Mostrando postagens com marcador ciência. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador ciência. Mostrar todas as postagens

14 maio 2024

Sobre a liberdade absoluta de consciência

No dia 23 de César de 170 (14.5.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos a crítica de Augusto Comte ao dogma da consciência ilimitada de consciência.

Além disso, fizemos nossas exortações habituais e lembramos algumas datas importantes:

1) Sejam altruístas: o altruísmo não tem limites e tudo pode e deve ser objeto do altruísmo. O desastre ambiental que está tendo curso no Rio Grande do Sul exige, em particular, que todos sejam altruístas neste momento. No dia 8 de maio fizemos um apelo altruísta em favor do Rio Grande do Sulhttps://acesse.dev/Uhtbm.

2) Façam orações: as orações positivistas, que são formas ativas de meditação, devem ser feitas três vezes por dia (ao acordarmos, antes de dormirmos e no meio dia); além disso, as orações positivistas não são interessadas nem interesseiras, mas são formas de reconhecimento de dívidas de gratidão: dessa forma, elas são exercícios de altruísmo.

3) Façam o Pix da Positividade, contribuindo para a Igreja Positivista Virtual. A nossa chave pix é esta: ApostoladoPositivista@gmail.com.

4) No dia 11 de maio celebrou-se o aniversário da fundação da Igreja Positivista do Brasil, ocorrido em 1881.

5) No dia 12 de maio celebrou-se o Dia das Mães: embora seja uma data comercialista, bem ou mal ela celebra uma importante função social, uma fonte e um símbolo eterno de amor, carinho e dedicação. Embora a anarquia moderna, na forma da metafísica feminista, despreze o ideal da maternidade, a moral positiva estabelece como símbolo da Humanidade uma mulher que é também mãe.

6) No dia 13 de maio celebrou-se a abolição da escravidão no Brasil, ocorrida em 1888. Essa data celebra o fim do desprezível cativeiro dos brasileiros originários da África e, com isso, também celebra a união dos três principais grupos que constituem o Brasil (os portugueses, os índios e os africanos). A Igreja Positivista do Brasil também estabeleceu essa data para celebrar a memória do líder republicano, proclamador da independência do Haiti, o ex-escravo Toussaint Louverture.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/X3Pnb) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/5YrQa). O sermão começou aos 45 min 40 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *


Sobre a liberdade absoluta de consciência 

-        Há um tema importante ao Positivismo que, por vezes, como infelizmente acontece também com outros temas, há incompreensões e interpretações equivocadas: a “liberdade ilimitada de consciência” é um deles

o   Augusto Comte tratou desse tema desde o início de sua carreira – por exemplo, no “Sumária apreciação do conjunto do passado moderno” (de 1820) e no “Considerações sobre o poder espiritual” (de 1826) há referências diretas e explícitas a ele

o    Augusto Comte usava a expressão “liberdade ilimitada de consciência”; mas como essa expressão pode gerar confusão, eu prefiro usar às vezes “liberdade absoluta de consciência” – pois, além de evitar confusões desnecessárias, essa fórmula descreve mais acuradamente o problema

§  Em todo caso, a leitura direta das observações de Augusto Comte basta para esclarecer a expressão e evitar qualquer confusão a respeito

-        O tema da “liberdade absoluta de consciência” envolve aspectos morais, intelectuais, políticos e históricos de maneira muito direta; ele tem conseqüências (ou reflexões) muito importantes no Positivismo

o   Neste sermão, adotaremos inicialmente uma exposição histórica para, a partir dela, tratarmos filosoficamente do tema

-        A primeira observação que temos que fazer é a seguinte: todo ser humano tem capacidade de reflexão autônoma e procura entender o mundo ao seu redor; isso é um esforço que se faz para cada um localizar-se no mundo, entender como é que as coisas funcionam e, a partir disso, agir

o   Assim, cada um de nós e todos temos liberdade de pensamento, que também podemos chamar de “autonomia” (alguns sociólogos contemporâneos chamam-na de “agência”)

o   É claro que ao longo do tempo e conforme as sociedades varia essa autonomia individual: algumas sociedades são mais restritivas, outras menos

o   Mas a autonomia individual não é uma questão puramente individual, no sentido de que não se trata apenas da “liberdade de consciência”, que é algo que com freqüência é reduzido à oposição simples e binária entre “indivíduo” e “sociedade”

§  A concepção individualista entende que cada ser humano existe por si só no universo, que se torna adulto sozinho, que suas idéias e seus valores são os mesmos em qualquer parte do mundo – e, coroando essas tolices, o individualismo entende que o indivíduo está sempre ameaçado por agrupamentos de outros indivíduos (sejam eles meras coalizões passageiras, sejam eles a temível “sociedade”)

o   Na verdade, em outras palavras, é necessário adotarmos uma perspectiva sociológica – que, aliás, é a que o Positivismo adota

§  Adotar uma perspectiva individual (e individualista) para entender essa questão produz apenas concepções irracionais e imorais, ou seja, não se entende a questão, surgem problemas insolúveis e suas conseqüências sociais e políticas são desastrosas (e injustas)

-        Adotando-se a correta perspectiva sociológica, temos que ter muito em mente que ninguém nasce sabendo nada e acreditando em nada; só conhecemos e acreditamos em coisas porque aprendemos ao longo do tempo, ou seja, com a sociedade

o   Além disso, no processo de aprender está sempre implícita – às vezes, implícita demais – a confiança nos demais e, em particular, naqueles que nos ensinam e transmitem conhecimentos e valores

o   Da mesma forma, seja porque nossas concepções quaisquer seguem aquelas que aprendemos de outrem (e, novamente, entra aí a confiança), seja porque precisamos de estabilidade nas concepções, o fato é que é necessário que haja interpretações e concepções socialmente estabelecidas, compartilhadas e estáveis

