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14 fevereiro 2021

"Contra alguns mitos da 'reforma administrativa'"

O artigo abaixo foi publicado em 8.2.2020 no jornal Monitor Mercantil; o original pode ser lido aqui.

Da mesma forma, ele foi publicado em 14.2.2021 no jornal Gazeta do Povo; o original pode ser lido aqui

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Contra alguns mitos da “reforma administrativa”

A tragédia global e nacional que caracterizou o ano de 2020 deveria reverter-se em lições para a sociedade brasileira; entretanto, o início de 2021 já sinaliza que nós teimamos em não aprender com nossos erros e nossas tragédias. A nova retomada da proposta de “reforma administrativa” é exemplar nesse sentido. Essa “reforma” prevê a alteração radical de diversos dispositivos que regram a estrutura do Estado brasileiro, em particular na contratação e na manutenção de servidores. O principal advogado dessa “reforma” é o Ministro da Economia, Paulo Guedes, defensor de um novo AI-5 e que não esconde desgostar dos servidores públicos – “parasitas” cuja sindicalização deve ser proibida e os sindicalizados, demitidos.

A reforma administrativa pressupõe que o Estado brasileiro é “grande demais”; mas, na verdade, em termos de quantidade de servidores ou de gastos com pessoal, o Brasil está longe de ser “grande”. O tamanho do Estado tem que ser medido pela quantidade e pela qualidade de serviços públicos prestados: mas a estrutura disponível para os serviços públicos é insuficiente para as necessidades nacionais. Os serviços mais evidentes já o ilustram: professores, médicos, enfermeiros, peritos previdenciários etc., sua quantidade está longe de ser suficiente. Os problemas suscitados pela pandemia de covid-19 estão escancarando essa insuficiência.

Os exemplos acima deveriam lembrar-nos de que as necessidades sociais brasileiras não são pequenas, não são de curto prazo nem são estritamente econômicas; inversamente, deveriam lembrar que o Estado brasileiro não pode ser meramente o “regulador neutro do ambiente de negócios”. Como representante prático e realizador concreto do “interesse nacional”, o Estado tem a obrigação de realizar mudanças necessárias na sociedade em conformidade com a opinião pública, além de orientar em grandes linhas a atividade econômica. Entretanto, desde a crise da dívida na década de 1980, progressivamente o Estado brasileiro abdicou dessas funções: a abertura econômica indiscriminada (a financeira em particular) é expressão disso. Assim, os servidores públicos têm um papel central na realização de algo que está meio fora de moda, mas que deveria voltar aos debates públicos: um “projeto de país”.

Passamos, então, à estabilidade dos servidores: simplesmente não se deveria pô-la em questão. A perseguição político-ideológica, realizada com freqüência de maneira raivosa, levada a cabo pelo governo Bolsonaro é a própria justificativa para a existência da estabilidade. Não se trata de um “privilégio” do funcionalismo público, que se erige em casta, contra a instabilidade do setor privado, mas a garantia de que os servidores públicos exercerão um serviço profissional e, ainda mais, que eles não estarão sujeitos aos humores dos governantes do momento.

Também se afirma que os servidores públicos “ganham muito”, com o juízo implícito de que tais “grandes salários” seriam ultrajantes. O ultraje não está no “ganhar muito”, mas na comparação com o setor privado, cujos trabalhadores supostamente ganhariam bem menos. O problema é que essa comparação é superficial, tomando-se uma simples média aritmética dos gastos do setor público com alguma média do setor privado; comparam-se duas coisas que seriam homogêneas, quando, na verdade, elas são heterogêneas. Nos dois setores, quem está no início de carreira recebe bem menos que quem está no final; da mesma forma, quem exerce cargo de chefia recebe mais que quem está nas posições mais humildes. O setor público divide-se em três ou quatro poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público) e três níveis federativos (nacional, estadual e municipal): todos os estudos sérios indicam que a quantidade de servidores aumenta quando passamos do nível federal para o nível estadual e daí para o municipal, mas que os salários pagos diminuem nessa mesma direção. Além disso, o Judiciário e o Ministério Público têm salários muito maiores que o Legislativo e estes são maiores que os do Executivo. O poder Executivo, por sua vez, especialmente no âmbito federal, também é bastante heterogêneo: as Forças Armadas, o Itamaraty, a Receita Federal e mais algumas carreiras são regiamente pagas. Também vale lembrar que algumas áreas são sempre grandes – aquelas que lidam diretamente com a população: educação, saúde, previdência e assistência social, segurança pública –; além disso, há setores que são intrinsecamente caros e custosos, como as áreas de infraestrutura e as de pesquisa: tudo isso entra na conta do Executivo. Quando se fala em supersalários no setor público – e a “reforma administrativa” é defendida em parte para combaterem-se os “supersalários” –, eles ocorrem no Judiciário, no Ministério Público e na cúpula do Executivo; ainda assim, a reforma terá efeito apenas no Executivo civil federal, silenciando a respeito das Forças Armadas e dos outros três poderes.

O setor público tem uma dinâmica específica: a estabilidade no emprego permite que as carreiras desenvolvam-se de maneira efetiva, com ascensão profissional, a partir de cursos feitos pelos servidores. É claro que os servidores buscam subir na carreira porque isso se converte em salários maiores; mas, do ponto de vista da utilidade pública, isso significa que os servidores especializam-se e ampliam suas habilidades. Só de uma perspectiva meramente contábil e fiscalista essa maior qualificação é vista como correspondendo a “mais gastos”!

O setor privado tem outra dinâmica. Para começo de conversa, ele não investe de verdade na qualificação, mas espera que haja trabalhadores qualificados no “mercado” que possam ser contratados; quando há “qualificação”, elas são tópicas e de curto prazo. As qualificações de longo prazo, como são demoradas e caras, não são realizadas pelo setor privado. Aliás, a busca da “redução de custos” tem um efeito paradoxal, pois há trabalhadores superqualificados que, por isso mesmo, não encontram emprego, pois custariam muito! A idéia de lealdade das empresas para com os trabalhadores é algo que inexiste; como há apenas o “mercado” e a competição entre as empresas, os trabalhadores mais velhos e mais qualificados – mais caros – são mandados embora em benefício de trabalhadores mais novos, menos experientes e mais baratos (e não sindicalizados.) Assim, o setor privado ou privatiza a qualificação profissional mais exigente ou beneficia-se dos investimentos feitos pelo setor público: não é por acaso que os grandes programas de mestrado e doutorado no país são todos públicos (ou pesadamente financiados pelo setor público).

A ausência de projeto nacional a partir dos anos 1980 resultou em que estamos fortemente vinculados aos fluxos internacionais de capital especulativo e que o país progressivamente se desindustrializa. Daí termos cada vez menos investimento na economia real, que gera renda e empregos, e termos cada vez menos empregos, isto é, trabalhos com carteira assinada, salários dignos e benefícios efetivos. Inversamente, um vago setor de “serviços” ampliou-se dramaticamente nas últimas décadas, não porque tenhamos uma população altamente qualificada prestando serviços de complexidade média a alta, mas porque temos uma população que é pobre, ganha pouco, não consegue empregos e meramente realiza serviços ou “trabalhos”, ou melhor, faz “bicos”. O grande símbolo disso é o entregador de comida vendida por meio de aplicativos de celulares que vai de bicicleta entregar o produto: recebe uma miséria, não tem estabilidade, não tem benefício social nenhum e tem que usar os próprios recursos para o trabalho; é a “uberização” do trabalho erigida em ideal. Não falta engenhosidade, operosidade ou industriosidade à população: o que falta são políticas públicas que gerem emprego de verdade, um projeto de país que se afaste do capital especulativo e uma elite que valorize o país (e não seja nem autoritária nem seja cega para os “invisíveis”.)

A reforma administrativa não resolverá nenhum desses problemas; na verdade, por opção das elites brasileiras, aumentará os existentes e criará outros, ao desestruturar um serviço público importante e qualificado mas insuficiente para as necessidades nacionais. No fundo, essa é uma contra-reforma, ou anti-reforma: carecemos de uma verdadeira reforma, a partir de um projeto nacional efetivo.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e Doutor em Sociologia Política.

08 maio 2020

O Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direita brasileira

O artigo abaixo foi escrito como réplica a um outro texto, publicado alguns dias antes, no jornal Gazeta do Povo. Embora eu faça referência expressa a esse artigo inicial, lendo a minha réplica torna-se logo evidente que não faz muita diferença a leitura do primeiro texto; em outras palavras, a minha réplica sustenta-se por si mesma e apresenta informações e interpretações por si só.

A minha réplica foi publicada em 8.5.2020 e está disponível aqui. A versão abaixo é um pouco maior que a publicada na Gazeta do Povo.

O artigo também foi publicado - com acesso aberto - no jornal carioca Monitor Mercantil, na edição de 23 a 25 de maio de 2020; ele encontra-se disponível aqui. Lá embaixo porei também a versão JPG do artigo.

N. B.: A data de publicação do meu artigo não poderia ser mais emblemática: em 8 de maio de 1945 a Alemanha nazista rendeu-se de maneira incondicional aos Aliados, encerrando a luta contra o fascismo na Europa.


