06 setembro 2022

O verdadeiro antifascismo exige a autocrítica da esquerda

Eu sou antifascista; quem conhece-me sabe disso. Sou a favor da fraternidade e da liberdade, da harmonia e da paz, do desenvolvimento e do progresso. Enfim, sou um positivista.

O que eu escreverei, entretanto, desagradará muita gente.

O fascista e seus acólitos conspurcam, há muito tempo, os símbolos nacionais, a começar pela Bandeira Nacional e seguindo para o Hino Nacional (embora, evidentemente, por felicidade eles desconheçam outros símbolos).

Há gente autodenominada "progressista", gente de "esquerda" que, há algum tempo, tem denunciado essa conspurcação.

Mas a verdade é que a esquerda - os marxistas e outros grupos - tradicionalmente cuspiu nos símbolos nacionais: seriam "burgueses", "imperialistas", "alienantes". Da mesma forma, figuras heróicas, pacifistas, a favor da cooperação nacional e internacional, republicanas foram desprezadas e vilipendiadas em nome da "consciência crítica", da "consciência de classe" etc.: Tiradentes, José Bonifácio, Benjamin Constant, Cândido Rondon. Mas também dos símbolos internacionais: Danton, Jefferson, Toussaint Louverture. Atualmente, o reacionarismo identitário de esquerda inclui aí Colombo, James Cook... até mesmo Churchill!

No lugar dos símbolos nacionais, essas esquerdas sempre apresentaram a efígie de Che Guevara, de Lênin, de Stálin; a foice e o martelo, a Internacional Socialista, a luta de classes.

Desde criança leio, ouço e vejo manifestações reiteradas nesse sentido de políticos e de intelectuais de esquerda, sempre "progressistas". Com frequência ouço e leio que devemos ser "críticos" e que, por isso, "não precisamos de heróis" - com isso querendo dizer que as grandes personalidades da nossa história, aquelas que se dedicaram intensamente ao nosso país e à Humanidade, não merecem respeito nem consideração... mas isso apenas para que, logo em seguida, sejam apontados "heróis" "críticos", que diametralmente negam os valores do bem comum, da fraternidade, da liberdade: não o bem comum, mas o particularismo de classe.

(Quando criança, nos anos 1980, fazer a bandeira nacional na aula de artes era visto como brega, tolo, sem criatividade... talvez até fosse sem criatividade, mas, no final das contas, qual o problema? Na ausência de criatividade, um símbolo que une todos os brasileiros não é um bom exercício?)

Assim, não é à toa que os fascistas conseguem ao mesmo tempo afirmarem-se como "conservadores", "antiprogressistas" e também "patriotas". Se os "progressistas" são particularistas, destruidores e antinacionais, os fascistas têm todo o espaço do mundo para rejeitarem esse "progresso" (que é ao mesmo tempo falso e hipócrita) e serem conservadores (ou, ainda mais: para serem reacionários), mantendo o caráter destruidor e o particularismo (mas o particularismo nacionalista).

O combate ao fascismo no Brasil exige que essa esquerda faça uma autocrítica conscienciosa, profunda e urgente. Se hoje os símbolos nacionais são tomados pelos fascistas, isso implica, sim, culpa da esquerda. O particularismo nacional é afirmado em negação ao particularismo de classe na exata medida em que o particularismo de classe despreza os valores universais que abrangem também os valores nacionais.

No Brasil, mas também na Europa (a começar pela França), o Positivismo sempre foi alvo prioritário dos "progressistas" de esquerda e pelos reacionários de direita - e pelos mesmos motivos. Os positivistas somos a favor da fraternidade, da liberdade, da dignidade, da responsabilidade social, dos deveres, do "viver às claras" - e do pacifismo. Por isso mesmo, somos contra os particularismos de classe, de país, de "raça" e de sexo; somos contra a violência. A esquerda habitualmente foi contra o Positivismo porque somos contra o violento particularismo de classe; a direita é contra o Positivismo porque somos contra o violento particularismo nacionalista. (
Não foi à toa que, no Brasil, o ocaso do Positivismo, no final dos anos 1920, conduziu aos violentos particularismo de classe, de "raça" e de país nos anos 1930-1940.)

Em suma: n
ão é possível ser antifascista e fingir que setores importantes da esquerda não foram antinacionais, que não desprezaram os símbolos nacionais - mesmo e principalmente quando os símbolos nacionais afirmavam a fraternidade, a cooperação, a harmonia, a dignidade. Se isso não ocorrer, de nada adiantará derrotar eleitoralmente o fascismo no ano do bicentenário do Brasil.