§  Essa necessidade vale para toda e qualquer sociedade; isso não tem nada a ver com “autoritarismo”, “intolerância” e/ou “falta de progresso”

o   De qualquer maneira, uma das conseqüências dessa necessidade de concepções compartilhadas é a constituição do poder Espiritual

§  O poder Espiritual tem funções ao mesmo tempo sociais e políticas, filosóficas e didáticas, além de funções morais: em outras palavras, ele é o responsável por elaborar, sistematizar e transmitir idéias e valores

§  A importância da separação entre os dois poderes (o Temporal e o Espiritual) fica bastante evidente aí: se há união entre os dois poderes, as idéias e os valores serão impostos ao público com o peso da lei

o   De um modo geral, podemos dizer que quanto maior a confiança do público no poder Espiritual, maior a liberdade de que goza esse público; ou, dito de outra maneira, quanto mais frágil o poder Espiritual absoluto, mais ele tenderá a buscar o apoio do poder Temporal para ser imposto

§  Como observava Augusto Comte, as crenças absolutas tendem a procurar governos autoritários

-        As crenças teológicas (em particular as monoteístas) são ao mesmo tempo absolutas e fictícias, de tal sorte que elas não são passíveis de comprovação e lidam muito mal com a discussão – embora, por outro lado, de maneira contraditória, na medida em que não são passíveis de comprovação, elas estimulam muito as discussões, que não têm fim

o   Essas características intelectuais da teologia (monoteísta) por si só exigem a constituição de um poder Espiritual organizado, para regular e disciplinar as crenças

-        Durante a Idade Média, as crenças teológicas foram reguladas pela igreja católica, que, por sua vez, gozava de ampla confiança

o   A igreja regulava as concepções, estabelecendo as linhas gerais do que era ou não aceitável

o   Devido às características de ficção e de absolutismo da crença teológica, nos séculos iniciais da igreja houve muitas disputas filosóficas; embora muitas concepções afirmadas baseassem-se no bom senso, na medida em que atrapalhavam a racionalidade do dogma (e o dogma cristão é profunda e necessariamente irracional e confuso), elas foram proscritas – eram as heresias

o   Também há que se notar que os próprios doutores da igreja com freqüência percebiam as dificuldades intelectuais e morais do próprio dogma; por isso, essas dificuldades tinham que ser atenuadas ou simplesmente postas de lado, em particular quando se tratava das aplicações práticas

§  Assim, tinha lugar a “sabedoria prática” de muitos sacerdotes, muitas vezes dos próprios papas

o   Mas, estabelecidas as diretrizes gerais do dogma, ou seja, identificadas e suprimidas as heresias, estabeleceu-se um amplo terreno para discussão e especulação

§  É nesse sentido que Santo Agostinho (354-430) propôs esta bela frase: “No essencial, a unidade; na dúvida, a liberdade; em tudo, a caridade”

o   O governo espiritual da igreja dava-se, então, por meio da educação; as interpretações individuais subordinavam-se à interpretação da igreja

§  Nesse sentido também devia ser entendido a fórmula “Extra ecclesiam nulla salus” (“fora da igreja não há salvação”)

o   Por fim, vale notar que o governo espiritual da igreja dava-se também pelo princípio – mais ou menos implícito, mais ou menos explícito – da infalibilidade papal

-        A decadência da ordem católico-feudal conduziu à desmoralização progressiva das concepções teológicas

o   Essa desmoralização foi estimulada por diversos motivos: relativismo intelectual, moral e prático derivado das cruzadas; reintrodução no Ocidente, por intermédio dos árabes, da cultura grego-romana; desenvolvimento das ciências

o   Tudo isso conduziu a uma emancipação mental cada vez mais acentuada

§  A emancipação mental significa deixar de acreditar na divindade e/ou de raciocinar em termos sobrenaturais e extra-humanos

o   A liberdade mental evidentemente aumentou muito nesse sentido

§  Vale notar que apenas a partir daí – da sua decadência – a igreja católica constituiu de verdade o tribunal do santo ofício, isto é, a inquisição

-        O processo de destruição do governo espiritual da igreja foi espontâneo nos primeiros dois séculos da idade moderna, ou seja, nos séculos XIV e XV; a partir do século XVI, ele tornou-se sistemático

o   O processo espontâneo correspondeu diretamente à emancipação mental, ou seja, o ser humano tendeu cada vez mais à “secularização”, à “laicização” mental

o   O processo sistemático assumiu um caráter propriamente destruidor, em que a emancipação tornou-se secundária em relação à destruição

§  Isso fica evidente no protestantismo, cuja preocupação é ser anticatólico em vez de emancipar mentalmente os seres humanos; a liberdade por ele promovido é claramente anárquica

-        Nos dois trechos abaixo Augusto Comte resume esse processo:

o   Citação de “Sumária apreciação do conjunto do passado moderno”[1]:

“Preparada, ou, para melhor dizer, reclamada como indispensável, por esse estado de coisas, a revolução francesa explodiu, e tomou, desde a sua origem, uma falsa direção, havendo destruído a realeza. Não tardou, entretanto, esta última a reconstituir-se, porque, sendo, em França, a cabeça e o coração do antigo sistema, só com ele pode extinguir-se, assim como um sistema não pode ser extinto senão quando outro já existe completamente formado e pronto para substituí-lo.

