Mostrando postagens com marcador Desenvolvimento nacional. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Desenvolvimento nacional. Mostrar todas as postagens

06 setembro 2022

Felipe Zorzi apresenta o seu "ecopositivismo"

O cientista político gaúcho Felipe Zorzi defendeu sua tese de doutorado em 2022, intitulada "Democracia e entropia: uma teoria decolonial dos sistemas sociais e um estudo empírico sobre desigualdade no Brasil".

Nessa tese, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a partir de concepções científicas cosmológicas e sociológicas, o autor critica a alienação e a dependência brasileiras, indicando a necessidade de elaborarmos e aplicarmos modelos autóctones de desenvolvimento. Nesse esforço, cumpre-nos também recuperarmos modelos e estratégias que já foram aplicados antes mas que, por diversos motivos - muitos vezes condenáveis -, foram postos de lado. Nesse sentido, o Positivismo surge como uma proposta e uma experiência que cumpre retomar com seriedade. 

Felipe Zorzi é filiado ao Partido Democrático Trabalhista (PDT), em sua seção gaúcha; a pedido do partido, ele realizou uma aula pública, transmitida oralmente via Twitter, no dia 22 de agosto de 2022, em que expôs a sua concepção de "ecopositivismo".

A aula pública ocorrida via Twitter está disponível aqui: https://twitter.com/i/spaces/1BdxYwZkMazGX.

O currículo lattes de Felipe Zorzi está disponível aqui: http://lattes.cnpq.br/0487585070203377.

05 setembro 2022

Monitor Mercantil: Positivismo pró-desenvolvimento e crítico do liberalismo oligárquico

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou, em 23 de julho de 2019, um artigo interessantíssimo em que se recupera e aplica-se o Positivismo à realidade brasileira.

Os autores lembram o quanto o Positivismo, em termos de teoria sociopolítica, afirma com clareza, com todas as letras, a importância central de um Estado republicano com caráter social. Da mesma forma, em termos históricos, os autores lembram as grandes contribuições do Positivismo para o desenvolvimento nacional.

Esse texto é tanto mais interessante quanto os autores não são positivistas. Além disso, o que se evidencia com esse texto é o quanto o Positivismo é necessário nesta época em que a demagogia liberticida assola o Brasil (e o Ocidente) e em que inúmeros intelectuais e grupos sociopolíticos defendem o particularismo, o facciosismo, a nostalgia pelo autoritarismo, a nostalgia pelo liberalismo escravocrata.

Não há dúvida de que vale totalmente a leitura, a reflexão e a aplicação!

O original encontra-se disponível aqui.


*   *   *

 

Preparando o Estado para Soberania: crítica ao liberalismo oligárquico

Por Monitor Mercantil -17:36 - 23 de julho de 2019

 

O positivismo, tal como estabelecido por Augusto Comte, preconizava a necessidade de uma reorganização da sociedade em bases científicas, industriais, altruístas e progressistas, ou seja, positivas, partindo do material intelectual e institucional acumulado nas experiências históricas.

O estudo dos fenômenos sociais, considerando a relatividade e as “leis naturais invariáveis” inerentes a eles, devia servir de base para uma ação sobre a realidade, dirigida por um governo forte e centralizado, de modo a impulsionar um conjunto de transformações que favorecessem o aperfeiçoamento coletivo e, portanto, moral, das sociedades e dos seus membros. A etapa definitiva de evolução da humanidade em que isso se daria, a positiva, sucederia a metafísica, que por sua vez havia sucedido a teológica.

As fases teológica e metafísica procuravam determinado fator absoluto de explicação cosmológica. Nelas, o espírito humano buscava a origem e o destino do universo, atribuindo, na primeira, o princípio causal a entes sobrenaturais e, na segunda, a abstrações intelectuais.