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O Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direita brasileira

O artigo “O que é o Positivismo, a filosofia política que faz a cabeça dos militares brasileiros”, escrita pelo jornalista Rafael Salvi e publicada na Gazeta do Povo em 4.5.2020, é uma coleção inacreditável de mitos, invenções arbitrárias e erros sobre o Positivismo, sobre seu criador, Augusto Comte, e sobre a atuação dos positivistas no Brasil; praticamente todas as suas informações estão erradas, o que é mesmo notável. Aliás, não por acaso, entre suas fontes – todas elas de segunda, terceira ou quarta mãos – estão Olavo de Carvalho e João Camilo de Oliveira Torres, dois intelectuais conservadores e produtores em série de mitos, invenções arbitrárias e erros. Na mesmíssima senda anda Rodrigo Constantino, celebrado “autor” – mas não “pesquisador” nem “historiador”, nem “filósofo” – da nova direita radical brasileira. Todos eles colecionam, como se fosse uma competição, tolices e erros sobre o Positivismo, em um esforço aparentemente coordenado contra essa doutrina nas últimas semanas. Em virtude disso, merece uma réplica que seja minimamente detalhada.

Comecemos pela obra do francês Augusto Comte (1798-1857), fundador da Sociologia, da História das Ciências, do Positivismo e da Religião da Humanidade. A sua principal obra foi o Sistema de política positiva (1851-1854), em que, repetindo várias considerações pacifistas presentes em sua obra preparatória do ponto de vista intelectual (o Sistema de filosofia positiva (1830-1842)), ele afirma com todas as letras que a política moderna tem que ser pacifista e civilista, que as forças armadas devem ser dissolvidas e que as forças policiais devem ter um caráter cidadão e de manutenção da ordem pública. De maneira correlata, a política moderna deve caracterizar-se pela “separação entre os dois poderes”, ou seja, pela separação entre os poderes temporal e espiritual, em que o Estado não tem religião oficial e as religiões não se beneficiam do poder do Estado – o que em termos gerais equivale à laicidade do Estado. Política pacifista, civilista e laica: as liberdades de pensamento, de expressão e de associação são a base da organização social e política e esta, por sua vez, fundamenta-se na fraternidade universal e no respeito mútuo. O resultado disso tudo é que a política moderna – republicana – é cada vez mais regulada pela moral, pelos valores, e, de maneira concomitante, cada vez menos regulada pela força física.

Uma outra consequência da “separação entre os dois poderes” é que o governo não pode ser constituído pelos “sábios” ou pelos técnicos. Evidentemente é necessário que o Estado tenha seus técnicos, assim como um corpo burocrático responsável pela realização das políticas públicas; todavia, há uma gigantesca diferença entre o Estado possuir um corpo técnico e esse mesmo Estado ser dirigido pelos técnicos. Augusto Comte dizia com todas as letras que os “sábios” não podem mandar no Estado; esse regime político era por ele chamado de “pedantocracia” (palavra criada por Stuart Mill) – “governo dos pedantes” – e, em termos atuais, ela poderia ser chamada de “tecnocracia”. Para Comte, o governo deve ser dirigido por cidadãos com espírito público, visão de conjunto, sensibilidade social, tolerância e fraternidade – e sempre atentos às opiniões e avaliações da opinião pública.

Vale notar que, justamente porque era movido por um espírito histórico, relativo e altruísta, Augusto Comte afirmava a necessidade de uma política moderna que fosse positiva, incluindo nessa política o respeito escrupuloso e cuidadoso pelas religiões antigas e por seus papéis históricos; sendo francês, Comte indicava aí nomeadamente o catolicismo. Essa regra foi cumprida pelos positivistas, mas, ao mesmo tempo, foi ridicularizada pela esquerda e “esquecida” pela direita católica; em qualquer caso, como a respeito de vários outros aspectos, ela foi objeto de desinformação.

A atuação dos positivistas no Brasil seguiu à risca essas orientações. O autor da bandeira nacional republicana, o vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil, Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), tinha em mente os valores indicados acima ao seguir a orientação comtiana e incluir o “Ordem e Progresso” na bandeira. Aliás, nas centenas de publicações da IPB, Teixeira Mendes e Miguel Lemos (1854-1917, Diretor da IPB) não se cansaram nunca de repetir esses valores e de refutar os sofismas daqueles que atribuem o militarismo ao Positivismo. (Aliás, exatamente para combater a desinformação antipositivista, uma dessas publicações está disponível para consulta pública e gratuita no portal Archive.org.)

O professor Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) – positivista por opção religiosa, filosófica e política, militar por necessidade, como se vê na monumental biografia que Teixeira Mendes escreveu sobre ele – era igualmente adepto dessas concepções. Assim, o ensino que ele realizava na Escola Militar e na Escola Politécnica era civilista, pregando o afastamento dos militares (como militares) da vida política nacional e ocidental. Exatamente por isso, Benjamin Constant e sua orientação foram objeto de ódio pelos militaristas, que pregavam a politização das forças armadas e a militarização da política. Entre esses militares, o mais famoso e importante foi o arquigolpista General Pedro Aurélio de Góis Monteiro (1889-1956), que, apoiando o golpe de 1930, apoiou também todos os militares golpistas dali por diante, em particular aqueles simpáticos ao integralismo (a versão nacional do fascismo) e que fizeram o golpe de 1964, como o antigo integralista Olímpio Mourão Filho (1900-1972). No regime autoritário de 1964, um dos seus apoiadores de primeira hora foi o economista “liberal” Roberto de Oliveira Campos (1917-2001); apesar de “liberal”, ele foi Ministro do Planejamento do governo autoritário e nunca deixou de chamar-se de “tecnocrata”.

Todas essas informações são públicas e disponíveis para consulta; só é necessário buscar as fontes originais, não as secundárias, terciárias, quaternárias... Uma informação mais difícil de obter, todavia, são as opiniões de Henrique Batista da Silva Oliveira e Alfredo de Morais Filho – como Benjamin Constant, positivistas por opção religiosa, filosófica e política, militares por necessidade – a respeito dos militares de 1964. A partir de conversas pessoais que mantive com eles e também de relatos de amigos meus, para eles quem deu o golpe de 1964 eram “fascistas”; não por acaso, chamavam Góes Monteiro de “Gás morteiro”, que enquanto viveu fez o possível para combater com agressividade os positivistas militares. Por outro lado, o tecnocrata autoritário Roberto Campos, que é objeto de admiração dos liberais e da nova direita brasileira – incluídos aí o Ministro da Economia Paulo Guedes, o astrólogo Olavo de Carvalho e o autor Rodrigo Constantino – era encarado como alguém sem patriotismo, um “entreguista”, que aliás até o fim de sua vida desejava vender o patrimônio brasileiro para os estrangeiros. A nova direita, embora afirme defender a “liberdade” e combater a “tecnocracia”, não vê problema nenhum em celebrar Góes Monteiro e Roberto Campos e em atribuir os defeitos de gente como eles ao “Positivismo”.

Todos os erros teóricos e históricos indicados acima provêm da (nova?) direita conservadora (neste caso, “católica” e “liberal”): não é por acaso que citam em profusão J. C. Oliveira Torres. Entretanto, é motivo de assombro, ou de ridículo, que repitam os mesmíssimos erros que a esquerda sempre gostou de imputar ao Positivismo e aos positivistas. Embora seja possível incluir aí Marilena Chauí e Michel Löwy, um autor menos espalhafatoso foi o historiador paulista Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982), fundador do Partido dos Trabalhadores. Como já tive oportunidade de indicar e refutar, Sérgio Buarque repetiu todas as desinformações indicadas acima, com a espantosa inovação de pretender entender a obra de Augusto Comte melhor que o próprio Teixeira Mendes!

Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino e agora Rafael Salvi, entre outros, têm-se dedicado a imputar ao Positivismo os seus próprios erros: politização dos militares, aumento da violência na política, desprezo pelos aspectos morais e afetivos na vida sociopolítica, desprezo pela fraternidade e pela tolerância, instrumentalização do Estado por ideologias político-religiosas etc. Eles atribuem ao Positivismo a militarização da política, mas ao mesmo tempo apoiam um governo que se caracteriza exatamente por essa militarização e por um esforço de tecnocratização do Estado; aliás, fazem eco ao voto de extermínio dos positivistas proferido em 9.3.2020 por um dos filhos do Presidente da República.

Infelizmente, tudo isso é apenas distração e desinformação. Desde há alguns anos vivemos um novo tenentismo, com crescentes grupos paramilitares bastante agressivos, de origem castrense e civil; esse novo tenentismo não tem sido reprimido pelas Forças Armadas, que o tolera como se não fosse profundamente perturbador, tanto da ordem político-social quanto da própria disciplina militar.

Nesses termos, os golpes dirigidos contra o Positivismo e os positivistas servem apenas para (tentar) disfarçar a própria política antirrepublicana e anticívica seguida atualmente pela direita nacional. De modo mais específico, a difusão renovada dessa desinformação integra uma campanha promovida pela direita histérico-política desde há algumas semanas no sentido de incentivar os militares – que cada vez mais integram o governo, movidos, sem dúvida, por um sincero embora equivocado senso de dever e de patriotismo – a abandonarem o comportamento constitucional e republicano de obediência às regras e de limitação da atividade propriamente política (felizmente interpretados pela direita como sinais de Positivismo) e a adotarem um renovado comportamento político ativista, intervencionista e autoritário.