Felipe Zorzi apresenta o seu "ecopositivismo"

O cientista político gaúcho Felipe Zorzi defendeu sua tese de doutorado em 2022, intitulada "Democracia e entropia: uma teoria decolonial dos sistemas sociais e um estudo empírico sobre desigualdade no Brasil".

Nessa tese, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a partir de concepções científicas cosmológicas e sociológicas, o autor critica a alienação e a dependência brasileiras, indicando a necessidade de elaborarmos e aplicarmos modelos autóctones de desenvolvimento. Nesse esforço, cumpre-nos também recuperarmos modelos e estratégias que já foram aplicados antes mas que, por diversos motivos - muitos vezes condenáveis -, foram postos de lado. Nesse sentido, o Positivismo surge como uma proposta e uma experiência que cumpre retomar com seriedade. 

Felipe Zorzi é filiado ao Partido Democrático Trabalhista (PDT), em sua seção gaúcha; a pedido do partido, ele realizou uma aula pública, transmitida oralmente via Twitter, no dia 22 de agosto de 2022, em que expôs a sua concepção de "ecopositivismo".

A aula pública ocorrida via Twitter está disponível aqui: https://twitter.com/i/spaces/1BdxYwZkMazGX.

O currículo lattes de Felipe Zorzi está disponível aqui: http://lattes.cnpq.br/0487585070203377.

05 setembro 2022

Monitor Mercantil: Positivismo pró-desenvolvimento e crítico do liberalismo oligárquico

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou, em 23 de julho de 2019, um artigo interessantíssimo em que se recupera e aplica-se o Positivismo à realidade brasileira.

Os autores lembram o quanto o Positivismo, em termos de teoria sociopolítica, afirma com clareza, com todas as letras, a importância central de um Estado republicano com caráter social. Da mesma forma, em termos históricos, os autores lembram as grandes contribuições do Positivismo para o desenvolvimento nacional.

Esse texto é tanto mais interessante quanto os autores não são positivistas. Além disso, o que se evidencia com esse texto é o quanto o Positivismo é necessário nesta época em que a demagogia liberticida assola o Brasil (e o Ocidente) e em que inúmeros intelectuais e grupos sociopolíticos defendem o particularismo, o facciosismo, a nostalgia pelo autoritarismo, a nostalgia pelo liberalismo escravocrata.

Não há dúvida de que vale totalmente a leitura, a reflexão e a aplicação!

O original encontra-se disponível aqui.


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Preparando o Estado para Soberania: crítica ao liberalismo oligárquico

Por Monitor Mercantil -17:36 - 23 de julho de 2019

 

O positivismo, tal como estabelecido por Augusto Comte, preconizava a necessidade de uma reorganização da sociedade em bases científicas, industriais, altruístas e progressistas, ou seja, positivas, partindo do material intelectual e institucional acumulado nas experiências históricas.

O estudo dos fenômenos sociais, considerando a relatividade e as “leis naturais invariáveis” inerentes a eles, devia servir de base para uma ação sobre a realidade, dirigida por um governo forte e centralizado, de modo a impulsionar um conjunto de transformações que favorecessem o aperfeiçoamento coletivo e, portanto, moral, das sociedades e dos seus membros. A etapa definitiva de evolução da humanidade em que isso se daria, a positiva, sucederia a metafísica, que por sua vez havia sucedido a teológica.

As fases teológica e metafísica procuravam determinado fator absoluto de explicação cosmológica. Nelas, o espírito humano buscava a origem e o destino do universo, atribuindo, na primeira, o princípio causal a entes sobrenaturais e, na segunda, a abstrações intelectuais.

Na fase positiva, o espírito humano abdicaria dessa procura e passaria a investigar as leis que governam os fenômenos sociais, isto é, as relações invariáveis de semelhança e sucessão entre eles e que os caracterizam. O relativo substituiria o absoluto e prepararia a humanidade para conhecer adequadamente o seu próprio mundo e reconstruí-lo conforme seus próprios desígnios.

Para Comte, a modernidade até então, ao consagrar princípios individualistas, abstratos e negativos próprios da metafísica liberal (como o contratualismo, o constitucionalismo e o livre-cambismo), não lograra integrar a sociedade, ao contrário, a esfacelara em benefício apenas de oligarquias várias, como as proprietárias, as parlamentares e as intelectuais, essas últimas sobretudo na imprensa.

A ausência de critérios compartilhados de sociabilidade abriu caminho ao arbítrio, manifestado tanto pela “democracia anárquica” quanto pela “aristocracia retrógrada”, ambas incapazes de restabelecer a unidade social necessária ao desenvolvimento comum, ou, em outras palavras, a ordem e o progresso.