O resultado final de todo esse grande abalo foi a abolição dos privilégios, a proclamação do princípio da liberdade ilimitada de consciência e, por fim, o estabelecimento da constituição inglesa outorgada pelo próprio poder real.

A abolição dos privilégios não fez senão completar a ruína do feudalismo e reduzir inteiramente o poder temporal apenas ao do rei.

A proclamação do princípio da liberdade ilimitada de consciência aniquilou completa e irrevogavelmente o poder espiritual[2]”.

o   Citação de “Considerações sobre o poder espiritual”[3]:

“Em todo o curso desse período [séculos XVI a XVIII], que se pode, com todo direito, qualificar de revolucionário, todas as idéias anti-sociais foram agitadas e transformadas em dogmas, a fim de serem empregadas, de maneira contínua, na demolição do sistema católico e feudal, e reunir, contra ele, todas as paixões anárquicas que fermentam no coração humano, e são, nos tempos normais, comprimidas pela preponderância de um regime social completo.

Assim, o dogma da liberdade ilimitada de consciência foi criado, a princípio, para destruir o poder teológico; em seguida, o [dogma] da soberania do povo para derrubar o poder temporal; e, por fim, o [dogma] da igualdade, para dissolver a antiga classificação social, sem falar das idéias secundárias, menos importantes, que constituem a doutrina crítica, dentre as quais cada um procurava demolir uma peça correspondente do antigo sistema político.

[...]

Por uma fatalidade irresistível, os diversos dogmas de que se compõe a doutrina crítica não puderam adquirir toda a energia que lhes era necessária para preencherem completamente seu destino natural, a não ser tomando um caráter absoluto, que os tornou necessariamente hostis, não apenas ao sistema que tinham de destruir, mas relativamente a qualquer sistema social [...]”.

-        A destruição direta da autoridade moral foi necessária: o instrumento intelectual disso foi, justamente, o dogma da liberdade ilimitada de consciência

o   Ao destruir o governo espiritual anteriormente vigente e proclamar a autossuficiência individual, o dogma da liberdade absoluta de consciência estabelece propriamente a anarquia mental, ou seja, a ausência de parâmetros compartilhados e respeitados

§  Na verdade, é pior do que pode parecer à primeira vista, pois esse dogma não apenas estabelece a anarquia mental como postula que a anarquia é o estado normal do ser humano

o   Esse dogma proclama que cada indivíduo é sempre e suficientemente capaz de avaliar qualquer coisa por si só, independentemente de qualquer preparação específica e prévia para isso

o   Em outras palavras, o dogma da consciência ilimitada (ou absoluta) de consciência erige sistematicamente a arrogância em padrão de conduta mental

o   Além de violentamente arrogante e individualista, esse dogma conduz naturalmente à rejeição da confiança mútua: afinal, não há porque os indivíduos confiarem nos demais para afirmarem suas próprias idéias

-        O agente concreto da destruição do antigo poder Espiritual e da afirmação do dogma da liberdade absoluta de consciência foram os protestantismos

o   As supostas inovações de Lutero foram basicamente destruições da autoridade intelectual da igreja; as críticas que ele fez à igreja já tinham sido feitas antes, por outros pensadores seculares ou teológicos, sem compartilharem o caráter destruidor do monge alemão

o   A par do seu caráter destruidor, o protestantismo não afirmou a liberdade de consciência nem a emancipação mental – nem mesmo a liberdade política, como os exemplos de Lutero, Calvino e outros ilustram com clareza

§  Em relação à liberdade política, basta lembrar que Lutero, Calvino e outros foram autoritários, despóticos, tirânicos

o   Ao rejeitar a autoridade da igreja, o protestantismo afirmou o individualismo, a arrogância e a anarquia mental

o   Outra conseqüência da rejeição da autoridade da igreja foi acabar com as interpretações adaptadas à realidade humana, sugeridas pela “sabedoria prática” do clero

§  Em outras palavras, isso consistiu em rejeitar o relativismo prático em favor de um absolutismo teórico (a partir de um literalismo interpetativo da Bíblia)

o   Além disso, ao erigir cada crente em juiz único e autossuficiente para julgar qualquer coisa, o protestantismo substituiu a infalibilidade do papa pela infalibilidade do próprio crente

§  Uma das conseqüências práticas dessas disposições mentais e morais é a multiplicação incessante de seitas protestantes, a olhos vistos mesmo hoje em dia

o   Devemos notar, entretanto, que em termos de apoio a governos despóticos, todavia, alguns protestantes adotaram um comportamento diferente, ao defenderem e constituírem a liberdade espiritual:

§  De modo geral, foram ingleses ou originários da Inglaterra: os niveladores (levellers) de Oliver Cromwell, os quacres, alguns batistas (como Roger Williams, fundador de Rhode Island)

-        Pode parecer que tratar hoje da liberdade absoluta de consciência seja somente uma curiosidade histórica, mas não é

o   Por um lado, a liberdade ilimitada de consciência infelizmente é uma realidade nos dias atuais, seja na permanência fática da anarquia moderna, seja na afirmação da anarquia moderna como um ideal moral e mental (!)

o   Além dos problemas intelectuais, morais e práticos, há ainda concepções que pretendem – erradamente – aproximá-la da ciência

-        Há algumas propostas que afirmam que a ciência moderna baseia-se na liberdade absoluta de consciência

o   Essas propostas, com freqüência e não por acaso, também defendem que a ciência ter-se-ia originado do protestantismo