A crítica ao Positivismo, assim, é uma nuvem de fumaça e um código da direita para um eventual golpe militar fascista.

Gustavo Biscaia de Lacerda é positivista ortodoxo e Doutor em Sociologia Política.

Fonte: https://monitormercantil.com.br/positivismo-como-cortina-de-fumaca-para-os-erros-da-direita-brasileira

02 dezembro 2019

Gazeta do Povo: Quais tradições dos conservadores?

O artigo abaixo foi publicado na Gazeta do Povo em 28.11.2019. O original pode ser lido aqui.

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Quais tradições os conservadores querem conservar no Brasil hoje?

Não é segredo para ninguém que os conservadores têm o poder no Brasil, hoje; esses conservadores identificam-se como tais, especialmente no que se refere aos “costumes” e, acima de tudo, em sua oposição à “esquerda”, no “antipetismo”. Mas, além da autoidentificação – isto é, de um certo rótulo autoimpingido – e da negação de uma perspectiva sociopolítica, o que é que define, de maneira afirmativa e substantiva, esses conservadores no Brasil?

Essa não é uma pergunta secundária ou desprezível; ela exige que se apresente de maneira clara os princípios que constituem uma determinada visão de mundo e a partir da qual se realiza uma atividade política. Mais do que isso, vale notar que um rótulo por si só não quer dizer muita coisa; no limite, é apenas uma casca para um conteúdo a ser determinado. Além disso, por si só, a oposição a algum grupo intelectual e sociopolítico não evidencia muita coisa, pois limita-se a negar e não a afirmar e, de qualquer maneira, essa mera oposição pode juntar grupos que, de outra forma, estariam em campos muito, muito diferentes.

Uma primeira resposta é esta: os conservadores valorizam a tradição. Mas qual tradição? No caso específico do Brasil, a resposta mais fácil é: a tradição católica. Isso ainda não resolve o problema; deixando de lado a distinção entre a “igreja conservadora” e a “igreja progressista”, o fato é que existe um catolicismo do alto clero e outro do baixo clero, sem contar as inúmeras clivagens representadas pelas ordens – os jesuítas são diferentes dos franciscanos, que são diferentes dos carmelitas, que são diferentes dos mais recentes carismáticos etc. Também há diferentes possíveis “aplicações” da religião, no sentido de que alguns católicos, como católicos, são mais favoráveis à ação política, outros buscam constituir um corpo de laicato, outros preferem ações “de base”, outros são mais litúrgicos e assim por diante.

No conservadorismo brasileiro atual há uma dificuldade adicional da maior importância quando se define o conservadorismo pela tradição católica: o fato simples e direto de que uma parcela minoritária, mas numericamente crescente e politicamente agressiva, não é católica, mas evangélica. Embora católicos e evangélicos definam-se genericamente como “cristãos”, os elementos que os separam são muito mais numerosos que os que os unem. Para começar, excetuando-se talvez a Assembleia de Deus, os demais evangélicos que despontam na política e que mobilizam o atual conservadorismo brasileiro – gozando em particular da simpatia da família Bolsonaro e de alguns ministros de Estado – são igrejas relativamente novas, ou seja, são qualquer coisa menos “tradicionais”. Em segundo lugar, enquanto o catolicismo brasileiro desde sempre é fortemente influenciado pelas determinações da Santa Sé e tem um caráter transnacional, os evangélicos brasileiros têm uma origem associada a pregadores norte-americanos e não manifestam o esforço católico de “unidade na diversidade”. Existem diversos outros elementos, é certo; mas o que vale notar aqui é que católicos e evangélicos, tão heterogêneos entre si, unem-se apenas graças à afirmação de um vago “cristianismo” – que esvazia as doutrinas e as igrejas de seus conteúdos específicos – e, de modo mais importante, no antipetismo e na oposição à “esquerda”.

As diferentes origens de católicos e evangélicos levam-nos também a refletir sobre quais seriam as tradições brasileiras a que eles fazem referência. Afinal, o que seria uma “tradição”? Podemos entendê-la como hábitos persistentes, existentes desde há muito tempo; ora, o conservadorismo brasileiro afirma que seria necessário “retomar as tradições”, do que se depreende que determinados hábitos longevos foram suspensos; em tal suspensão, o peso moral e histórico das tradições diminui, não há dúvida. Mas isso nos leva a refletir sobre quais seriam os hábitos longevos próprios ao Brasil. Sendo bastante polêmico, aqui a escravidão durou bem mais de 350 anos, enquanto a liberdade de todos os cidadãos tem pouco mais de 130; enquanto vigeu, sem dúvida a escravidão foi “tradicional”. O apoio-controle do Estado sobre a Igreja Católica, específico do padroado, durou também vários séculos, enquanto a laicidade do Estado não tem nem 130 anos. No caso particular da laicidade, vale notar que enquanto o catolicismo foi a religião oficial de Estado, não havia liberdade religiosa (no Brasil Colônia) e apenas os luteranos, os calvinistas e, no fim do II Império, os positivistas eram tolerados – entre muitos outros, os evangélicos eram desprezados e rejeitados.

Não duvido de que os exemplos acima são polêmicos para o público conservador, mas eles não são anedóticos. Vinculando-se à liberdade de crença e ao fim da escravidão estão a República e a igualdade perante a lei, bem como o direito ao voto: a República tem 130 anos e a isonomia e o voto têm sido ampliados aos poucos desde 1889, com o fim do voto censitário em 1890, a instituição do voto feminino em 1934 e do voto de analfabetos em 1988. O que devemos considerar como tradicional aí, para ser valorizado pelo conservadorismo? A sociedade de castas monárquica (350 anos) ou a isonomia republicana (130 anos)? A liberdade de expressão foi afirmada em 1889 e durou até 1937; depois voltou em 1946 para ser restringida (duramente) em 1964 e, ainda mais, em 1968, voltando apenas após 1979, para que se transformasse em “cláusula pétrea” em 1988. Durante a República, a liberdade de expressão durou bem mais que a censura e a repressão; ainda assim, temos que perguntar: o que seria “tradição” nesse caso?

Do ponto de vista econômico e de política internacional, a variedade de “tradições” não é menos importante. A República – novamente ela! – proclamou a fraternidade universal, o fim das guerras como ideal e a busca do arbitramento para solução de controvérsias; durante a I República afirmava-se o liberalismo econômico mas o Estado constantemente protegia a indústria, com vistas ao desenvolvimento, e após 1930 o desenvolvimento econômico, social e político tornou-se política pública, com a inclusão e a proteção dos trabalhadores. Aliás, a proteção aos trabalhadores como policy é uma preocupação que se iniciou em 1930 e que está de acordo com o catolicismo, mas que se distancia radicalmente do individualismo evangélico. Até há pouco tempo, a noção de “Ocidente” era encarada no Brasil como sinônima de “universalismo”; da mesma forma, as negociações internacionais e o multilateralismo tornaram-se parte da tradição nacional em política e comércio internacional. Rejeitar o multilateralismo e a arbitragem, estimular conflitos internacionais, incentivar o individualismo e largar os trabalhadores e os pobres ao deus-dará – isso integra alguma tradição brasileira?

As indagações e os comentários acima não visam a denegrir conservadores, católicos ou evangélicos. Bem ao contrário, são um esforço – um pedido, na verdade – para que os conservadores brasileiros atuais deixem de lado sua agenda negativa (antipetismo, rejeição à esquerda) e passem a definir de maneira afirmativa uma agenda; que deixem de dizer o que não querem e passem a indicar o que desejam, em particular o que desejam conservar. Não se trata aqui de atribuir “tradições” à direita ou à esquerda, a católicos, a evangélicos, a comunistas, a militaristas, a pacifistas: em meio a uma pluralidade de tradições brasileiras, trata-se de definir o que deve ser preservado – e, portanto, o que deve ser deixado de lado.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política (UFSC).

25 agosto 2018

Gazeta do Povo: "Intelectuais no Brasil, mais uma 'traição dos clérigos'"

Artigo de minha autoria publicado em 25.8.2018 no jornal Gazeta do Povo, de Curitiba. O original encontra-se disponível aqui.

Como se verá, o texto é um pouco longo para um artigo de jornal. Todavia, essa extensão foi necessária para que eu pudesse tratar com um mínimo de cuidado do tema abordado - tão cheio de dificuldades conceituais e, ao mesmo tempo, tão repleto de conseqüências.

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Intelectuais no Brasil, mais uma “traição dos clérigos”
  
Em 1927 o francês Julien Benda publicou um livro com um intrigante título: La trahison des clercs, cuja tradução para português é A traição dos clérigos. Esse intrigante nome apresentava uma não menos provocativa idéia: a de que os intelectuais (os “clérigos”) estavam traindo a sua missão e a sociedade ao vincularem-se demais, e de modo inadequado, à política. Essa tese é polêmica em si mesma; a forma como Benda expressou-se não ajudou muito em sua compreensão, ainda que o livro tenha obtido um grande sucesso.