Na fase positiva, o espírito humano abdicaria dessa procura e passaria a investigar as leis que governam os fenômenos sociais, isto é, as relações invariáveis de semelhança e sucessão entre eles e que os caracterizam. O relativo substituiria o absoluto e prepararia a humanidade para conhecer adequadamente o seu próprio mundo e reconstruí-lo conforme seus próprios desígnios.

Para Comte, a modernidade até então, ao consagrar princípios individualistas, abstratos e negativos próprios da metafísica liberal (como o contratualismo, o constitucionalismo e o livre-cambismo), não lograra integrar a sociedade, ao contrário, a esfacelara em benefício apenas de oligarquias várias, como as proprietárias, as parlamentares e as intelectuais, essas últimas sobretudo na imprensa.

A ausência de critérios compartilhados de sociabilidade abriu caminho ao arbítrio, manifestado tanto pela “democracia anárquica” quanto pela “aristocracia retrógrada”, ambas incapazes de restabelecer a unidade social necessária ao desenvolvimento comum, ou, em outras palavras, a ordem e o progresso.

A unidade social própria do medievo estaria, para Comte, perdida, mas não de maneira definitiva. A desorganização característica da modernidade ocidental se dava pela transição de um sistema social, o metafísico, para outro, o positivo, no qual adviria a reorganização por ele preconizada.

A unidade a ser alcançada no estágio positivo seria, inclusive, superior ao do medievo, por a sociedade dispor de um grau maior de conhecimento acerca das suas condições e das leis que a regem. A positividade dessa nova fase consistiria, fundamentalmente, no domínio da humanidade sobre si mesma, fazendo prevalecer a ciência sobre a metafísica e o altruísmo sobre o egoísmo.

O proletariado e as mulheres seriam os porta-vozes e os agentes principais dessas mudanças, daí que Comte defendeu, ipsis litteris, as “revoluções” proletária e feminina. Revoluções que, longe de romperem com a ordem, a restabelecessem, fundamentando o progresso vindouro e vinculando-o ao conjunto histórico, que não deveria ser rechaçado, mas elaborado, extraindo dele o impulso para o desenvolvimento social.

A humanidade assumiria, a partir dessa fase, a posição anteriormente atribuída a Deus. A “religião da humanidade”, proposta por Comte, enaltece a imanência da humanidade e sua capacidade de aprimoramento, ao mesmo tempo progressivo e ordeiro.

Não é difícil verificar a incompatibilidade da doutrina positivista, largamente difundida no Brasil entre o final do século XIX e início do XX, com a organização social e institucional existente durante a Primeira República.

Republicanos e abolicionistas inveterados, os positivistas brasileiros não tiveram força política para converter a maior parte de seus ideais em realidade quando da Proclamação da República, ainda que muitos deles fossem presentes em instituições politicamente decisivas como o Exército e tivessem apoiado e mesmo participado da instauração republicana.

O lema presente na bandeira nacional e a separação entre Estado e Igreja consagrada na Constituição de 1891 foram as principais contribuições positivistas em âmbito nacional. No mais, o reformismo político e social positivista, inspirado em Comte, não obteve efetividade prática em âmbito nacional durante a Primeira República, principalmente a partir do governo de Prudente de Morais, que consolidou no comando do país a coalizão agrário-exportadora e mercantil.

O arranjo institucional do período, caracterizado por um federalismo que fortalecia a autonomia dos estados em relação à União e facilitava assim o fenômeno do coronelismo, e o arranjo econômico, organizado sobretudo em torno da produção de café para o exterior e no aprofundamento da dependência para com o capital financeiro e industrial estrangeiro, principalmente inglês e estadunidense, consagravam o pleno domínio das oligarquias primário-exportadoras do centro-sul (particularmente de São Paulo) no comando do país.

Foi um período de vigência de valores e políticas de forte conteúdo liberal, que iam ao encontro das demandas oligárquicas vigentes, exceto quando se tratava de pleitear a proteção do Estado para negócios particulares ligados à cafeicultura, como se verificou no Convênio de Taubaté em 1906.

