP, subordinada ao Ministério da Economia), trouxe a lume em 1950 um artigo da autoria do positivista ortodoxo brasileiro Luiz Hildebrando de Horta Barbosa. 

Luiz Hildebrando integrava a família Horta Barbosa, que teve inúmeros de seus membros integrantes da Igreja Positivista do Brasil. Engenheiro de formação, serviu na Universidade Federal do Rio de Janeiro e foi o responsável técnico pela criação da Ilha do Fundão e pela construção dos prédios originais que lá foram instalados. Além disso - muito além disso -, ele desenvolveu uma intensíssima atividade sacerdotal, no sentido positivista da expressão, ministrando dezenas de cursos populares de ciências, de filosofia, de história etc.

Por ocasião de seu falecimento, em 1973, alguns positivistas elaboraram o seu elogio fúnebre, que pode ser lido aqui. É desse elogio fúnebre que tiramos a foto reproduzida abaixo.

Voltando ao artigo publicado na Revista do Serviço Público: ele intitula-se "Introdução à filosofia das ciências" (Revista do Serviço Público, Rio de Janeiro, ano XIII, v. 1, n. 2, p. 13-18). Recuperado esse artigo, digitalizado e posto à disposição ao longo de 2022, o texto pode ser lido aqui.




Importância da visão de conjunto

No dia 11 de Frederico de 168 (15.11.2022) fizemos uma prédica positiva; na parte da leitura comentada do Catecismo positivista, concluímos a teoria geral do culto, tratando da influência intelectual do culto positivo. Já na parte de sermão, tratamos da importância da visão de conjunto para o ser humano, bem como da rejeição contemporânea da visão de conjunto pelo pós-modernismo e pela política identitária.

As anotações que serviram de base para a (longa) exposição sobre a importância da visão de conjunto estão disponíveis abaixo. A exposição oral está disponível aqui (no canal Positivismo do Youtube) e aqui (no canal Apostolado Positivista do Facebook), a partir de 53' 30".

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Importância da visão de conjunto

 

-        A visão de conjunto permite que se entenda a realidade

o   A visão de conjunto tem conseqüências morais, intelectuais e sociais:

§  A visão de conjunto oferece sentido ao mundo e à vida

§  É somente por meio da visão de conjunto que se pode explicar a sociedade e os indivíduos, ao inseri-los em “contextos”

·         Ao entendermos a totalidade, sabemos onde fica cada coisa e, portanto, sabemos onde cada um de nós fica, está e como se relaciona com os demais

§  A verdadeira moralidade só é possível com base na visão de conjunto:

·         Somente a partir da visão de conjunto é possível definir o que é bom e o que é ruim, o que é justo e o que é injusto

o   Inversamente, a ausência de visão de conjunto, ou a negação da visão de conjunto, resulta em que a realidade torna-se incoerente e irracional e qualquer discussão sobre o que é certo e o que é justo torna-se impossível (quando não irrelevante)

§  A irracionalidade e a incoerência resultantes da ausência de síntese tem resultados muito claros: a perda do sentido da vida, a confusão mental, a perda de referências morais (em termos individuais e coletivos)

§  As consequências acima resultam, por sua vez, em aumento dos conflitos sociais e da violência social e política, em guerras (internacionais e/ou civis), no fanatismo e na intolerância, no adoecimento mental e físico

§  A rejeição da visão de conjunto, portanto, é ao mesmo tempo imoral, irracional e antissocial (e antipolítica)

-        Afirmar a possibilidade, a necessidade e até mesmo a indispensabilidade da visão de conjunto torna-se ainda mais urgente desde os anos 1960-1970 no Ocidente, com o desenvolvimento do pós-modernismo

o   O pós-modernismo foi elaborado na França mas logo foi importado pelos Estados Unidos; na França ele manteve-se como uma modinha academicista, mas nos EUA ele desenvolveu-se, aprofundou-se e derivou para a prática política, na forma da política identitária

o   O pós-modernismo nega, rejeita, despreza, impede as visões de conjunto, que ele chama de “visões totalizantes” ou de “grandes narrativas”

§  Os historiadores também desenvolveram suas próprias formas de desprezo pelas visões de conjunto

o   De acordo com esses pensadores, não há motivo para elaborar-se visões de conjunto, pois objetivamente elas seriam impossíveis e, além disso, elas seriam desnecessárias

o   Para eles, portanto, o bom é a fragmentação das idéias, a justaposição incoerente e irracional de concepções puramente subjetivas

§  A partir desse ultrassubjetivismo, o pós-modernismo afirma que não existe realidade objetiva, mas apenas “narrativas”

o   Essa é a própria definição e afirmação do que Augusto Comte chamava de “anarquia”, ou seja, a ausência de valores e concepções compartilhados

-        Ao longo de toda a história da Humanidade, o ser humano procurou elaborar visões de conjunto, ou sínteses

o   Essas sínteses foram chamadas inicialmente de “religiões” e, depois, também (ou apenas) de “filosofias”

o   Como se sabe, as metafísicas sempre atuaram como corrosivas das sínteses anteriores, mas, entre cada grande transição, a metafísica do momento já introduzia elementos da nova síntese

§  Com o início da mais recente grande fase de transição (após a Idade Média), a metafísica introduziu a sua corrosão, mas apresentando um caráter ambíguo: por um lado, auxiliando a ciência; por outro lado, desenvolvendo a pura corrosão

§  No século XVIII, algumas filosofias que tinham ainda um pé na metafísica afirmaram o espírito positivo e a visão de conjunto: foram os enciclopedistas, especialmente na França e na Escócia

§  Vale notar que mesmo algumas metafísicas modernas sem muito espírito positivo e/ou com forte espírito corrosivo (“crítico”) estimularam a visão de conjunto: Hegel e até Marx tiveram essa preocupação

o   Entretanto, algumas ciências – não por acaso, as ciências superiores – exigem a visão de conjunto