A tese do autor é que o papel dos intelectuais é o de serem a consciência crítica da sociedade, elaborando princípios morais e intelectuais que servem de guia e parâmetro de avaliação da atividade política. Isso significa que os intelectuais podem, e até devem, interessar-se pela política, mas não devem sacrificar a sua autonomia pela política. É importante notar que os intelectuais devem ser os guias em todas as áreas da vida, incluindo aí as artes, as ciências, as relações familiares etc., estabelecendo os ideais mais elevados; como intelectuais, sua atividade consiste precisamente nisso e, inversamente, aqueles que elaboram os parâmetros são os intelectuais (ou os clercs, “clérigos”), independentemente do nome específico que adotem. Mas o âmbito político tem algumas particularidades, em particular o risco de que ele pode conduzir à perdição, ou melhor, à “traição”.

O problema dessa tese está no significado de “autonomia” dos intelectuais: afinal, eles podem ou não participar da vida política? Nesse caso, Benda foi um pouco ambíguo; para ele, como os intelectuais devem ser os guias morais da sociedade e como, de qualquer maneira, os intelectuais são tão cidadãos quanto qualquer outro indivíduo, tratar da política é algo normal e necessário.

Esse “tratar da política” pode consistir em (1) propor parâmetros de ação e ideais a serem perseguidos; também pode consistir em (2) manifestar-se sobre temas políticos correntes (como, por exemplo, campanhas eleitorais); também pode significar (3) lançar-se candidato em pleitos e/ou assumir cargos públicos; por último, pode significar (4) sacrificar a missão de guiar a sociedade para, ao contrário, justificar projetos políticos. Uma outra forma de distinguir os âmbitos de atuação é por meio das palavras que a língua inglesa adota para tratar da política: a discussão moral, institucional e técnica dos arranjos constitucional-legal-institucionais consiste nos debates sobre a polity; as considerações morais, institucionais e técnicas sobre as políticas públicas ocorrem no âmbito das policies; por fim, a política prática do dia-a-dia, incluindo as eleições e os arranjos governativos, ocorrem na politics.

A “traição dos intelectuais” consiste justamente quando os intelectuais pretendem atuar na possibilidade (4) – sacrificar a missão intelectual-moral-técnica em nome dos projetos políticos práticos – ou quando os intelectuais abandonam os debates próprios à polity, às policies ou à fiscalização da politics para, eles próprios, engajarem-se como intelectuais na arena da politics. A traição ocorre quando os pensadores abrem mão justamente do seu papel de elaboradores de idéias, valores e juízos para aderirem ao que outros – que não são intelectuais – elaboram. Os intelectuais “traidores”, portanto, abdicam de seu papel de intelectuais, mas mantêm o título de “intelectuais” (ou a fama de pensadores – não faz diferença).

A explicação que apresentamos acima simplifica e esquematiza muito o argumento de Benda; ele mesmo não foi tão claro, nem tão sistemático, em sua própria exposição. A tese da “traição dos intelectuais” é polêmica por si mesma e permite com enorme facilidade más interpretações, confusões e equívocos, com boa fé ou má fé; além disso, o autor vazou-a em termos que eram ambíguos e bastante idealistas, quase platônicos. De qualquer maneira, tendo elaborado a tese em 1927, Julien Benda escrevia movido por um espírito ainda do século XIX, marcado pelo generoso racionalismo progressista que se iniciou no Iluminismo e consagrou-se na III República francesa (1870-1940). Entretanto, Benda tinha os olhos no século XX e, não por acaso, foram as violentas paixões políticas dos 1900 que ilustraram à perfeição a trahison des clercs: pensemos nos nazistas Carl Schmitt e Martin Heidegger ou nos comunistas Trofim Lysenko ou György Lukács ou o inclassificável (e confuso) Jean-Paul Sartre – todos eles submeteram seguidamente suas idéias às diretrizes políticas de governantes autoritários. Aliás, convém notar que, lamentavelmente, com exceção de Lysenko, todos esses autores continuam sendo lidos e – pior! – respeitados. Não deixa de ser grande motivo de lamento o fato de que o próprio Benda, no final de sua vida, na década de 1950 tornou-se ele próprio um “intelectual traidor”, ao justificar os crimes perpetrados por Stálin e pelo regime comunista na União Soviética: embora tenha escrito com um espírito do século XIX, Benda não resistiu aos terríveis impulsos do século XX.

A melhor forma de entender as idéias de Benda é adotarmos com clareza como parâmetro as idéias de um dos autores que melhor representa o que o século XIX produziu de melhor, o francês Augusto Comte. Este autor, fundador da Sociologia, propôs uma divisão entre o “poder Temporal” e o “poder Espiritual”. O poder Temporal é responsável pela ordem material das sociedades; ele é o governo, ou o Estado, e baseia-se em última análise força física (em um sentido que foi, depois, popularizado pelo alemão Max Weber): ele faz e impõe as leis; assim, ele modifica “objetivamente” as condutas dos cidadãos. Já o poder Espiritual é o responsável pelas idéias e pelos valores das pessoas; em vez de modificar o comportamento das pessoas pela força, ele baseia-se no aconselhamento, ou seja, seu funcionamento é subjetivo.

Ora, além da distinção entre essas duas potências, o interessante é que A. Comte recomendava que os integrantes de cada uma delas mantivessem-se cuidadosamente separados da outra. Não é que os membros do poder Temporal – de modo específico: os políticos, os juízes, os procuradores – não possam ter valores e idéias; é claro que eles têm valores e idéias e é necessário que eles tenham: o que importa é que eles não defendam em caráter oficial idéias e valores; em particular, eles não podem estabelecer doutrinas oficiais. As “doutrinas oficiais” são as crenças impostas pelo Estado como necessárias para a cidadania, no sentido de que, sem aderir oficialmente, o indivíduo não é cidadão nem goza de cidadania. Exemplos fáceis de “doutrinas oficiais”: no Brasil Império, no século XIX, todos os políticos tinham que ser católicos; na Inglaterra de hoje (e desde o século XVI), somente anglicanos podem ser primeiros-ministros; na União Soviética, somente os comunistas tinham direitos e, aliás, somente o comunismo era aceito como “verdade”.

Mas, de maneira mais fundamental, no esquema comtiano os membros do poder Espiritual – os intelectuais – não podem aspirar ao poder Temporal. Essa vedação foi proposta por A. Comte para garantir a completa autonomia dos intelectuais, no sentido indicado antes: não é que não possam ou não devam ocupar-se da política; bem ao contrário, eles devem estar bastante atentos aos rumos dos destinos comuns; mas “preocuparem-se com a política” é diferente de “ocuparem-se diretamente com política”. Quando os intelectuais assumem cargos políticos e, ao mesmo tempo, querem manter-se atuando como intelectuais, eles misturam as lógicas de cada um dos dois poderes: suas decisões como políticos práticos são implementadas em última análise pela força, mas não se sabe se as idéias e os valores devem aconselhar ou se devem ser impostos. O importante a notar aqui é que essa dúvida – os valores e as idéias propalados pelos intelectuais que desempenham ao mesmo tempo atividades de políticos práticos são aconselhamentos ou são imposições? – permanece mesmo que se afirme, em caráter oficial, que as idéias e os valores não são oficiais. Nos termos comtianos, quando os intelectuais deixam de lado a sua autonomia, eles deixam de subordinar a política ao crivo moral e põem em prática a ação inversa, subordinando a moral à política. A única forma garantir a plena autonomia e evitar de qualquer maneira essa ambigüidade é os intelectuais retirarem-se de maneira clara e formal da política prática: uma aplicação simples e poderosa desse princípio seria a vedação de candidaturas (a vereadores, deputados, governadores, senadores, presidente) a sacerdotes. No final das contas, não se trata de os intelectuais terem o “direito” de manifestarem-se politicamente: eles têm o dever de manterem-se nas condições morais e institucionais adequadas e necessárias à boa consecução das suas responsabilidades – responsabilidades que, diga-se de passagem, os intelectuais escolhem por livre e espontânea vontade.

Ora, Comte reconhecia já no século XIX que muitos intelectuais têm impulsos (secretos ou não) pelo poder; esses impulsos revelam na verdade que tais “intelectuais” desejam de fato ser políticos práticos, mas devido a um sem-número de motivos – incapacidade moral, incapacidade prática, falta de oportunidades, vaidade etc. – eles acabam mantendo-se como “intelectuais”. Dessa forma, não seriam pensadores que, como pensadores, contribuem para a vida política, mantendo-se afastados da política cotidiana mas que fiscalizam as práticas, sugerem políticas públicas, propõem idéias e valores; em seu lugar, seriam políticos práticos frustados que usam o espaço social próprio aos intelectuais para fazerem política prática. Essa ação político-prática dos intelectuais não apenas indica deficiências morais da parte desses supostos pensadores; ela tem conseqüências sociais mais amplas, na medida em que degradam a reflexão intelectual mais ampla e põe sistematicamente sob suspeita as reflexões morais e intelectuais sobre a política. Em outras palavras, a traição dos intelectuais é uma prática profundamente tóxica, para os intelectuais, para os políticos práticos e, assim, para o conjunto da sociedade.

