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21 dezembro 2021

Moralidade podre de "Homem-Aranha: sem volta para casa"

(ATENÇÃO: FAÇO REFERÊNCIAS À TRAMA. OU SEJA: DIVULGO SPOILERS.)

Assisti ao filme Homem-Aranha: sem volta para casa. Estava ansioso por isso - tanto pelo filme em si, que prometia por exemplo um retorno parcial do Tobey Maguire (o primeiro Homem-Aranha no cinema), quanto porque não ia ao cinema desde o início da pandemia.

Enfim, o filme é tudo o que prometeram e muito mais, tendo encontros inesperados, muitos momentos divertidos e também muito drama e choro. (E muitas cenas extremamente violentas.)

Mas já na metade do filme fiquei muito irritado. A moralidade apresentada é a típica moral de super-heróis: destroem tudo o que há pela frente e as únicas considerações pelos demais referem-se às pessoas ao redor (amigos e família); além disso, todas as decisões de âmbito público são tomadas na mais estrita esfera privada (ou melhor, no mais completo segredo). Se morre alguém próximo aos "heróis", a reação é imediata e violenta; se qualquer outra pessoa morre, ninguém dá a menor atenção. E, claro, quem exige que os "super-heróis" sejam responsabilizados por suas condutas é tratado como adversário, ou melhor, como inimigo ou até "vilão".

Mas o filme Homem-Aranha: sem volta para casa dá um passo além mesmo nessa odiosa moralidade de "super-heróis": enquanto nos filmes anteriores havia "vilões" que realmente agiam de maneira negativa e os super-heróis limitavam-se a reagir, neste filme todas as ações negativas decorrem das decisões conscientes do próprio Homem-Aranha, "aconselhado" ou não por sua tia e/ou por seus amigos. Essas decisões incluem (1) duas tentativas de lavagem cerebral em todo o planeta; (2) a libertação de cinco perigosíssimos criminosos; (3) a destruição de monumentos públicos, prédios residenciais, pontes e estradas e muitos e muitos carros; (4) o combate a quem deseja evitar todos esses problemas.

Para não ser injusto, há dois momentos em que o filme muda um pouco essa moralidade de super-herói. O primeiro momento é quando Peter Parker decide tentar mudar os vilões, revertendo os acidentes que os transformaram em vilões: essa decisão em si é bastante generosa, mas, ainda assim, no contexto do filme, ela é irrefletida e inconseqüente; em outras palavras, ela é absoluta e infantil. O segundo momento é quando a tia May repete para Peter Parker a bela fórmula "grandes poderes trazem grandes responsabilidades". No conjunto do filme essa fórmula não tem nenhuma conseqüência, mas a fórmula em si é correta e relativa - e, aliás, é de origem positivista (https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/.../gran...). No fim das contas, esses dois momentos acabam reafirmando os problemas da moralidade de super-heróis, seja porque (no primeiro momento) essa moralidade é reafirmada, seja porque (no segundo momento) de fato a moralidade verdadeira, que não é a dos super-heróis, não é aplicada.

Em suma, a moralidade apresentada e desenvolvida no filme é absoluta, infantil - e não consigo pensar em outra palavra que não seja "podre". Não dá para gostar de um filme assim.

(A qualidade técnica do filme - realmente excepcional - não muda nem evita os graves problemas acima. Na verdade, essa qualidade técnica apenas realça os problemas, na medida em que está a serviço dessa moralidade podre.)

06 agosto 2021

Sobre a moralidade das séries e dos super-heróis

É possível usarmos séries de super-heróis para pensarmos sobre moralidade individual e coletiva?

Não somente é possível como é necessário. Isso porque o comum das pessoas não se dedica à reflexão sistemática sobre as coisas morais, limitando-se a apenas as praticar e seguir a moralidade corrente. Não há nisso nenhuma crítica; não há porquê nem como que todos sejam filósofos.

Enfim, se o comum das pessoas pratica a moralidade corrente, isso nos dias atuais significa que são influenciadas pela moralidade exposta pelos meios de comunicação; não é por outro motivo, por exemplo, que as novelas brasileiras de Glória Peres procuram sempre “conscientizar” a audiência a respeito de “temas sociais”, assim como o seriado estadunidense Lei e Ordem – SVU procura “amplificar as vozes” (como afirma a propaganda do canal Universal, a respeito das séries produzidas por Dick Wolf).

Pois bem: há alguns dias assisti ao seriado Wanda Visão, do serviço Disney +. (Assinei tal serviço, por apenas um mês, só para ver esse seriado e mais alguns produzidos pelos estúdios Marvel.)