§  Essa exigência é inaugurada pela Biologia, seja em termos globais, com a Ecologia, seja em termos individuais, com o estudo da inserção dos órgãos no corpo

§  A Sociologia e a Moral também exigem a visão de conjunto

§  Vale lembrar, entretanto, que a ciência é ambígua: se por um lado há ciências que exigem a visão de conjunto, por outro lado a ciência entregue a si mesma tende ao absoluto e, como a ciência é pelo detalhe, por si mesma ela vai contra a visão de conjunto

-        A metafísica que rejeita a visão de conjunto, não por acaso, vincula-se à concepção individualista do ser humano: toda a tradição liberal é individualista e contrária à visão de conjunto

o   Para os liberais (progressistas ou conservadores; ingleses ou alemães ou estadunidenses ou austríacos), a visão de conjunto equivale sempre à opressão da sociedade sobre o indivíduo

§  O máximo de “sociedade” que os liberais concebem é a justaposição de indivíduos e dos seus respectivos egoísmos

o   O individualismo que descamba no liberalismo é o resultado da secularização da teologia: sai a divindade, mantém-se o egoísmo e rejeita-se a perspectiva social

o   O liberalismo é uma degradação do republicanismo, em particular na perda do sentido coletivo da vida humana

o   Mas é importante indicar que o liberalismo, apesar de seus defeitos intelectuais e morais, concebe ainda uma visão de conjunto em termos de leis válidas para todos (os indivíduos) – a isonomia

o   Da mesma forma, ainda que limitado pelo individualismo, o liberalismo reconhece a importância da ciência

-        O pós-modernismo (com sua conseqüência prática, a política identitária) é uma filosofia especificamente academicista e consiste no desenvolvimento sem freios da metafísica, isto é, do seu espírito corrosivo

o   O pós-modernismo e a política identitária aprofundam os aspectos críticos, isto é, corrosivos da metafísica (da mesma metafísica que resultou no liberalismo e, paradoxalmente, também no marxismo)

o   O pós-modernismo e a política identitária rejeitam (1) a ciência, (2) a visão de conjunto, (3) os valores compartilhados, (4) o universalismo nas políticas públicas

o   De maneira correlata, o pós-modernismo e a política identitária defendem (1) o particularismo, (2) o irracionalismo anticientífico, (3) o exclusivismo e a exclusão de quem não é do grupo identitário, (4) as “narrativas” identitárias exclusivas e excludentes

§  Ao longo da história já tivemos exemplos concretos de tais “narrativas” identitárias: foram a “ciência proletária” de Stálin e a “ciência ariana” de Hitler; atualmente há as “epistemologias negras”, “epistemologias queer”, “epistemologias feministas” etc. etc. etc. – tudo isso devidamente identitário, antiuniversalista, particularista, sectário

§  Duas aplicações práticas do sectarismo pós-moderno-identitário:

·         A defesa de discriminações “positivas”: “racismo inverso” (dos “negros” contra os “brancos”), “sexismo inverso” (das mulheres contra os homens) etc.

o   Uma consequência institucional das discriminações positivas são as cotas de vagas

·         A afirmação do “lugar de fala”, que consiste na defesa, no âmbito da retórica, de cotas exclusivas para os membros dos grupos identitários, de tal maneira que só podem falar sobre esses grupos os membros do próprio grupo, excluindo da possibilidade de falar desses grupos quem não os integrar

o   Versões mais suaves do “lugar de fala” até admitem que não-membros dos grupos identitários possam falar sobre os grupos identitários – mas sempre de maneira subordinada

-        É fundamental ter-se clareza de que não é necessário ser identitário para combater-se o racismo e promover a integração “racial”; para valorizar as mulheres e combater as discriminações e as violências contra elas; para valorizar os homossexuais e combater as discriminações e as violências contra eles etc.

o   A associação (interessada) entre determinadas pautas sociais e políticas e o identitarismo prejudica as próprias pautas

o   É possível e necessário encampar essas pautas sem recorrer ao identitarismo e aos seus profundos vícios morais, intelectuais e políticos

o   Ao reconhecermos a justiça das pautas defendidas pelo identitarismo mas recusarmos seus defeitos morais, intelectuais e políticos, cada uma das políticas identitárias em particular deve ser entendida como um "grito dos excluídos"

-        Insistimos: em contraposição à rejeição intelectual, moral e política da visão de conjunto realizada pelos pós-modernos, é necessário reafirmar a possibilidade e a necessidade das visões de conjunto, ou melhor, das sínteses

o   A visão de conjunto tem aspectos objetivos e subjetivos:

§  Ela é subjetiva na medida em que é o ser humano (o sujeito) quem elabora e a quem se direciona a síntese

§  Ela é objetiva na medida em que se baseia em elementos objetivos, sejam eles cósmicos, sejam eles humanos (históricos e morais)

§  Deixando de lado o escandaloso (mas “charmoso”!) elogio da irracionalidade feito pelos pós-modernos, é questão de perguntarmos com clareza e de respondermos com ainda maior clareza: qual o problema com que a síntese seja subjetiva? Ora, nenhum!

o   O Positivismo, a Religião da Humanidade afirma a visão de conjunto e a síntese:

§  A moralidade e a racionalidade estabelecidas por meio da subordinação progressiva de indivíduos e grupos a coletividades e perspectivas cada vez maiores: família, mátria, Humanidade atual (objetiva), Humanidade histórica (subjetiva)

o   Apenas por meio da visão de conjunto e da síntese propostas pela Religião da Humanidade é possível realizar com êxito a busca da harmonia individual, do bem-estar coletivo, do sentido da vida, da felicidade