Como indicamos há pouco – e como é amplamente sabido –, o século XX assistiu a inúmeros intelectuais que sacrificaram suas posições como intelectuais em benefício de projetos políticos; aliás, em muitos casos esses sacrifícios deram-se na forma de subordinações e humilhações sistemáticas, de que basta citarmos o caso de Lukács como caso exemplar. Todavia, temos que dar um passo além na presente discussão: não basta termos clareza de que os pensadores como pensadores têm que se manter cuidadosamente afastados da arena política; também não basta sabermos que a traição dos intelectuais acarreta os problemas morais, intelectuais e práticos ligados às traições: é importante notarmos que o século XX sistematizou intelectualmente a traição dos intelectuais como prática “legítima”.

O autor que sistematizou a traição dos intelectuais foi o italiano Antônio Gramsci, com a figura do “intelectual orgânico”. Esse intelectual orgânico é o pensador que é também membro do partido político (no caso teorizado por Gramsci, do partido comunista) e está a serviço do partido. Não é um um mero intelectual filiado a um partido; é um “intelectual” que atua como braço filosofante do partido político. No esquema gramsciano, esse pensador teria por missão realizar a “hegemonia cultural”, isto é, criar idéias, valores, teorias próprios à classe proletária e que substituam as idéias, os valores e as teorias próprios à classe burguesa; realizando essa substituição no âmbito da cultura, a tomada do poder político ocorreria naturalmente, sem maiores dificuldades.

Talvez seja possível argumentar que o “intelectual orgânico” mantém uma autonomia e que, portanto, não realiza por si só a “traição dos intelectuais”: mas, nesse caso, qual seria a particularidade desse intelectual face a qualquer outro intelectual “crítico”, dito “burguês”? De qualquer maneira, como garantir a priori que os intelectuais orgânicos não incorrerão na traição dos intelectuais? Mas, deixando de lado essas questão, surge antes uma outra, mais importante, mais central: será que a preocupação com a “traição dos intelectuais” está no âmbito dos “intelectuais orgânicos”? A resposta é claramente “não”: para os “intelectuais orgânicos”, a “traição dos intelectuais” no sentido esboçado por Julien Benda e advertido antes por Augusto Comte não é um problema. Na verdade, se há uma traição que os intelectuais orgânicos evitam realizar é a traição a propósito dos ideais políticos e partidários, buscando serem “politicamente corretos”.

A posição dos “intelectuais orgânicos” permite entendermos a traição dos intelectuais de uma outra forma: não são os intelectuais que têm que se subordinar aos partidos políticos e aos chefes partidários, mas, bem ao contrário, são os chefes e os partidos que têm que se subordinar aos intelectuais. É claro que essa subordinação é moral e intelectual: os pensadores elaboram as idéias e os valores, enquanto os partidos e seus chefes põem-nos em prática nas disputas políticas, tendo, para isso, a liberdade própria à atividade prática que escolheram.

No Brasil contemporâneo a traição dos intelectuais (conforme Benda), a subordinação da reflexão intelectual autônoma sobre a política à prática política cotidiana (ou, o que dá no mesmo, a projetos estritamente políticos, ou seja, de poder) (conforme Comte) ou a realização dos intelectuais orgânicos (segundo Gramsci) é algo que ocorre largamente, em particular no espaço institucional que consagra os “intelectuais”, ou seja, as universidades, mormente as universidades públicas (federais ou estaduais) e, secundariamente, algumas PUCs (pontifícias universidades católicas). Aliás, isso é (mais) notável nas universidades públicas devido a um único e simples motivo: como as públicas têm estabilidade no serviço, garante-se a liberdade de cátedra; como as universidades particulares são empresas particulares, que visam ao lucro, suas preocupações são bastante diversas (e, embora isso não seja algo necessariamente ruim, também não é necessariamente bom).

Assim, muitos professores universitários valem-se da liberdade de cátedra para fazerem propaganda política e política partidária; evidentemente, isso ocorre mais e com maior facilidade nas Ciências Humanas. Antes de continuarmos, para evitar que se difunda a idéia estapafúrdia, burra e irracionalista de que isso justifica a extinção dos cursos de Ciências Humanas (pelo menos nas universidades públicas), é importante notar que esse problema “ocorrer largamentenão é o mesmo que “ocorrer sempre” ou “ocorrer em todos os lugares” ou “ocorrer com todos os professores”; entretanto, ele é difundido o suficiente para que seja notado, para que incomode e para que suscite justas reclamações sistemáticas. Assim, sem desprezar o aspecto quantitativo, é acima de tudo um problema qualitativo – como, aliás, a noção de “traição” já sugere.

De qualquer maneira, a afirmação de que nas universidades ocorre a traição dos intelectuais é um problema, em mais de um sentido. O primeiro deles é que mesmo os intelectuais, com boa ou má fé, costumam confundir(-se) a respeito de qual seria o âmbito adequado de suas atuações políticas: a primeira e mais imediata reação dos intelectuais, mesmo aqueles que não cometem a trahison des clercs, é a de questionar uma suposta impossibilidade de manifestar-se politicamente, seja como cidadãos, seja como intelectuais que se dedicam à política. Isso revela ao mesmo tempo a extensão com que a idéia de “intelectual orgânico” difundiu-se nas universidades e a falta, ou ausência completa, de conhecimento das reflexões de Comte sobre a “separação dos dois poderes”.

O segundo problema consiste em que uma reação quase imediata de muitos intelectuais – e é necessário reconhecer que, não por acaso, a vários desses professores é merecida a acusação de “traição dos intelectuais” – é atribuir ou filiar a denúncia desse comportamento ao movimento “Escola Sem Partido”. Associar a denúncia da “traição dos intelectuais” ao “Escola Sem Partido” é uma tática bastante eficiente para tirar a legitimidade da denúncia; em alguns casos é equivalente a dizer que a denúncia tem um caráter “fascista”. Não há dúvida de que há intelectuais e professores que sugerem tal associação com boa fé; isso não impede, todavia, de que sejam freqüentes os casos de má fé.

Mas o que importa notar a respeito do Escola Sem Partido é o seguinte. Atualmente, de maneira clara, ele é um movimento ao mesmo tempo irracionalista e anti-intelectualista, clericalista e autoritário; seus grandes defensores, em particular os parlamentares em Brasília, são indivíduos ligados a igrejas (notadamente as evangélicas) e a movimentos mais à “direita”, que buscam combater a “esquerda” utilizando essa plataforma como arma, mas que, ao mesmo tempo, não têm pudor em propor seja a teologia de Estado, sejam medidas anti-intelectualistas (como a fantástica supressão dos cursos de Ciências Humanas das universidades públicas). Ora, se é assim atualmente, o fato é que a primeira inspiração do Escola Sem Partido foi como um movimento da sociedade civil que reagia contra evidentes abusos de professores universitários, que realizavam a traição dos intelectuais à “esquerda”: não por acaso, era escola sem partido mas também sem igreja. Nesse sentido, é motivo de profundo lamento o seqüestro que o movimento, ou, pelo menos, a bandeira do Escola Sem Partido pelos grupos indicados acima; em vez de ser uma reação contra a trahison des clercs, ele acabou sendo, ele mesmo, uma nova modalidade dessa traição.

Em terceiro lugar, é importante indicarmos que a traição dos intelectuais no Brasil está ocorrendo à “esquerda” – como é, por assim dizer, “tradicional” –, mas também e cada vez mais à “direita”. Desde pelo menos a década de 1960 as esquerdas têm forte peso nas universidades brasileiras; a instalação do regime militar, em 1964, aumentou essa presença. As décadas de 1980 e 1990 foram de verdadeira hegemonia esquerdista (ainda que a esquerda não fosse unânime nem nunca tenha sido um bloco homogêneo); mas desde os anos 2000 a direita tem crescido nas universidades. Em si mesmo esse crescimento poderia ser considerado algo “bom”, na medida em que se poderia considerar uma pluralização intelectual. O problema é que muitos integrantes dessa direita assumem uma postura militante, ou melhor, agressiva e partidariamente militante, de tal sorte que a traição dos intelectuais no Brasil tem-se tornado um problema à direita e à esquerda. A crise do governo Dilma Rousseff e seu subseqüente fim abrupto exacerbou essas tendências: a virulenta militância contra o Partido dos Trabalhadores (PT) e a igualmente virulenta militância de reação dos petistas, com sua retórica do “golpe” e da prisão de Lula como sendo uma prisão política, intensificaram muito o gênero de comportamento característico da “traição dos intelectuais”: na verdade, bem vistas as coisas, a presente traição dos intelectuais dá-se justamente a respeito do PT e de Lula, seja a favor deles, seja contra eles.

Para concluir estas observações, é importante notar que a trahison des clercs não é um problema apenas universitário; aliás, ele não é nem mesmo um problema de destinação de verbas públicas e de subvenção de atividades partidárias travestidas de atividade universitária. No âmbito acadêmico, vale lembrar que os primeiros prejudicados são os alunos, que se vêem obrigados a aceitar a opinião dos professores imposta sobre eles, sem condições efetivas de discussão; muitos alunos, além disso, acabam deixando-se seduzir por essa falsa atividade intelectual e passam a considerar que a legítima, verdadeira e única possibilidade de ação nas universidades é a que caracterizamos aqui como a trahison des clercs.