§  Essas propostas com freqüência são de origem anglossaxônica e/ou protestante; quando não são diretamente anglossaxônicas, são influenciadas fortemente por elas e, de qualquer maneira, são também (ou principalmente) influenciadas pelo protestantismo

o   A ciência exige a confiança mútua, bem como a humildade intelectual; o preceito moral geral do Positivismo, segundo o qual a “submissão é a base do aperfeiçoamento”, é seguida à risca na ciência

§  Na ciência – seja em sua prática cotidiana, seja em suas instituições – também se exige o respeito ao seu caráter coletivo: a sua cumulatividade histórica, a sua cumulatividade teórica, o longo processo de iniciação prática (iniciação científica, graduação, mestrado, doutorado), a opinião compartilhada (bancas de examinação, avaliação por pares)

§  Da mesma forma, e como conseqüência das características acima, não tem lugar na ciência a criticidade corrosiva e sistemática

o   Concepções da ciência que exaltam o individualismo, a criticidade corrosiva, o caráter não cumulativo – concepções, mais uma vez não por acaso, profundamente influenciadas pelo protestantismo – não entendem o que é, como funciona e para que serve a ciência, como nos casos de Karl Popper e Alfred N. Whitehead

o   Um exemplo bastante simples, claro, atual e desastroso de o quanto a ciência repele a liberdade absoluta de consciência são os negacionismos contemporâneos

§  Os antivacinistas atuais, os terraplanistas, os negacionistas do clima e muitos outros: todos eles são pessoas que não conhecem nem entendem a ciência, que no fundo desprezam-na e que, armados apenas de preconceitos (políticos e também teológicos) julgam-se capazes de avaliar todas as questões científicas, mesmo que isso resulte na morte de milhões de concidadãos e de servidores da Humanidade

-        Em suma:

o   A liberdade ilimitada (ou absoluta) de consciência é a pretensão de que cada indivíduo possui condições totais de avaliar tudo e qualquer coisa, independentemente de preparação específica prévia

§  A necessária crítica à liberdade absoluta de consciência não tem nada a ver com a autonomia moral e intelectual de cada um

§  A liberdade absoluta de consciência baseia-se e resulta em graves defeitos morais, a começar pela arrogância e pelo egoísmo, passando pelo absolutismo

§  Em termos sociológicos, a liberdade ilimitada de consciência resulta no que Augusto Comte chamava de “anarquia moderna” (a ausência de parâmetros morais e intelectuais compartilhados e socialmente regulados); essa anarquia vige seja como realidade fática, seja como ideal social e moral

o   O protestantismo de modo geral é o grande promotor dessa atitude

§  O protestantismo reforça a mentalidade absoluta, anti-humana e estritamente individualista; estimula o espírito destruidor; promove a crença da infalibilidade dos crentes: em suma, ele é um dos agentes da anarquia moderna

o   A ciência não se baseia na liberdade absoluta de consciência; bem ao contrário, a ciência exige a humildade intelectual e a confiança mútua

§  Embora, a par da permanência revolucionária e anárquica dos hábitos críticos, o dogma da liberdade ilimitada de consciência infelizmente ainda apresente grande relevância, nos últimos anos ela tem-se reafirmado de maneira desastrosa, como se vê no caso dos chamados “negacionistas”, isto é, de todos aqueles que se julgam capacitados a negar a ciência sem nunca terem estudado nem conhecido de verdade a ciência

·         São os antivacinistas contemporâneos, os negacionistas do clima, os terraplanistas etc. etc.



[1] Augusto Comte, “Segundo opúsculo: abril de 1820 – Sumária apreciação do conjunto do passado moderno”, In: _____. Opúsculos de filosofia social, São Paulo, USP, 1972, p. 26-27.

[2] “Esta proclamação tornou impossível o estabelecimento de qualquer autoridade teológica, quer política, quer simplesmente moral; porque, sendo deixadas as crenças ao arbítrio de cada indivíduo, não poderá haver, talvez, duas profissões de fé completamente uniformes, e a de cada indivíduo poderá mudar da manhã para a tarde, seguindo todas as variações inspiradas pelo estado perpetuamente móvel de suas afeições morais e físicas, bem como pelas circunstâncias sociais, igualmente variáveis, nas quais o mesmo indivíduo se encontrará sucessivamente colocado.

Numa palavra, é claro que a liberdade ilimitada de consciência e a indiferença teológica absoluta significam exatamente o mesmo quanto às conseqüências políticas. Em ambos os casos, as crenças sobrenaturais não podem mais servir de base à moral. É um fato que, longe de dever ocultar-se, não se poderia salientar em demasia por provar a necessidade de constituir-se sobre outros princípios positivos (isto é, deduzidos da observação), a moral, que é a base, ou antes, o laço geral da organização social” (nota de Augusto Comte).

[3] Augusto Comte, “Quinto opúsculo: março de 1826 – Considerações sobre o poder espiritual”, In: _____. Opúsculos de filosofia social, São Paulo, USP, 1972, p. 182.