Nesse contexto, o positivismo, uma das ideologias fundantes da República, assumiu um papel crítico e contestador, análogo ao de Comte em relação à França que vivenciou, propugnando uma organização alternativa do país, consoante os princípios do mestre francês, jamais esquecendo de sua lição acerca da relatividade dos fenômenos sociais, o que estimulou a formulação de propostas adequadas à realidade específica brasileira.

Medidas defendidas pelos positivistas desde o Império, como o fortalecimento do Executivo e a centralização do poder, a função social da propriedade, a emancipação material (para além da formal) dos negros, a mediação do Estado nas relações entre o capital e o trabalho para proteger o segundo e a responsabilização do Estado pela educação pública e pelo desenvolvimento industrial, opostas aos interesses dos grupos dominantes na Primeira República, teriam que esperar a Revolução de 1930 para serem colocadas em prática.

Ainda assim, devido à forte autonomia estadual então existente, foi possível ao Partido Republicano Rio-grandense (PRR), de linha programática positivista, governar o Rio Grande do Sul na contramão do Governo Federal e erigir instituições estaduais mais apropriadas à execução do programa positivista. Como bem assinalou Alfredo Bosi em seu brilhante Dialética da Colonização (Companhia das Letras, RJ, 1992), o positivismo gaúcho antagonizou, em termos de projeto de Estado e de país, com o liberalismo paulista/federal.

A Constituição do estado gaúcho, de 1891, teve o positivismo como sua linha mestra. Poder Executivo forte, educação primária pública e leiga a todos, separação entre Estado e Igreja, abolição de privilégios de nascimento, nobiliárquicos e acadêmicos, estabelecimento de concurso para provisão dos cargos públicos civis e a supressão de todas as distinções entre funcionários públicos e outros tipos de empregados foram aspectos marcantes da Constituição do RS e balizaram o chamado castilhismo, tendência política batizada em homenagem a Júlio de Castilhos, líder do PRR, presidente do RS de 1891 a 1898 e autor dessa Carta, seguida por Borges de Medeiros, presidente do estado de 1898 a 1908 e de 1913 a 1928.

Foram medidas políticas dos governos positivistas gaúchos: o imposto territorial, seguindo a preferência comteana por impostos diretos e desafiando o poder dos grandes fazendeiros, que eram privilegiados no âmbito federal; incentivos fiscais às manufaturas gaúchas infantes, dentro de um projeto industrialista liderado pelo governo, contrastando com a opção primário-exportadora da Primeira República desde Prudente de Morais, quando as oligarquias paulistas conseguiram derrotar o desenvolvimentismo avant la lettre de Rui Barbosa e de Floriano Peixoto; a socialização dos serviços públicos, com a defesa explícita de Borges de Medeiros, em sua Mensagem de 1913, da municipalização de serviços essenciais como água, esgoto, iluminação, energia elétrica, bondes e ferrovias.

A estatização do porto do Rio Grande e da belga Compagnie Auxiliaire de Chemins du Fer au Brésil se contrapunha ao privatismo do Governo Federal, que manteve a política prevalecente no Segundo Império de subordinação da infraestrutura ao capital estrangeiro.

Também no âmbito trabalhista, o positivismo gaúcho opôs-se frontalmente ao liberalismo oligárquico federal. No programa do Partido Republicano Histórico, Júlio de Castilhos defendia uma série de medidas que anteciparam boa parte da legislação trabalhista implementada por Vargas desde a década de 1930, contradizendo assim o lamentável folclore da inspiração “fascista” das leis do trabalho: o regime de 8 horas de trabalho na indústria, férias, aposentadoria, proteção aos menores, mulheres e idosos, direito de greve e um tribunal de arbitragem para resolução de conflitos entre patrões e empregados, tudo isso já constava no ideário castilhista.