Mas, de maneira mais ampla, quem perde com a traição dos intelectuais é toda a sociedade, que vê importantes recursos desperdiçados. Não nos referimos aqui aos recursos materiais (salários, salas, pessoal técnico-administrativo): consideramos as idéias e os valores que acabam deixando de serem respeitados. A traição dos intelectuais produz uma espécie de “inflação discursiva”: assim como na inflação monetária o dinheiro perde cada vez mais o seu valor, em que cada vez mais moeda vale menos, nessa “inflação discursiva” as palavras e os discursos cada vez valem menos. Associado a isso, as atividades que os intelectuais teriam legitimamente para exercer no âmbito político também perdem valor: a fiscalização do Estado, a manutenção da legitimidade das instituições, a pesquisa sobre a dinâmica institucional e a sugestão de alternativas etc. Aliás, exacerbando muito uma tendência própria às universidades, a traição dos intelectuais transforma os “debates” em brigas de torcida e os intelectuais que lideram a traição em chefes dessas torcidas: nessas horas, os líderes das pedantocracias acadêmicas viram também juízes e executores. Acima de tudo, os verdadeiros problemas sociais, políticos, culturais, morais acabam sendo ocultados, rejeitados, ignorados ou mistificados: com isso, suas soluções não são discutidas nem enfrentadas e o grande público não é esclarecido. Como diria Comte, a característica central da política moderna e da política republicana – a subordinação da política à moral – deixa de ser possível.

Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política (UFSC) e Sociólogo da UFPR.

15 maio 2018

Gazeta do Povo: "200 anos de Marx: há algo a comemorar?"

Em homenagem aos 200 anos de nascimento de Marx, apresento abaixo minha pequena contribuição-retribuição aos desserviços intelectuais e práticos prestados por ele.

Esse texto foi publicado na Gazeta do Povo em 14.5.2018. O original encontra-se disponível aqui.

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200 ANOS DE MARX: HÁ ALGO A COMEMORAR?


“A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos”
(Karl Marx)

“Os verdadeiros partidários do progresso social não tardarão em reconhecer que a insurreição dos vivos contra o conjunto dos mortos é contraditória com a digna preparação de um futuro que supõe o passado”
“A ordem permanecerá retrógrada enquanto o progresso permanecer anárquico”
(Augusto Comte).


O dia 5 de maio marcou o bicentenário de nascimento de Karl Marx (1818-1883), o fundador do comunismo e, bem ou mal, pai espiritual de centenas de milhões de seguidores. Não há dúvida de que essa data incita à reflexão – especialmente quando os próprios marxistas celebram-na e afirmam que Marx teria contribuído decisivamente para o progresso da humanidade, em termos intelectuais e também práticos; nesse sentido, aliás, nas redes sociais houve marxistas que propuseram que os não marxistas e os antimarxistas tivessem “honestidade intelectual” para reconhecer essas contribuições. Ora, isso é altamente problemático: tanto a exigência de “honestidade intelectual” quanto a afirmação de que Marx teria sido um dos maiores pensadores da humanidade são largamente exageros, profundamente chocantes e, no fundo, ao contrário da honestidade intelectual exigida, essas afirmações são desonestas. No conjunto, essas afirmações integram um verdadeiro “mito Marx”, constituído por seus discípulos ao longo de pelo menos os últimos 170 anos.

Antes de mais nada: as virtudes habituais, ou seja, os comportamentos e as disposições de espírito que habitualmente se chamam de “virtudes” sempre foram chamadas por Marx de “preconceitos burgueses”; nesse sentido, a honestidade seria um dos mais claros desses preconceitos. Ocorre que, sendo um herdeiro do hegelianismo e, mais amplamente, da metafísica alemã, para Marx as opiniões mais incoerentes eram “resolvidas” por meio de pelo menos três expedientes complementares: (1) uma escrita rocambolesca; (2) o apelo às ideias de “contradição” e “lógica dialética”; (3) uma retórica violenta, agressiva e altamente irônica.

A escrita rocambolesca é um recurso bastante conhecido e fácil de entender: qualquer pessoa que deseje afetar profundidade pode escrever de maneira confusa, de modo a confundir os leitores e produzir com facilidade sofismas. Já a “contradição” é uma forma mais sutil, mas também mais desonesta, de iludir: quando um autor vê-se face a incoerências manifestas, basta afirmar que as incoerências referem-se a aspectos da própria realidade e que a realidade é “contraditoriamente” incoerente; ou, então, afirma-se que os aspectos díspares e incoerentes das “contradições” são “integrados” e “superados” na “lógica dialética”, que, por sua vez, é uma forma “superior” de racionalidade. Por fim, a retórica carregada, violenta e irônica é o recurso final para evitar qualquer forma de argumentação racional explícita; a ironia evita o confronto argumentativo, assim como a violência retórica evita a racionalidade e ainda dá permite ataques pessoais, ad hominem, aos adversários. (Esses traços, próprios do pensamento e da retórica de Marx, foram copiados em diferentes medidas por seus discípulos.)

Tudo isso para observar que Marx desprezava as virtudes habituais como sendo preconceitos, mas ao mesmo tempo aceitava – pelo menos em princípio – a argumentação racional e científica a respeito de suas obras, ou seja, a argumentação feita com honestidade “intelectual”. Entretanto, a aceitação da honestidade “intelectual” era feita apenas em princípio, de maneira retórica: Marx repudiava seus adversários apelando sistematicamente para os três aspectos acima (apelo às “contradições” e retórica violenta, irônica e confusa). Assim, da parte de Marx não havia nem respeito à honestidade em geral (“preconceito burguês”) nem respeito à honestidade “intelectual” em particular (rejeitada na prática).

“Um dos maiores pensadores da humanidade”: um título desses exige não apenas uma grande capacidade intelectual, como também contribuições efetivas e de vulto para o progresso da humanidade. Deixando de lado o fato de que o “progresso” conforme entendido por Marx é uma concepção altamente problemática (como também era a concepção-irmã de “ordem” – ambas definidas de maneira rasa) e que, após a atuação de Marx e dos marxistas a concepção do “progresso” sofreu danos gigantescos, ocorre que a atuação específica de Marx no que se refere a esses dois quesitos mínimos (grande capacidade intelectual e grandes contribuições efetivas para o progresso) não justificam sua inscrição no panteão intelectual e político da humanidade.

É necessário admitirmos que as inúmeras obras de Marx são de fato interessantes e estimulantes; a leitura de seus livros sugere muitas ideias, das quais muitas são úteis e realmente proveitosas. As chamadas “obras históricas” (como o 18 Brumário de Luís Bonaparte) são particularmente interessantes, ao sugerirem perspectivas para a Sociologia Política e para a História Social e Política. Entrementes, convenhamos: obras “interessantes”, “estimulantes” e “sugestivas” não é o mesmo que obras “geniais” ou “marcos inescapáveis da reflexão científica”. As obras “históricas” de Marx são interessantes – assim como o são, por exemplo, os livros de Alexis de Tocqueville (como A democracia na América): não há nada de “genial” aí. Observações similares podem ser feitas a respeito das obras “filosóficas” e das “econômicas” de Marx, bem como a respeito de sua atuação prática (no movimento dos trabalhadores).

Podem contra-argumentar que Marx teria sido genial na crítica ao capitalismo. Mas teria mesmo? A análise dos mecanismos sociais, políticos e econômicos da produção econômica não são e não foram exclusividade de Marx; propor um esquema geral para explicar diversos elementos da vida social também não foram exclusividade marxista. Exemplos de esquemas explicativos gerais e abrangente da realidade social do século XIX, em termos históricos? Basta ler-se as obras de Augusto Comte, de Tocqueville, de Herbert Spencer, de Bakunin, ou de muitos outros: não é que esses autores não tenham desenvolvido análises profundas, originais e muitas vezes brilhantes; ocorre que, não por acaso, o “mito Marx” obscurece-as.

Em sua explicação do “capitalismo”, Marx usou um conceito moral (a maldade do “capital”) para iniciar sua “crítica”. Além disso, “inverteu” Hegel e afirmou que os elementos econômicos (ou materiais, ou infra-estrutura, ou qualquer que seja o termo que o exegeta marxista de plantão deseje) determinam os elementos não-econômicos (a “super-estrutura” – a política, a filosofia, as artes, as religiões, a cultura). O que significa “determinar” aí é um problema epistemológico insolúvel desde a época de Marx; mas o sentido geral é claro: são as relações econômicas que devem ser levadas em consideração para explicar-se ou entender-se a política, as artes, a cultura, as religiões etc.; além disso, é necessário mudar as relações econômicas para que se “mude” a sociedade.

Há nessa crítica uma forte ambiguidade moral a respeito da própria moralidade; na verdade, duas ambiguidades. Por um lado, Marx reconhecia que o ser humano tem elementos altruístas e que pode agir altruisticamente: o problema é que tal ação altruísta só pode ocorrer quando o “capitalismo” (e, de maneira mais ampla, a luta de classes) deixar de existir; até lá, o ser humano será sempre egoísta, com a possível exceção daqueles que “lutam” pelo fim do capitalismo. Por outro lado, embora a crítica ao capitalismo baseie-se em uma avaliação moral, essa própria moralidade de fundo é escondida sob o rótulo de “análise objetiva”, ao mesmo tempo em que a moralidade comum, como vimos, é condenada como “preconceito burguês”: em outras palavras, “dialeticamente”, “contraditoriamente”, a moralidade é afirmada-negada.