A unidade social própria do medievo estaria, para Comte, perdida, mas não de maneira definitiva. A desorganização característica da modernidade ocidental se dava pela transição de um sistema social, o metafísico, para outro, o positivo, no qual adviria a reorganização por ele preconizada.

A unidade a ser alcançada no estágio positivo seria, inclusive, superior ao do medievo, por a sociedade dispor de um grau maior de conhecimento acerca das suas condições e das leis que a regem. A positividade dessa nova fase consistiria, fundamentalmente, no domínio da humanidade sobre si mesma, fazendo prevalecer a ciência sobre a metafísica e o altruísmo sobre o egoísmo.

O proletariado e as mulheres seriam os porta-vozes e os agentes principais dessas mudanças, daí que Comte defendeu, ipsis litteris, as “revoluções” proletária e feminina. Revoluções que, longe de romperem com a ordem, a restabelecessem, fundamentando o progresso vindouro e vinculando-o ao conjunto histórico, que não deveria ser rechaçado, mas elaborado, extraindo dele o impulso para o desenvolvimento social.

A humanidade assumiria, a partir dessa fase, a posição anteriormente atribuída a Deus. A “religião da humanidade”, proposta por Comte, enaltece a imanência da humanidade e sua capacidade de aprimoramento, ao mesmo tempo progressivo e ordeiro.

Não é difícil verificar a incompatibilidade da doutrina positivista, largamente difundida no Brasil entre o final do século XIX e início do XX, com a organização social e institucional existente durante a Primeira República.

Republicanos e abolicionistas inveterados, os positivistas brasileiros não tiveram força política para converter a maior parte de seus ideais em realidade quando da Proclamação da República, ainda que muitos deles fossem presentes em instituições politicamente decisivas como o Exército e tivessem apoiado e mesmo participado da instauração republicana.

O lema presente na bandeira nacional e a separação entre Estado e Igreja consagrada na Constituição de 1891 foram as principais contribuições positivistas em âmbito nacional. No mais, o reformismo político e social positivista, inspirado em Comte, não obteve efetividade prática em âmbito nacional durante a Primeira República, principalmente a partir do governo de Prudente de Morais, que consolidou no comando do país a coalizão agrário-exportadora e mercantil.

O arranjo institucional do período, caracterizado por um federalismo que fortalecia a autonomia dos estados em relação à União e facilitava assim o fenômeno do coronelismo, e o arranjo econômico, organizado sobretudo em torno da produção de café para o exterior e no aprofundamento da dependência para com o capital financeiro e industrial estrangeiro, principalmente inglês e estadunidense, consagravam o pleno domínio das oligarquias primário-exportadoras do centro-sul (particularmente de São Paulo) no comando do país.

Foi um período de vigência de valores e políticas de forte conteúdo liberal, que iam ao encontro das demandas oligárquicas vigentes, exceto quando se tratava de pleitear a proteção do Estado para negócios particulares ligados à cafeicultura, como se verificou no Convênio de Taubaté em 1906.

Nesse contexto, o positivismo, uma das ideologias fundantes da República, assumiu um papel crítico e contestador, análogo ao de Comte em relação à França que vivenciou, propugnando uma organização alternativa do país, consoante os princípios do mestre francês, jamais esquecendo de sua lição acerca da relatividade dos fenômenos sociais, o que estimulou a formulação de propostas adequadas à realidade específica brasileira.

Medidas defendidas pelos positivistas desde o Império, como o fortalecimento do Executivo e a centralização do poder, a função social da propriedade, a emancipação material (para além da formal) dos negros, a mediação do Estado nas relações entre o capital e o trabalho para proteger o segundo e a responsabilização do Estado pela educação pública e pelo desenvolvimento industrial, opostas aos interesses dos grupos dominantes na Primeira República, teriam que esperar a Revolução de 1930 para serem colocadas em prática.

Ainda assim, devido à forte autonomia estadual então existente, foi possível ao Partido Republicano Rio-grandense (PRR), de linha programática positivista, governar o Rio Grande do Sul na contramão do Governo Federal e erigir instituições estaduais mais apropriadas à execução do programa positivista. Como bem assinalou Alfredo Bosi em seu brilhante Dialética da Colonização (Companhia das Letras, RJ, 1992), o positivismo gaúcho antagonizou, em termos de projeto de Estado e de país, com o liberalismo paulista/federal.