Enquanto os governos Federal e paulista reprimiam violentamente as greves operárias de 1917, o governo gaúcho negociou com os grevistas e induziu os patrões no estado a aceitarem as reivindicações dos trabalhadores (Bosi citado, cap. 9).

Também o engenheiro paraense Aarão Reis, positivista e socialista, contribuiu enormemente para a oposição ao status quo oligárquico da Primeira República, ao defender, em compêndio de economia política adotado oficialmente na Escola Politécnica, a maior intervenção e direção do Estado na economia e da sociedade a fim de estimular a industrialização, proteger o trabalho da coerção do capital, fomentar o mercado interno e o associativismo civil, e promover “carinhosamente” a educação popular no sentido do aperfeiçoamento da cidadania e do patriotismo no âmbito de uma organização democrática da sociedade (Antônio Paim, “O Pensamento Político Positivista na República”, In: Adolpho Crippa (org.) As Idéias Políticas no Brasil, vol. II, Editora Convívio, RJ, 1979, p. 59-61).

Pode-se, portando, concluir que cabe ao positivismo brasileiro no Segundo Império e na Primeira República, aplicado na política nos governos estaduais gaúchos durante essa última, a formulação de um projeto alternativo ao que era dominante no período.

Nesse projeto constava a edificação de país soberano, desenvolvido e socialmente igualitário, dirigido a partir de um Estado forte e centralizado que coordenasse a totalidade da Nação para equilibrar e harmonizar os grupos sociais particulares e estabelecer um planejamento de longo prazo, acima dos interesses privados e tendo por fim a construção nacional em bases industriais e solidárias.

A gênese do Estado social e nacional-desenvolvimentista, triunfante entre 1930 e 1980 (apesar de recuos e nuances ao longo do período) em oposição ao liberalismo oligárquico prevalecente em quase todo o período republicano anterior, pode enfim ser localizada na teoria e na prática positivistas nas décadas anteriores à emergência de Vargas como líder político nacional.

O castilhismo, a principal vertente política do positivismo em sua versão gaúcha, foi o berço do trabalhismo de Getúlio Vargas e Leonel Brizola. Assim como o conjunto do positivismo, tem ainda hoje muito a iluminar acerca dos problemas nacionais brasileiros e da formulação e encaminhamento de soluções integradas em um projeto de desenvolvimento nacional.

 

Felipe Quintas

Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Gustavo Galvão

Doutor em economia, é autor de As 21 lições das Finanças Funcionais e da Teoria do Dinheiro Moderno (MMT).

Pedro Augusto Pinho

Administrador aposentado. 

02 junho 2021

A contra-reforma administrativa como ausência de projeto nacional de nossas péssimas elites

O texto abaixo é um manifesto em favor de uma alteração profunda na sensibilidade, na mentalidade e nos comportamentos das elites brasileiras, no sentido de que voltem a preocupar-se com o conjunto da população e também com o desenvolvimento nacional. O que se tem visto nas últimas quatro décadas é a abdicação total de um projeto de desenvolvimento, querendo com isso que nossos problemas sociais magicamente desapareçam - isso, claro, quando as nossas elites têm, de fato, alguma preocupação com a população. Mas sem desenvolvimento nacional não teremos solução para os problemas sociais; isso não deveria nunca ter sido esquecido ou negado e, portanto, é urgente que as elites abandonem o ultraliberalismo especulativo e voltem a investir em projetos de desenvolvimento real.

Uma versão resumida do texto abaixo foi publicada na grande imprensa, em fevereiro de 2021; ela pode ser lida na postagem "Contra alguns mitos da 'reforma administrativa'".

*   *   *

A contra-reforma administrativa como ausência de projeto nacional de nossas péssimas elites


A tragédia global e nacional que caracterizou o ano de 2020 deveria reverter-se em várias lições para o conjunto da sociedade, pelo menos no Brasil; entretanto, o início de 2021 já dá sinais de que nós, brasileiros, teimamos em não querer aprender com nossos erros e com nossas tragédias. A retomada, mais uma vez, da proposta de “reforma administrativa” é exemplar nesse sentido[1].