Dito isso, a submissão da super-estrutura à infra-estrutura é moralmente degradante, politicamente irresponsável e intelectualmente errada. Uma coisa é dizer que há relações mais ou menos fortes entre a classe social que a pessoa integra e algumas de suas preferências morais, políticas e filosóficas; outra coisa é dizer que basta saber em que classe social a pessoa nasceu para deduzir daí o seu comportamento – e, mais importante ainda, para (des)valorizar as ações dessa pessoa. O sentido disso é este: para Marx, o fato de uma pessoa ter nascido na classe média torna-a uma “burguesa” e todos os seus atos, conscientes ou não, serão favoráveis à burguesia; há a possibilidade de essa pessoa “trair” a classe (ajudando os proletários, por exemplo), mas, exceto no caso da traição em favor do proletariado, todas as ações desse burguês serão pela exploração dos trabalhadores, da sua dominação política, da enganação sistemática a respeito de sua condição etc. Se, inversamente, um proletário age “contra” a sua classe social, esse comportamento ocorre porque ele ou é um traidor da classe ou, o que supostamente seria mais “correto” para o marxismo, esse proletário não teria “consciência de classe”: em outras palavras, ele seria um iludido. Aliás, mesmo a expressão “capitalismo”, cunhada por Marx, implica sempre, necessariamente, a exploração objetiva do proletariado pela burguesia: expressão marxista, ela junta uma suposta descrição (relações entre proletariado e burguesia) com uma forte mas escondida condenação moral (“o capitalismo é mal porque as relações são sempre de exploração”).

Dois aspectos centrais que se evidenciam dos comentários acima são a luta de classes e a utopia igualitarista. A luta de classes, para Marx, não era uma figura de expressão, ao menos para o “capitalismo”: as duas classes sociais do capitalismo (proletariado e burguesia) estão sempre, necessariamente, em conflito, seja ele às claras, seja ele encoberto. O conflito às claras não são meramente as greves; por si sós, elas apenas podem constituir o início do conflito franco: o conflito às claras é a revolução social, o enfrentamento armado dos proletários contra a burguesia; em outras palavras, é a guerra civil em bases de classe. O conflito encoberto são as outras relações sociais – que, dessa forma, são sempre ruins, negativas: um tratamento digno que porventura um burguês dispense a um proletário (como cidadão, como trabalhador, como ser humano) é apenas um fingimento, ou uma ilusão autoinduzida. As relações sociais entre as classes sociais só não são ruins quando são alianças (sempre temporárias) que possam conduzir à revolução social. A revolução, por seu turno, é rompimento com a história, é tabula rasa: há uma forte ambiguidade também aqui, em que a história e a historicidade são-e-não-são valorizadas. (Mas, se considerarmos a famosa frase segundo a qual “as gerações passadas oprimem os cérebros dos vivos”, veremos que, no fim das contas, a história não é valorizada.)

Nesses termos, não foi por acaso que há alguns anos uma professora de Filosofia da Universidade de São Paulo falou que “a classe média é uma merda”: Marilena Chauí evidenciou de maneira cristalina todo o seu marxismo e a moralidade a ele vinculada – mesmo que ela mesma, como intelectual e servidora pública, e pelo conjunto de sua situação social objetiva, seja uma burguesa, integrante da classe média.

Se o capitalismo é sempre, por definição, mal; se ele define-se pelo conflito inexpiável entre proletários e burgueses, como é que esse conflito pode, talvez, ter um fim? Por meio do fim das classes sociais. Novamente: o “fim das classes sociais” deve ser entendido de modo literal; em particular, deve-se acabar com a classe burguesa. Para Marx, o fim das classes sociais permitirá que o ser humano deixe de ser “proletário” ou “burguês”, sendo somente um “ser humano”. Com o fim das classes, as pessoas deixarão de ser definidas, entendidas e explicadas a partir de suas classes sociais, passando a ser puramente “indivíduos”. Com isso, os indivíduos perderão as limitações que as classes sociais impõe-lhes: aí surge a imagem idílica, mas irreal e completamente fantasiosa, de que o fim das classes (e do capitalismo) permitiria que cada pessoa trabalhasse pela manhã em uma fábrica, fosse à tarde pescar e à noite discutisse filosofia e que no dia seguinte fosse passear pelos campos pela manhã, fizesse esculturas à tarde e redigisse poemas épicos à noite – e assim sucessivamente.

Essa imagem pode parecer bonita e atraente, mas na verdade ela é profundamente falsa e errada. São pelo menos três os problemas relacionados a ela. Em primeiro lugar, ela despreza o trabalho e é irresponsável: a recompensa para os trabalhadores seria uma vida livre de qualquer responsabilidade, em particular sem a necessidade de trabalhar para sobreviver; o mundo ideal que o marxismo propõe para os trabalhadores é uma existência desvinculada de relações duradouras e de esforços constantes, que, “dialeticamente”, lembra os relatos dos aristocratas mais inúteis das monarquias. Deveria ser chocante esse contraste; mas o fato é que os marxistas (a começar pelo próprio Marx) nunca examina(ra)m atentamente o fato “contraditório” de que o ideal de vida para os trabalhadores consiste na negação radical do trabalho e, inversamente, na afirmação mais desbragada da inutilidade, da futilidade, da irresponsabilidade. Talvez os marxistas examinem, ou tenham examinado, essa incoerência: mas, por outro lado, não se vê nenhum marxista criticando a sua utopia, cujo papel político e intelectual é tão central; da mesma forma, a Sociologia do Trabalho, que é uma área acadêmica dominada pelo marxismo, a despeito de afirmar valorizar abstratamente o trabalho, sempre vê o trabalho concreto – por definição “capitalista” – como algo ruim e negativo, como fonte de alienação e nunca de realização pessoal e coletiva.

Em segundo lugar, a “utopia” marxista é falsa pelo simples fato de que o ser humano tem que trabalhar muito e continuamente para poder sobreviver. Como o Positivismo de Augusto Comte nota e ao contrário do que afirmam o marxismo e inúmeras filosofias da história que, na verdade, são anti-históricas, ao longo da história é possível que a carga de trabalho diminua, que a produtividade aumente, que as condições de trabalho melhorem e/ou tornem-se menos degradantes; ao contrário do que o marxismo afirma, a melhoria das condições de vida e de trabalho dependem do acúmulo histórico, não de revoluções (que, por seu turno, destroem os frutos acumulados do trabalho): mas, de qualquer maneira, o trabalho contínuo permanecerá sendo uma das características centrais de todas as sociedades. Assim, a utopia marxista é na verdade uma quimera, que nega a realidade, a permanência e a necessidade do trabalho e, no final das contas, degrada os próprios trabalhadores.

Em terceiro lugar, há um aspecto por assim dizer técnico referente ao trabalho. Um trabalhador qualquer só se torna habilidoso em suas atividades se realizar cotidiana e continuamente suas tarefas, ao longo de bastante tempo. Aliás, não importa que seja um trabalhador; um burguês, um intelectual, um artista têm que desenvolver suas habilidades da mesma forma. Esse desenvolvimento das habilidades requer tanto o trabalho prático, nas atividades laborais cotidianas, quanto o aprendizado de novas técnicas, novas teorias etc., em cursos de aperfeiçoamento. Em outras palavras, para que o trabalho seja bem feito é necessária a especialização dos trabalhadores (e dos burgueses, e dos intelectuais, e dos artistas); ela ocorre não somente em termos individuais, mas coletivos, e o resultado da especialização coletiva é a constituição, e a permanência, das classes sociais. Uma outra forma de entender a especialização é por meio da divisão social do trabalho – e, como os sociólogos não marxistas sabem há muito tempo, uma das consequências da divisão social do trabalho é a complementaridade das relações sociais: cada indivíduo e cada classe fornece às demais o que produz e recebe das demais o que não produz.

Esses erros intelectuais e defeitos morais perpassam as obras de Marx e as de seus herdeiros teóricos e práticos: as dezenas ou centenas de marxismos todas compartilham essas características. Elas não são erros menores ou secundários; esses problemas são centrais, mesmo que não sejam explícitos. Nesses termos, como é possível afirmar, com seriedade, que Marx teria sido um dos maiores pensadores da humanidade? O período em que ele viveu (o século XIX) já tinha elementos suficientes para que ele não incorresse em tais problemas: tanto isso é verdade que muitos outros pensadores fizeram “críticas” da época sem errarem como errou Marx.

Mas é necessário comentar as consequências práticas do marxismo. Nesse aspecto, é necessário falar bem menos: não porque não haja o que dizer, mas porque as suas consequências são desastrosas e elas são sobejamente conhecidas, ainda que os próprios marxistas façam o possível (mas também o imoral) para mudarem de assunto, para fingirem que não produziram desastres e para imputarem aos outros os seus próprios defeitos. (Embora, como observamos antes, um “defeito” seja uma categoria moral – e, para os marxistas, as categorias morais são apenas “preconceitos burgueses”, portanto desprezíveis.)