Em termos de qualidade da produção, a série é excelente: tudo muito bem feito, bonito, elaborado. O roteiro também impressiona, especialmente porque se decidiu que a primeira metade da série, ou seus primeiros 2/3 (de um total de nove), imitaria séries cômicas antigas, em que cada episódio da séria corresponderia a uma década (começando nos anos 1950 e indo até os anos 2000).

Até aí, tudo bem. Mas é no final da série, em particular no seu episódio final, que estão os problemas, em número de pelo menos dois:

(1)   por um lado, uma agência governamental verifica que uma cidade inteira – cidade pequena, com cerca de 3.600 habitantes, mas, enfim, uma cidade inteira – foi feita de refém e que seus habitantes sofreram lavagem cerebral; portanto, essa agência tem que libertar esses cidadãos. Após algumas investigações, identifica o seqüestrador na figura de Wanda (a suposta heroína) e adequadamente passa a tratá-la como inimiga, bem ou mal agindo conforme essa nova premissa. Com isso a narrativa da série muda a abordagem a respeito dessa agência governamental: de heróis passam a vilões, apenas porque decidiram perseguir, talvez eliminar, uma criminosa. Em concordância com isso, as personagens secundárias passam a rebelar-se contra a agência “malvada”, sublevando-se, sabotando a agência e até auxiliando a criminosa. No episódio final da série, a condição “malvada” da agência governamental é confirmada e, de maneira correlata, as personagens que apoiaram a criminosa são deixadas ilesas.

(2)   Por outro lado, e em concordância com os fatos acima, a criminosa – mais uma vez: uma seqüestradora em massa que faz lavagem cerebral – mantém sua condição de “heroína”, mesmo que seja uma heroína problemática, sujeita a variados e profundos traumas; mas, de modo central para o que nos interessa, os seus traumas justificam, desculpam e redimem todos os seus crimes. Aliás, mais do que isso: a heroína-criminosa sai impune e as personagens secundárias, que haviam sabotado os esforços para neutralizar a criminosa, acabam concordando com os valores, os sentimentos e a conduta dessa criminosa. Essa concordância dá-se em bases estritamente individuais, ou melhor, individualistas: “se eu estivesse na sua situação e se tivesse os seus poderes, com certeza faria algo bem parecido”; nenhuma palavra sobre seqüestro e lavagem cerebral de 3.600 pessoas, nem sobre depredação de bens (sim, pois, afinal, há sempre “lutas” e “batalhas” que destroem tudo ao redor).

Qual o problema de fundo nisso tudo? Quais os problemas com a moralidade exposta acima?

Os “super-heróis” são indivíduos que realizam grandes feitos, a partir de habilidades extremamente extraordinárias (capacidade de vôo, superforça, resistência física descomunal, superinteligência, emissão de raios pelos olhos e pelas mãos etc. etc.), sendo que esses grandes feitos consistem basicamente em lutas físicas de proporções gigantescas. Qualquer consideração adicional ou é desconsiderada ou é vista como um empecilho (indevido e imoral) à ação dos super-heróis. O que está no caminho dos super-heróis pode e deve ser desconsiderado, ignorado ou, no limite, destruído: leis, instituições, prédios, pessoas; claro que essa possibilidade só é dada aos super-heróis, sendo negada aos “supervilões”. Caso haja desastres, os super-heróis devem caçar os supervilões; mas, no caso de os próprios super-heróis causarem esses desastres, suas responsabilidades são ignoradas (como se não tivessem ocorrido desastres) ou são minimizadas (com a recorrente afirmação de que “não foi culpa sua”) (nas raras vezes em que os heróis são responsabilizados, rapidamente são reintegrados à atividade legítima, sem maiores implicações – e, de qualquer maneira, sempre com o viés de que são mais vítimas que criminosos).

Os super-heróis são uma criação estadunidense. A ênfase a ser dada na definição acima é no “indivíduo”: só o indivíduo importa, todo o resto (isto é, tudo ao redor, seja sociedade, sejam objetos físicos) sendo apenas “resto” e/ou empecilho. Em outras palavras, a moralidade própria aos super-heróis é caracteristicamente estadunidense: super-individualista, antissocial (e, deve-se também notar, anti-histórica), autocentrada.

O agressivo e irresponsável individualismo dos “super-heróis”, exemplificado à perfeição na série Wanda Visão, fica mais evidente quando contrapomos essas figuras estadunidenses a outras criações, também ocidentais mas “antigas.