26 dezembro 2023

Augusto Comte: triplo ofício da arte e resumo da teoria positivista da arte


“A principal função da arte consiste sempre em construir os tipos de que a ciência fornece as bases. Ora, essa operação é sobretudo indispensável para a inauguração do novo regime. Quando a filosofia tiver elaborado suficientemente as suas diversas concepções essenciais, elas permanecerão ainda demasiadamente indeterminadas para bastarem ao seu destino prático. Afinal, o estudo sistemático do passado não pode fornecer-nos diretamente senão o caráter geral do porvir. Mesmo a respeito dos menores fenômenos, a determinação científica não poderia tornar-se completa sem ultrapassar os limites próprios à verdadeira demonstração. Nas pesquisas sociológicas, seus resultados devem então se manter mais abaixo do grau de plenitude, de clareza e de precisão que exigem noções destinadas à mais familiar universalidade. É então à poesia que convém preencher as inevitáveis lacunas da filosofia para inspirar a política. No começo do politeísmo, ela já realizou esse ofício natural em relação às criações imperfeitas da teologia sistemática. Pertence-lhe ainda mais completar uma apreciação objetiva em que a imaginação participa menos. Na conclusão geral deste discurso[1], eu indicarei mais essa indispensável função poética no tema da concepção central do Positivismo. O leitor poderá desde então estender a mesma explicação a todos os outros casos principais.

Para cumprir esse grande ofício, a arte positivista encontrar-se-á naturalmente conduzida a oferecer-nos quadros antecipados da regeneração humana, apreciada sob todos os aspectos suscetíveis de idealização. Essa será sua segunda cooperação geral para o impulso renovador, ao desenvolver sua participação inicial. No fundo, esse novo ofício reduz-se a regularizar as utopias, subordinando sempre a idealidade à realidade, como em toda outra composição poética. A liberdade especulativa que parece proporcionar-lhe a anarquia atual acaba restringindo bastante seu desenvolvimento efetivo, conforme os medos de divagação que ela inspira mesmo aos mais sonhadores, cujos espíritos não poderiam tornar-se insensíveis às necessidades comuns de harmonia mental. Mas, quando o domínio da imaginação limita-se em desenvolver e vivificar o da razão, os mais austeros pensadores sofrem de bom grado um encanto que, longe de alterar a realidade, não faz senão melhor sobressair sua principal característica, bem pouco determinada pela ciência. Assim, ao assinalar às utopias sua verdadeira destinação, o Positivismo estimulará bastante esse gênero moderno de composições poéticas, que, sob a inspiração sociológica, pode tanto concorrer para impulsionar o conjunto do povo ocidental em direção ao estado normal da humanidade. Os cinco modos estéticos[2] participarão todos desse salutar impulso, ao fazer-nos apreciar, antecipadamente, conforme a idealização própria a cada um deles, os encantos e a grandeza da nova existência, pessoal, doméstica e social.

Essa segunda assistência geral da arte na grande reconstrução suscitará naturalmente uma terceira, cuja necessidade não é menor hoje, para terminar de livrar [détacher] os ocidentais dos vãos destroços do passado que impedem de sentir o futuro. Bastará dar uma direção comparativa aos quadros antecipados que venho indicando. Depois do início da transição moderna, no século XIV, a arte é sobretudo desenvolvida sob uma intenção crítica[3], que entretanto convém pouco à sua natureza eminentemente sintética. Seu desenvolvimento orgânico pode então conciliar-se plenamente com a luta secundária que exige ainda a situação atual em relação às opiniões, e sobretudo os hábitos, que permanecem do regime caído ou da fase transitória. Essa comoção complementar, relativa às mais íntimas raízes do passado, alterará tanto menos a grande missão da arte positivista que ela realizar-se-á sem jamais exigir uma crítica direta. Nem em relação à teologia, nem somente quanto à metafísica, não termos doravante necessidade de nenhuma discussão, mesmo filosófica, e, com mais forte razão, poética. Tudo reduz-se agora a uma simples concorrência, o mais freqüentemente implícita, entre os modos opostos segundo os quais o catolicismo e os positivistas correspondem às mesmas necessidades morais e sociais. Ora, esse ofício assessório, cujas bases científicas já foram postas, é sobretudo da alçada da arte, pois que ele deve dirigir-se mais ao sentimento que à razão. Eu já indiquei o seu caso mais característico, no fim da quarta parte[4], para a nobre cooperação que reservava à minha santa colega[5] em relação à iniciação positivista de nossas duas populações meridionais[6], principalmente devida à intervenção estética das mulheres.

Nessa terceira função social, a nova poesia religará diretamente sua missão atual ao seu ofício final, ao idealizar o passado, como esta última o futuro. Afinal, o advento do Positivismo exige, a todos os respeitos, uma escrupulosa justiça em relação ao catolicismo. Longe de atenuar o mérito moral e político do regime próprio à Idade Média, a poesia, guiada pela filosofia, deverá inicialmente o glorificar dignamente, a fim de melhor caracterizar a superioridade necessária da ordem final. Ela constituirá, assim, o prelúdio de seu dever normal de reanimar o passado, cujo vínculo natural com o futuro deve tornar-se profundamente familiar, no interesse simultâneo da razão sistemática e do sentimento social.

Ainda que próximo, esse triplo ofício, por meio do qual a arte positivista inaugurará sua incorporação à ordem final, não poderá ser imediato, pois ele exige uma preparação filosófica que não foi ainda realizada, nem pelo público ocidental, nem por seus órgãos estéticos. A geração pacífica que começa, na França, a segunda parte da grande revolução, pode fazer livremente prevalecer o Positivismo, não somente entre os verdadeiros pensadores, mas também entre o povo parisiense encarregado dos comuns destinos do Ocidente, e mesmo entre as mulheres melhor dispostas. Elevada por esse impulso, a geração seguinte poderá então, antes do fim do século iniciado pela Convenção[7], completar espontaneamente essa inauguração mental e moral ao manifestar o novo caráter estético da humanidade regenerada.