A Constituição do estado gaúcho, de 1891, teve o positivismo como sua linha mestra. Poder Executivo forte, educação primária pública e leiga a todos, separação entre Estado e Igreja, abolição de privilégios de nascimento, nobiliárquicos e acadêmicos, estabelecimento de concurso para provisão dos cargos públicos civis e a supressão de todas as distinções entre funcionários públicos e outros tipos de empregados foram aspectos marcantes da Constituição do RS e balizaram o chamado castilhismo, tendência política batizada em homenagem a Júlio de Castilhos, líder do PRR, presidente do RS de 1891 a 1898 e autor dessa Carta, seguida por Borges de Medeiros, presidente do estado de 1898 a 1908 e de 1913 a 1928.

Foram medidas políticas dos governos positivistas gaúchos: o imposto territorial, seguindo a preferência comteana por impostos diretos e desafiando o poder dos grandes fazendeiros, que eram privilegiados no âmbito federal; incentivos fiscais às manufaturas gaúchas infantes, dentro de um projeto industrialista liderado pelo governo, contrastando com a opção primário-exportadora da Primeira República desde Prudente de Morais, quando as oligarquias paulistas conseguiram derrotar o desenvolvimentismo avant la lettre de Rui Barbosa e de Floriano Peixoto; a socialização dos serviços públicos, com a defesa explícita de Borges de Medeiros, em sua Mensagem de 1913, da municipalização de serviços essenciais como água, esgoto, iluminação, energia elétrica, bondes e ferrovias.

A estatização do porto do Rio Grande e da belga Compagnie Auxiliaire de Chemins du Fer au Brésil se contrapunha ao privatismo do Governo Federal, que manteve a política prevalecente no Segundo Império de subordinação da infraestrutura ao capital estrangeiro.

Também no âmbito trabalhista, o positivismo gaúcho opôs-se frontalmente ao liberalismo oligárquico federal. No programa do Partido Republicano Histórico, Júlio de Castilhos defendia uma série de medidas que anteciparam boa parte da legislação trabalhista implementada por Vargas desde a década de 1930, contradizendo assim o lamentável folclore da inspiração “fascista” das leis do trabalho: o regime de 8 horas de trabalho na indústria, férias, aposentadoria, proteção aos menores, mulheres e idosos, direito de greve e um tribunal de arbitragem para resolução de conflitos entre patrões e empregados, tudo isso já constava no ideário castilhista.

Enquanto os governos Federal e paulista reprimiam violentamente as greves operárias de 1917, o governo gaúcho negociou com os grevistas e induziu os patrões no estado a aceitarem as reivindicações dos trabalhadores (Bosi citado, cap. 9).

Também o engenheiro paraense Aarão Reis, positivista e socialista, contribuiu enormemente para a oposição ao status quo oligárquico da Primeira República, ao defender, em compêndio de economia política adotado oficialmente na Escola Politécnica, a maior intervenção e direção do Estado na economia e da sociedade a fim de estimular a industrialização, proteger o trabalho da coerção do capital, fomentar o mercado interno e o associativismo civil, e promover “carinhosamente” a educação popular no sentido do aperfeiçoamento da cidadania e do patriotismo no âmbito de uma organização democrática da sociedade (Antônio Paim, “O Pensamento Político Positivista na República”, In: Adolpho Crippa (org.) As Idéias Políticas no Brasil, vol. II, Editora Convívio, RJ, 1979, p. 59-61).

Pode-se, portando, concluir que cabe ao positivismo brasileiro no Segundo Império e na Primeira República, aplicado na política nos governos estaduais gaúchos durante essa última, a formulação de um projeto alternativo ao que era dominante no período.

Nesse projeto constava a edificação de país soberano, desenvolvido e socialmente igualitário, dirigido a partir de um Estado forte e centralizado que coordenasse a totalidade da Nação para equilibrar e harmonizar os grupos sociais particulares e estabelecer um planejamento de longo prazo, acima dos interesses privados e tendo por fim a construção nacional em bases industriais e solidárias.

A gênese do Estado social e nacional-desenvolvimentista, triunfante entre 1930 e 1980 (apesar de recuos e nuances ao longo do período) em oposição ao liberalismo oligárquico prevalecente em quase todo o período republicano anterior, pode enfim ser localizada na teoria e na prática positivistas nas décadas anteriores à emergência de Vargas como líder político nacional.

O castilhismo, a principal vertente política do positivismo em sua versão gaúcha, foi o berço do trabalhismo de Getúlio Vargas e Leonel Brizola. Assim como o conjunto do positivismo, tem ainda hoje muito a iluminar acerca dos problemas nacionais brasileiros e da formulação e encaminhamento de soluções integradas em um projeto de desenvolvimento nacional.

 

Felipe Quintas

Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Gustavo Galvão

Doutor em economia, é autor de As 21 lições das Finanças Funcionais e da Teoria do Dinheiro Moderno (MMT).

Pedro Augusto Pinho

Administrador aposentado.