Comecemos pelo mais conhecido: os crimes de Lênin e Stálin, as invasões à Hungria em 1956 e à Tchecoslováquia em 1968, os grupos terroristas na Alemanha e na Itália entre as décadas de 1960 e 1990, as violências em Cuba, na Albânia, no Camboja, o apoio ao terrorismo árabe etc. Para tudo isso, sugerimos somente duas referências gerais: O passado de uma ilusão, de François Furet, e O livro negro do comunismo, de Jean-Louis Margolin e outros. Os regimes políticos inspirados no marxismo foram, e são, sempre autoritários, cerceadores das liberdades. A seu favor não é nem mesmo possível argumentar a diminuição das mazelas do “capitalismo” – por exemplo, com o chamado Estado de Bem-Estar Social: o Welfare State foi criado para preservar o capitalismo e evitar o comunismo, não o inverso; os propositores do Estado de Bem-Estar eram todos e sempre pessoas imbuídas de todos aqueles valores e preocupações que Marx chamava de “preconceitos burgueses”: isso se torna mais nítido quando se percebe que o Welfare consiste em larga medida em uma política de colaboração de classes, em vez de uma luta de classes. Ao mesmo tempo, a ação direta dos marxistas foi sempre no sentido de incentivar sublevações populares, revoluções, golpes etc. As ocasiões em que os comunistas desenvolveram ações realmente mais progressistas e construtivas foram aquelas em que eles afastaram-se das ortodoxias marxistas: basta ver a Social-Democracia na Alemanha, após a II Guerra Mundial.

De qualquer maneira, podemos reconhecer sem dificuldade que, independentemente das suas ações concretas, a popularidade do marxismo pode servir como uma espécie de “termômetro social” (uma proxy, como se diz nas Ciências Sociais): quanto mais popular o marxismo, presumivelmente piores serão as condições sociais. Evidentemente, disso não se segue que as soluções propostas pelo marxismo devam ser postas em prática.

De qualquer maneira, há um traço intelectual originado com Marx e transmitido pelo marxismo que se perpetuou ao longo do tempo e que se difundiu mundo afora, sendo muito ativo hoje no Brasil; esse traço consiste na combinação das “contradições dialéticas” com a atitude “crítica”. Já comentamos como é que o marxismo lida com as “contradições”; a mera inclusão dessa palavra em um discurso marxista basta para solucionar as maiores e mais gritantes incoerências. Um exemplo é o conceito de “tolerância intolerante”; embora de validade atual, ele foi elaborado no final dos anos 1960 pelo filósofo Herbert Marcuse, de origem alemã mas convenientemente radicado nos Estados Unidos. A tolerância intolerante consiste nisto: como a tolerância é uma virtude burguesa, ela na verdade é mais um preconceito burguês que serve apenas para beneficiar o capitalismo; dessa forma, os adeptos da tolerância intolerante devem ser tolerantes com aqueles que compartilham suas opiniões, mas devem ser intolerantes com quem discorda de suas opiniões; além disso, os adeptos da tolerância intolerante são, por definição, “progressistas” e, inversamente, aqueles que discordam são por definição “fascistas”. Evidentemente, a ideia de “tolerância intolerante” é incoerente e sua aplicação é profundamente autoritária; mas, para vestir uma roupagem “progressista”, basta dizer que ela é contraditória – e aí fica tudo bem.

A atitude “crítica” geralmente é apresentada em um primeiro momento como de “avaliação científica” de alguma realidade (geralmente, uma realidade social); mas o específico do que estamos comentando é que essa avaliação é sempre político-moral, com um viés negativo e um espírito destruidor. O conceito de “capitalismo”, por exemplo, é essencialmente crítico no sentido que estamos expondo: ele não consiste apenas em uma forma de descrever uma certa realidade, mas, além de dizer que a sociedade organiza-se de uma determinada forma, a palavra “capitalismo” também faz uma acusação de que o capitalismo é mal e é sempre dominador-e-explorador. Assim, a atitude “crítica” é uma atitude permanentemente contrária “a tudo que aí está”; ela serve para destruir, para negar, não para avaliar e propor.

É claro que há muitas situações em que é necessário de fato “criticar”: por exemplo, o trabalho escravo nos dias atuais deve ser efetivamente criticado sem remissão. Isso é uma coisa. Mas outra coisa, bem diversa, é sempre criticar, sempre destruir e, de qualquer maneira, sempre reclamar. Além de chatos, os intelectuais críticos são incapazes de propor soluções, de considerar que (de vez em quando!) há avanços, que situações antes ruins tornaram-se melhores, que o que estava menos mal está agora melhor; da mesma forma, os intelectuais críticos são incapazes de avaliar o que quer que seja sem apelar para a quimera comunista, mesmo que implicitamente. Como exemplos concretos de intelectuais marcadas por atitudes “críticas”, nesse sentido, podemos desde já duas intelectuais brasileiras que fazem grande sucesso: Marilena Chauí e Márcia Tiburi. A primeira é ortodoxamente marxista, enquanto a segunda seria uma marxista “pós-moderna”; mas é fácil perceber nos escritos e entrevistas de ambas a forte “criticidade”.

De maneira mais conspícua, podemos dar um outro exemplo de atitude “crítica”: a corrente teórica dos chamados “estudos pós-coloniais”. De acordo com os seus autores, a África, a Ásia e até a América Latina são dominadas desde o século XV até hoje pela Europa e pelo seu sucedâneo, os Estados Unidos – em uma palavra, pelo “Ocidente” –; como são dominadas política, econômica e intelectualmente pelo “Ocidente”, essas regiões devem sublevar-se contra a dominação e o status de “colônia”, desenvolvendo relações sociais, políticas, econômicas e intelectuais “alternativas”. Pouco importa a essa corrente que não há mais colônias ocidentais na Ásia, na África e na América Latina; que muitos dos problemas (embora não todos) por que essas regiões passam têm origem nelas mesmas; que muitos, quando não a totalidade, dos intelectuais “pós-coloniais” estuda, estudou ou trabalha nos mesmos países integrantes do Ocidente que criticam; que – e isto é o mais importante – as condições sociais, políticas, econômicas e intelectuais que permitirão a “emancipação” dessas regiões (liberdades de pensamento, de expressão, de reunião; emancipação das mulheres; trabalho livre etc.) foram criadas e são mantidas exatamente pelo mesmo Ocidente violentamente criticado. Aliás, embora o “Ocidente” tenha sérias responsabilidades sobre diversos problemas atuais – por exemplo, a interferência daninha da Europa em conflitos no Oriente Médio –, os intelectuais do pós-colonialismo fazem um completo e obsequioso silêncio a respeito do neocolonialismo exercido por países asiáticos sobre o resto do mundo (exemplos banais: penetração da China na África, na Ásia e na América Latina; imperialismo russo renovado na Europa, no Oriente Médio e na Ásia); ou das violências que países “colônias” sofrem de seus próprios governantes (como em Cuba e na Venezuela). Tudo isso apresentado sempre de maneira bastante “crítica”.

O que vimos indicando corresponde a traços do pensamento e das práticas do marxismo, mas também do próprio Marx; com a distância que 150 a 200 anos, é sem dúvida nenhuma fácil para nós fazermos essas críticas, mas convém notar que desde o século XIX, ou seja, desde quando o próprio Marx vivia, escrevia e atuava havia autores que indicavam que esses problemas poderiam ocorrer. O mais interessante é que muitas de tais críticas provieram não da “direita”, mas do próprio lado do marxismo – da esquerda anarquista. Tanto Bakunin (Escritos contra Marx) quando Proudhon (Os anarquistas julgam Marx) já denunciavam no século XIX que o marxismo conduziria ao autoritarismo, à alienação dos trabalhadores etc. – sem deixar de notar que o próprio Marx agia de maneira torpe, desonesta, de má-fé com seus adversários (mesmo os adversários anarquistas) (afinal, as virtudes habituais são “preconceitos burgueses”).

Todos esses problemas que indicamos são tanto de Marx quanto das tradições nele inspiradas. Como se vê, não são problemas pequenos ou secundários, mas são grandes e centrais. Fica assim a dúvida: o que há, de fato, para comemorar nos 200 anos de nascimento de Marx? Aliás, como é possível que marxistas exijam, com seriedade, que se tenha generosidade para com Marx no momento de sua avaliação, se essa generosidade sempre foi “criticamente” rejeitada por ele e pelos marxismos?

Embora longo, este artigo não pôde desenvolver outros temas, que deveriam ser abordados. Queríamos antes de mais nada indicar que é difícil, ou impossível, sustentar que Marx teria sido um gênio e um benemérito da humanidade; assim, este artigo lamentavelmente assumiu um aspecto... “crítico”. Mas é fato que uma avaliação minimamente completa de Marx teria que abordar pelo menos dois outros aspectos: (1) quais propostas e meios positivos para solucionar os problemas humanos e sociais? (2) Como entender o “progresso”, considerando que desde o século XX essa concepção é monopolizada pela esquerda e, em particular, pelos marxistas? Notamos antes que os danos causados pelos marxismos ao “progresso” (e à sua idéia-irmã, a de “ordem”) foram imensos; aqui só podemos sugerir a leitura de nosso artigo “Os conservadores à deriva no Brasil” (Gazeta do Povo, 1.4.2018). Já sobre a primeira questão, teremos que aguardar uma nova e mais propícia ocasião.