 

*          *          *

 

O conjunto desta quinta e última[8] parte representa diretamente a filosofia positiva como mais favorável que qualquer outra ao desenvolvimento contínuo de todas as belas-artes. Uma doutrina que chama a humanidade ao aperfeiçoamento universal deveria incorporar-se profundamente a especulações as mais próprias a desenvolver o nosso instinto da perfeição. Ela não os subordina ao estudo sistemático da realidade senão para fornecer à idealidade uma base objetiva, indispensável à sua consistência e à sua dignidade. Mas, assim constituídas, as funções estéticas convêm mais que as funções científicas, seja à natureza e ao alcance da nossa inteligência, seja sobretudo ao seu destino essencial, a organização da natureza humana; pois elas referem-se imediatamente ao princípio afetivo dessa sistematização. Após a cultura direta do sentimento, é a arte que pode habitualmente fornecer os melhores meios para tornar-nos ao mesmo tempo mais ternos e mais nobres.

Sua reação lógica deve mesmo aperfeiçoar nossa aptidão sistemática, ao familiarizar-nos cedo com as verdadeiras características de toda construção humana. A ciência pôde durante longo tempo preferir o regime analítico; ao passo que, mesmo em meio à sua anarquia, a arte visa sempre à síntese, objetivo necessário de todas as nossas contemplações. Quando, contra a sua natureza, ele trabalha para destruir, sua obra qualquer não se realiza ainda senão construindo. O gosto e o hábito das construções estéticas devem assim nos dispor a melhor construir sobre o solo mais refratário da realidade.

Por todos esses títulos, a arte, dirigida pelo sentimento, torna-se, para o Positivismo, a principal base da educação universal, em que a ciência não preside em seguida senão a uma indispensável sistematização objetiva. A vida ativa completa essa preponderância inicial ao imprimir um caráter mais estético que científico às funções regulares do poder moderador[9]. Os três elementos necessários da força moral[10] tornam-se assim os órgãos espontâneos da idealização, doravante inseparável da sistematização.

Uma tal fusão obriga os novos filósofos a sentir profundamente todas as belas-artes. Ainda que habitualmente passiva, essa aptidão deverá poder elevar-se, entre os principais dentre eles, à mais sublime atividade, nas idades de intermitência filosófica e de vivacidade poética. Sem esse difícil complemento, seu ofício não poderia obter o livre ascendente moral que comporta sua natureza e que exige sua destinação. O padre da Humanidade não desenvolverá sua superioridade necessária sobre o padre de Deus senão quando sua razão sistemática combinar-se dignamente com o entusiasmo do poeta comum como com a simpatia feminina e a energia proletária.”

 

Fonte: Augusto Comte. 1929. Aptitude estéthique du Positivisme. In: _____. Discours préliminaire sur l’ensemble du Positivisme[11]. 5e ed. Paris: Société Positiviste, p. 315-320. Tradução de Gustavo Biscaia de Lacerda.



[1] A referência é ao Discurso sobre o conjunto do Positivismo, de que o presente trecho integra o capítulo quinto e antepenúltimo. (Nota do tradutor.)

[2] Os cinco modos estéticos são, conforme o princípio de classificação (generalidade decrescente, particularidade crescente): poesia, música, pintura, escultura e arquitetura. (NT.)

[3] A palavra “crítica” é usada aqui no sentido de “destruidora”, “corrosiva”, conforme o sentido da “metafísica” para Augusto Comte. A esse respeito, cf. Gustavo Biscaia de Lacerda, “O Positivismo e o conceito de ‘metafísica’” (https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2011/03/o-positivismo-e-o-conceito-de.html).

[4] Referência ao capítulo quarto do Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo, intitulado “Influência feminina do Positivismo”.

Talvez valha a pena indicarmos os títulos dos capítulos desse livro em sua edição de 1851, que é um verdadeiro “manifesto positivista” e uma exposição geral da doutrina e da religião:

- Preâmbulo geral

- Primeira parte: espírito fundamental do Positivismo

- Segunda parte: destinação social do Positivismo [, conforme sua conexão necessária com o conjunto da grande revolução ocidental]

- Terceira parte: eficácia popular do Positivismo

- Quarta parte: influência feminina do Positivismo

- Quinta parte: aptidão estética do Positivismo

- Conclusão geral do discurso preliminar [do discurso sobre o conjunto]: Religião da Humanidade

Os trechos entre colchetes referem-se aos subtítulos presentes na versão original do livro, publicada em 1848. (NT.)

[5] Referência a Clotilde de Vaux (1815-1846). (NT.)

[6] Referência à Espanha (e Portugal) e à Itália. (NT.)

[7] Referência à Convenção Nacional, fase da Revolução Francesa vigente entre 1792 e 1795, durante a qual, para Augusto Comte, após os momentos decisivamente destruidores do Antigo Regime próprios à Assembléia Nacional (1789-1792), desenvolveram-se os episódios mais progressistas da Revolução, em particular sob a liderança de Georges Danton (1759-1794). Evidentemente, o “século iniciado pela Convenção” é o século XIX. Sobre a avaliação positivista da Revolução Francesa e sobre o conceito de “estado normal”, bem como, de modo geral, para a filosofia positivista da história, cf. Augusto Comte, Catecismo positivista (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1934) e Apelo aos conservadores (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1899), além de Gustavo Biscaia de Lacerda, O momento comtiano (Curitiba, UFPR, 2019). (NT.)

[8] Augusto Comte refere-se ao capítulo quinto como sendo o “último”: é o último antes do capítulo final, intitulado “Conclusão geral” (e que, aliás, apresenta pela primeira vez os conceitos de “Humanidade” e de “religião da Humanidade”). (NT.)