Os heróis gregos – por exemplo, Hércules – e os heróis medievo-modernos – por exemplo, El Cid – são “heróis” não necessariamente porque possuem habilidades extraordinárias, mas porque realizam grandes feitos. Esses grandes feitos são “grandes” porque envolvem dificuldades enormes, insuperáveis e insolúveis pelo comum dos seres humanos, mas, mais do que isso, são dificuldades que envolvem a coletividade, os seus vínculos e as obrigações daí decorrentes. Em outras palavras, são problemas que implicam as individualidades dos heróis mas que só ganham sentido porque são problemas coletivos; as individualidades só se realizam na medida em que se vinculam aos vários níveis e âmbitos da sociedade.

Mais: o caráter heróico dos heróis aumenta, ou consolida-se, ou mesmo se realiza, na medida em que os heróis têm que se submeter às regras e às sanções morais coletivas. Hércules e El Cid são exemplares nesse sentido: os 12 trabalhos de Hércules, nos quais labutou por mais de dez anos, foram uma expiação por um terrível crime (pelo qual, aliás, ele não foi propriamente "responsável" – a morte de sua esposa e de seus filhos em um acesso de loucura causado pela deusa Hera); já El Cid – pelo menos na poderosa versão de Corneille – vê-se na contingência de não poder casar-se com sua amada porque ambos estavam presos a fortes laços morais e familiares. Essas dificuldades aumentam muito o valor moral e a nobreza de Hércules e de El Cid e é por elas que eles são verdadeiramente conhecidos e valorizados.

Os heróis gregos eram, realmente, superiores ao comum dos mortais; mas aí temos Ulisses, que, embora fosse um grande guerreiro, distinguia-se de fato apenas pela astúcia. O seu valor é dado, na Ilíada, pelos serviços que presta à causa helênica; já na Odisséia o seu valor é de fato mais individual, mas mesmo assim se vincula de maneira inegável e indissolúvel aos seus laços sociais (o amor pela esposa Penélope, a amor por seu filho Telêmaco, a preocupação com seus súditos na pequena e pedregosa Ítaca); mesmo o desafio à autoridade e à existência dos deuses tem, claramente, um sentido social, como fica evidente na preocupação da deusa Palas Atena que o destino de Ulisses sele o destino dos próprios deuses.

Coroando o caráter social das individualidades dos heróis antigos e modernos, o que se vê em todas as grandes tragédias é o drama enfrentado por seus protagonistas para cumprirem suas responsabilidades, quer eles desejam-nas mas sejam impedidos (ou seja-lhes fatal), quer eles não as desejem mas vejam-se obrigados a cumpri-las. As responsabilidades, ou melhor, as responsabilizações correspondem, o mais das vezes, à afirmação dos vínculos sociais; os protagonistas das grandes tragédias aceitam suas responsabilidades e lidam com suas conseqüências, por mais duras que elas sejam (e elas sempre são duríssimas). (Pensemos em Antígona, primeiro exilada com seu pai Édipo (em Édipo rei) e depois condenada à morte por insistir em realizar os funerais de seu irmão Polinice, considerado traidor de Tebas (em Antígona). Pensemos também no titã Prometeu, que, fiel à sua natureza oracular, sabe de antemão que suas ações em prol dos seres humanos custar-lhe-ão duras e prolongadas punições; mas, mesmo assim, aceita com altivez e orgulho o fardo de seu comportamento (em Prometeu acorrentado).)

Enfim, retornemos a Wanda Visão: a sua moralidade extremamente individualista tem que ser qualificada como um defeito – um defeito profundo e próprio à mentalidade dos EUA. Esse defeito choca-se com a alta qualidade técnica (“plástica”) da série. Inversamente, a qualidade técnica acentua o defeito moral e, bem vistas as coisas, essa própria qualidade técnica avilta-se ao servir de veículo para uma moralidade desprezível.

É essa moralidade que é servida – pela Disney, conhecida por seu suposto “moralismo” e seu suposto conservadorismo moral! – para consumo popular nos EUA e, daí, por extensão, para o resto do mundo.

26 junho 2015

"Grandes poderes trazem grandes responsabilidades": Homem-Aranha positivista?!

A matéria abaixo, publicada pelo jornal eletrônico BBC-Brasil, merece a leitura e a reflexão - não a respeito do problema que estava sendo disputado - a manutenção ou o fim dos direitos intelectuais de uma invenção -, mas a respeito da frase que a Juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos citou para embasar sua decisão.