A “reforma administrativa” prevê a alteração radical de diversos dispositivos que regram a estrutura do Estado brasileiro, em particular no que se refere à contratação e à manutenção de servidores. O principal advogado dessa “reforma” é o Ministro da Economia, Paulo Guedes: ultraliberal[2], em inúmeras ocasiões ele já demonstrou desprezar os servidores públicos (considerados por ele como “parasitas”), querer reduzir o Estado ao mínimo dos mínimos (de preferência mantendo apenas a Casa da Moeda, o Banco Central e, claro, as Forças Armadas – todo o “resto” sendo julgado desnecessário e envenenador da “iniciativa privada”) e não ter nenhum problema em conjugar seu “liberalismo” com o autoritarismo (não é por acaso que ele estima Pinochet). Para Guedes, os mesmos servidores públicos que desenvolvem vacinas contra o coronavírus 2, que estão na linha de frente do combate à pandemia, que mantêm a ordem pública, que em condições dificílimas lecionam à distância no ensino virtual; enfim, para Guedes, todos esses servidores públicos não são vistos como constituindo uma infraestrutura pública indispensável à manutenção mínima de uma ordem social que entenda os brasileiros como cidadãos, mas são apenas e tão-somente gastos que devem ser reduzidos, quando não extintos, sem maiores preocupações além de “não nos endividarmos”. Esse ultraeconomicismo de Paulo Guedes – que, no final das contas, é apenas um economicismo simplista e rasteiro, totalmente antissociológico e anticívico – é tão acentuado que ele considera a atividade política (os debates públicos, as trocas de idéias, as disputas (pacíficas!) entre grupos organizados) como impedimentos sistemáticos à produção econômica; mesmo em termos de economia, para ele os verdadeiros agentes são apenas os patrões: os sindicatos, nesse sentido, não são órgãos importantes de representação de interesses legítimos, mas a institucionalização do corporativismo mais grosseiro e do combate ao lucro privado, além de serem mais uma forma de a “política” atravancar a “economia”; não por acaso, Paulo Guedes sonha em proibir os sindicatos de servidores públicos e em demitir os servidores sindicalizados!

Os valores profundos que orientam Paulo Guedes deveriam bastar para convencer qualquer cidadão honesto e sensato de que a reforma administrativa deve ser entendida com extrema cautela, especialmente quando se afirma que ela buscará maior eficiência administrativa. Na verdade, há muito tempo já virou um chavão dizer-se que os problemas do serviço público são de “gestão”: “choque de gestão”, “fazer mais com menos”, “apertar o cinto” – essas e outras frases feitas inundam periodicamente as páginas de jornais e os discursos políticos, em particular durante campanhas eleitorais. A imprecisão e a vagueza dessas expressões, somadas à impressão de modernidade que elas sugerem, garantem parte do seu sucesso; a busca de “criticidade”, o uso sistemático de sofismas e vários exemplos (ainda que dispersos e descontextualizados) completam o quadro.

Comparando os trabalhadores públicos e privados

Como dissemos no início do artigo, o ano de 2020 deveria dar-nos inúmeras lições a respeito, tanto negativas quanto positivas; mas, no fundo, o governo Bolsonaro, desde o seu início, também tem sido pródigo em importantes lições para o encaminhamento da “reforma administrativa”. Senão, vejamos.

Em primeiro lugar, não se pode dizer que o Estado brasileiro é “grande demais”; na verdade, seja em termos de quantidade de servidores públicos, seja em termos de gastos com pessoal, o Brasil está longe de ser “grande”. O tamanho do Estado tem que ser medido pela quantidade e pela qualidade de serviços públicos prestados: ora, por qualquer parâmetro, o que se percebe é que a estrutura pública disponível para os serviços públicos é insuficiente para as necessidades nacionais (cf. IPEA, s/d; CARDOSO JR., 2011; LASSANCE, 2017; PIRES, LOTTA & OLIVEIRA, 2018). Os serviços mais evidentes já o ilustram: professores, médicos, enfermeiros, peritos previdenciários etc., sua quantidade está longe de ser suficiente. Os problemas suscitados pela pandemia de covid-19 estão escancarando essa insuficiência brutal.