[9] Referência ao poder Espiritual, que modifica a conduta de indivíduos e grupos via aconselhamento; ele contrapõe-se de maneira complementar ao poder Temporal, que modifica a conduta de indivíduos e grupos via coerção. Para mais detalhes, cf. os já citados Augusto Comte, Catecismo positivista e Apelo aos conservadores, além de Gustavo Lacerda, O momento comtiano. (NT.)

[10] Os três elementos componentes da força moral (isto é, do poder Espiritual) são: o sacerdócio, de caráter intelectual; o proletariado, de caráter prático; as mulheres, de caráter afetivo. Eles são abordados respectivamente nos capítulos dois, três e quatro do Discurso sobre o conjunto do Positivismo. (NT.)

[11] O Discurso sobre o conjunto do Positivismo foi originalmente publicado em 1848 e, com alterações tópicas, inserido em 1851 como apresentação geral do volume primeiro do Sistema de política positiva. (NT.)

29 outubro 2023

Augusto Comte: a arte idealiza (e enaltece) o que a ciência explica

Augusto Comte: trecho de “Aptidão estética do Positivismo”

O trecho abaixo corresponde à tradução, a partir do original em francês, das páginas 279 a 284 da quinta parte do Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo, intitulada “Aptidão estética do Positivismo”. Esse trecho está faltando na edição digitalizada e publicada no portal Internet Archive (https://archive.org/details/augusto-comte-aptidao-estetica-do-positivismo) em setembro de 2023. Por sua vez, essa edição é a tradução brasileira do referido capítulo do Discurso, feita em 1949 por F. A. Machado da Silva; as páginas faltantes nessa edição brasileira vão da 9 à 12. Tradução de Gustavo Biscaia de Lacerda.

*          *          *

Tal é a filiação histórica que ao mesmo tempo explica e refuta as utopias anárquicas de nosso século sobre uma espécie de pedantocracia estética. Esses sonhos de um orgulho sem freio não podem tornar-se especiosos senão entre espíritos metafísicos, sempre inclinados à consagração absoluta dos casos excepcionais. Se os filósofos devem ser excluídos do comando, os poetas são-lhe ainda menos próprios. Sua versatilidade mental e moral, que os dispõem a melhor refletir o meio correspondente, interdita-lhes mais toda autoridade diretiva. Apenas uma severa educação sistemática pode conter o suficiente seus vícios naturais, que devem então ser bastante desenvolvidos em um tempo estrangeiro a toda convicção profunda. Membros assessórios do poder intelectual, os poetas não podem seguir sua vocação normal senão ao renunciarem à supremacia temporal ainda mais completamente que os membros principais. Os filósofos não são impróprios senão para a ação, mas as consultas convêm-lhes; ao passo que os poetas não devem, em geral, pretender mais um que a outra. Idealizar e estimular, tal é seu duplo ofício natural, que não se realiza dignamente senão conforme uma concentração exclusiva. Essa função é assaz nobre e assaz estendida para absorver todos os que se encontram verdadeiramente destinados a ela. Da mesma forma, esses desvios de conduta da ambição estética não surgiram plenamente senão depois do advento passageiro de uma situação incompatível com a arte verdadeira, falta de costumes pronunciados e de convicções reais. Todos esses poetas falhos ou equivocados dariam um outro curso à sua vida pública se a verdadeira poesia estivesse já tornada possível, por meio da preponderância de uma doutrina universal e de uma direção social. Até um tal resultado, as naturezas estéticas continuarão a estender-se ou a corromper-se em uma miserável agitação política, mais favorável às mediocridades especiosas que às superioridades reais.

O estado normal da natureza humana subordina tanto a imaginação à razão quanto esta ao sentimento. Toda inversão prolongada dessa ordem fundamental é igualmente funesta para o coração e para o espírito. O pretendido reino da imaginação tornar-se-ia ainda mais corruptor que o da razão, se ele não fosse ainda menos compatível com as condições reais da humanidade. Mas, ainda que quimérica, apenas sua busca pode atrapalhar bastante a existência privada, ao substituir por uma exaltação falsa, e com grande freqüência mentirosa, as emoções espontâneas e profundas. Com mais forte razão, essa viciosa preponderância da imaginação deve alterar a vida pública, quando nenhuma barreira social contém mais as ambições estéticas. A arte tende então a perder sua verdadeira destinação de encantar e melhorar a humanidade. Tornada o objetivo da existência, ela degradar-se-ia logo, ao desmoralizar ao mesmo tempo seus órgãos e seu público. Ela reduzir-se-ia cada vez mais aos seus ornatos sensuais, ou mesmo às dificuldades técnicas, sem nenhuma tendência moral. As inclinações estéticas, que, dignamente subordinadas, tanto aperfeiçoaram os costumes modernos, podem tornar-se profundamente corruptoras por seu ilegítimo ascendente. Sabe-se a que prática atroz a Itália foi conduzida, durante muitos séculos, com o objetivo único de embelezar as vozes masculinas. Assim degenerada, a arte, tão própria a desenvolver os instintos simpáticos, pode diretamente suscitar o mais abjeto egoísmo, provocando uma inteira indiferença social, entre aqueles que assumiram como sua principal felicidade o gostar de sons ou de formas. Tal é o íntimo perigo, ainda mais moral que mental, inerente à preponderância privada, e sobretudo pública, das inclinações estéticas, mesmo quando elas são reais. Mas também é necessário reconhecer que essa violação da ordem fundamental conduz logo ao inevitável triunfo das mediocridades, entre aqueles que um longo exercício desenvolve facilmente a habilidade de execução.