De fato, a frase "com grandes poderes vêm grandes responsabilidades" é familiar aos aficcionados por gibis e, em particular, pelo Homem-Aranha; essa frase era dita pelo tio Ben, que era tio de Peter Parker (o alter ego do Homem-Aranha). 

O que deve ser notado, todavia, é que essa frase não é do "tio Ben" - nem, por extensão, do criador do Homem-Aranha, Stan Lee -; na verdade, ela é do fundador do Positivismo, Augusto Comte, que nos quatro volumes do seu monumental Sistema de política positiva (1851-1854) repete-a inúmeras vezes.

Qual o sentido da frase de Comte? Ela estipula que os poderosos - isto é, aqueles que têm poder e riqueza - devem agir de maneira a beneficiar a sociedade e não a usufruir egoisticamente seus recursos. Em associação a esse raciocínio, está a observação de Comte de que a riqueza é socialmente produzida e, portanto, deve ser revertida em benefício da sociedade.

A afirmação da responsabilidade social dos ricos e dos poderosos acompanha, implícita e explicitamente, o reconhecimento de que a riqueza e o poder político concentram-se em alguns grupos sociais - o que, bem vistas as coisas, não é uma observação chocante em si mesma, sendo o mais puro senso comum político e sociológico. O problema, claro, surge quando se afirma que a riqueza e o poder político devem ser distribuídos por toda a sociedade, de modo igual para todos, deixando de lado qualquer consideração sobre as possibilidades de geração e aumento da riqueza, por um lado, e sobre em que consiste exatamente o poder político, por outro lado. 

Em suma, esse tipo de raciocínio só pode ser formulado por aqueles que não perdem tempo e recursos preciosos sendo contra o capital e o Estado, mas que se preocupam com o emprego socialmente responsável dessas instituições.

Em todo caso, não deixa de ser curioso como, ao repetir essa frase, o Homem-Aranha revela-se positivista!

A publicação original da matéria pode ser consultada aqui.

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Suprema Corte dos EUA cita Homem Aranha ao proferir decisão
  • 22 junho 2015


A 'arma' do Homem Aranha para lançar teias foi objeto de um processo judicial nos Estados Unidos movido pelo inventor da 'ferramenta' contra a empresa criadora do super-herói

Em um 'recadinho' especial para os fãs de quadrinhos, a Suprema Corte americana usou várias referências ao famoso desenho do Homem Aranha em uma decisão judicial envolvendo um processo contra a própria Marvel Comics, criadora do personagem.
A decisão foi favorável à empresa de entretenimento em uma batalha legal com o inventor da luva que dispara fios de espuma, Stephen Kimble – a invenção interessou a criadora do Homem Aranha para o super-herói utilizá-la na hora de "disparar" suas teias.
"Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades", escreveu a juíza Elena Kagan, fazendo referência à frase de Benjamin Parker, o "Tio Ben" do Homem Aranha na história em quadrinhos.
A Marvel comprou a patente das luvas em 2001 e aceitou pagar uma porcentagem sobre os produtos vendidos que usassem este sistema. A batalha legal agora era a respeito da continuidade do pagamento dos royalties – a Marvel diz que a patente expirou em 2010, enquanto o inventor das luvas alega que o acordo era pelo pagamento da porcentagem "para sempre".
"As partes não estabeleceram uma data final para o pagamento de royalties, aparentemente considerando que ele iria continuar enquanto as crianças quisessem imitar o Homem Aranha (fazendo tudo o que uma aranha pode fazer)", escreveu Kagan.
A frase tem outra referência à história em quadrinhos, tirada da música tema do programa de TV do Homem Aranha em 1967. A letra da música em inglês dizia exatamente o que foi mencionado pela juíza no fim "Spider-Man, Spider-Man, does whatever a spider can" ("Homem Aranha, Homem Aranha, faz tudo o que uma aranha pode fazer", na tradução livre).
O caso foi decidido com uma votação de 6 a 3 em favor da Marvel.
No julgamento, a Marvel mencionou uma decisão judicial de 1964 nos Estados Unidos que libera as empresas de pagarem patentes que já expiraram.
Kimble pedia, porém, que a Justiça passasse por cima da decisão anterior da Corte americana. Ao final, a juíza reconheceu que o Tribunal poderia passar por cima de decisões anteriores, mas que isso deveria ser usado "com moderação".
O inventor da luva já ganhou mais de US$ 6 milhões da Marvel em pagamentos de royalties pelo brinquedo.