É assim que gradualmente caímos sob a vergonhosa dominação, não menos funesta à arte que à filosofia e à moral, das influências evidentemente votadas à subordinação social. Uma deplorável aptidão para exprimir o que não se sente nem se crê fornece hoje um ascendente efêmero a talentos tão incapazes de toda criação estética quanto de toda concepção científica. Essa anomalia política, principal característica de nossa situação revolucionária, deve tornar-se moralmente desastrosa quando esses triunfos imerecidos não ecoem mais, seguindo uma rara exceção, nas almas elevadas para conter-lhes com freqüência o vicioso impulso. Conforme sua maior generalidade, que lhes permite uma ambição mais alta, os poetas são mais expostos a esses perigos que os artistas propriamente ditos. Mas a cultura das artes especiais reproduz esse mal sob uma outra forma, ainda mais degradante, pela avidez pecuniária que macula hoje tantos talentos. É sobretudo aí que a ausência de toda regra deixa ingenuamente surgir uma vaidade pueril que doravante aplica o mesmo título habitual aos verdadeiros criadores estéticos e aos simples órgãos das produções alheias.

Tais são os resultados necessários do gradual desvio de conduta das ambições poéticas durante a longa transição moderna. Eu deveria caracterizar aqui sem hesitação as aberrações que impedem hoje toda sã apreciação da natureza e da destinação da arte. Mas esse severo preâmbulo não poderia chocar as almas verdadeiramente estéticas, já pessoalmente dispostas a sentir o quanto o regime atual contraria toda vocação real. Malgrado declamações interessadas, o verdadeiro desenvolvimento da arte exige pelo menos tanto a compressão das mediocridades quanto o encorajamento das superioridades. O verdadeiro gosto não existe nunca sem o desgosto. É exatamente por que a arte deve sobretudo desenvolver em nós o instinto familiar da perfeição, seus sinceros apreciadores ficam vivamente chocados com toda fraca produção. O feliz privilégio das obras-primas de suscitar uma admiração que os séculos não amenizam preserva-nos da pretensa necessidade de entreter o gosto com novidades que se alteram. Se eu ouso invocar aqui minhas próprias impressões, eu posso declarar que, após 13 anos, pela razão tanto quanto por inclinação, eu reduzi minhas leituras habituais aos grandes poetas ocidentais, sem provar a menor curiosidade a respeito dos produtos cotidianos de uma deplorável fecundidade.

Após essa retificação preliminar, é necessário caracterizar diretamente a aptidão estética do Positivismo, indicando inicialmente como ele constrói naturalmente a verdadeira teoria geral da arte, limitada até aqui a felizes vistas parciais. Tal sistematização estética resulta ao mesmo tempo do princípio subjetivo, do dogma objetivo e do fim ativo, atribuídos à nova filosofia nas duas primeiras partes deste discurso.

A arte consiste sempre em uma representação ideal do que é, destinada a cultivar nosso instinto da perfeição. Seu domínio então é tão estendido quanto o da ciência. Cada uma delas abarca, à sua maneira, o conjunto das realidades, que uma aprecia e a outra embeleza. Suas contemplações respectivas seguem o mesmo curso natural, conforme a minha lei enciclopédica, elevando-se das especulações mais simples e mais exteriores às mais complicadas e mais humanas. Assim, essa escala fundamental do verdadeiro, que nós reconhecemos, na segunda parte, constituir também a do bom, coincide ainda com a do belo, de maneira a estabelecer a mais íntima harmonia entre as três grandes criações da humanidade, a filosofia, a política e a poesia. Com efeito, é o espetáculo inorgânico, sobretudo celeste, que nos manifesta os primeiros caracteres da beleza, da ordem e da grandeza, ali melhor cognoscíveis que em relação aos fenômenos mais complexos e menos regulares. Os graus superiores do belo não poderiam ser verdadeiramente apreciados pelas almas insensíveis a esse grau inicial. Mas, se a filosofia não considera o estudo inorgânico senão como um indispensável preâmbulo para elevar-se à sua destinação humana, a poesia deve ainda mais proceder assim. Sua tendência é mesmo mais pronunciada, a esse respeito, que a da política, que, limitada inicialmente ao aperfeiçoamento material, limita-se por muito tempo ao aperfeiçoamento físico, e em seguida intelectual, antes de subir diretamente ao seu objetivo principal, o aperfeiçoamento moral. A poesia percorre mais rapidamente os três graus preliminares, e eleva-se com menos ainda de esforço à contemplação das belezas morais. Assim, o sentimento constitui naturalmente seu domínio essencial. Ela encontra aí seus meios tanto quanto seu fim. Entre todos os fenômenos humanos, as afeições são as mais modificáveis, e dessa forma os mais idealizáveis, como os mais perfectíveis, em virtude de sua complicação superior, que determina uma imperfeição maior, conforme a lei positivista. Ora, a expressão, mesmo imperfeitíssima, deve reagir bastante sobre as funções que, por sua natureza, tendem a espalhar-se para fora. Se sua eficácia é reconhecida a respeito dos pensamentos, não poderia ela desenvolver mais os sentimentos, mais dispostos à manifestação? Toda cultura estética, mesmo limitada à pura imitação, pode tornar-se então um útil exercício  moral, quando ela estimula dignamente nossas simpatias e nossas antipatias. Mas essa aptidão deve ser bastante mais completa se a representação, em vez de uma estrita fidelidade, encontra-se convenientemente idealizada. [...]

(Augusto Comte, Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo, 5ª ed., Paris, L. Mathias, 1929, p. 279-284).