Mas as necessidades públicas supridas pelos servidores públicos não são todas, nem necessariamente, de entrega imediata: basta pensarmos nas pesquisas científicas feitas nos laboratórios nacionais, que buscam desde vacinas totalmente nacionais contra o coronavírus até técnicas mais baratas e eficientes de produção de álcool 70%; ou, então, as pesquisas de longo prazo e a fundo perdido feitas pela Petrobrás para a extração do petróleo na camada pré-sal; ou as pesquisas feitas pela Embraer para o desenvolvimento de uma indústria aeronáutica nacional de ponta: esses são apenas alguns exemplos banalizados e que deveriam ser levados mais a sério.

Os exemplos acima deveriam lembrar-nos de que as necessidades sociais brasileiras não são pequenas, não são de curto prazo nem são estritamente econômicas; inversamente, isso lembra (ou deveria lembrar) que o Estado brasileiro não pode ser entendido meramente como o “regulador neutro do ambiente de negócios”; como representante prático e realizador concreto do “interesse nacional”, o Estado tem a obrigação de realizar mudanças necessárias na sociedade (em conformidade com a opinião pública, claro está) e também a de orientar em grandes linhas a atividade econômica. Entretanto, desde a crise da dívida na década de 1980, progressivamente o Estado brasileiro abdicou de sua função de orientar os rumos do país: a abertura econômica indiscriminada e, em particular, a abertura financeira são a expressão disso. Os resultados dessa progressiva omissão pública nos rumos do país não poderiam ser piores: a progressiva desindustrialização nacional, a reversão da economia brasileira à condição de exportador de commodities para os países mais industrializados (agora, em particular, para a China), a diminuição brutal dos empregos de qualidade e a multiplicação de trabalhos cada vez piores (cf. BENJAMIN, 2015)... embora em si mesma tenha sido chocante a afirmação de Paulo Guedes de que o auxílio emergencial contra a pandemia “revelou 38 milhões de miseráveis antes ocultos” (cf. CHAIB & URIBE, 2020), o fato é que a omissão estatal após os anos 1980 é plenamente compatível com a ignorância desses 38 milhões de subcidadãos.

Os servidores públicos, portanto, têm um papel central na realização de algo que está meio fora de moda, mas que deveria voltar aos debates públicos: um “projeto de país”. É claro que a centralidade dos servidores no projeto nacional deve ser entendido tanto como a descrição de um fato quanto o enunciado de um juízo de valor, ou seja, os próprios servidores públicos têm que se compenetrar de sua importância para o país e adotar essa relevância como um verdadeiro guia ético para suas condutas profissionais.

Passamos, então, à estabilidade dos servidores: simplesmente não se deveria pô-la em questão. A perseguição político-ideológica, realizada com freqüência de maneira raivosa, levada a cabo pelo governo Bolsonaro (a bem da verdade, como é de conhecimento público, realizada em inúmeras vezes pelo próprio Presidente da República!) é a própria justificativa para a existência da estabilidade. Não se trata de um “privilégio” do funcionalismo público, que se erige em casta, contra a instabilidade do setor privado, mas a garantia de que os servidores públicos exercerão um serviço profissional e, ainda mais, que eles não estarão sujeitos aos humores dos governantes do momento. Desde 2019 assistimos no Brasil à demissão de Ricardo Galvão do cargo de Presidente do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), à exoneração de José Olímpio Augusto Morelli da chefia do Centro de Operações Aéreas do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) e a muitas outras situações semelhantes apenas porque, no primeiro caso, o servidor divergiu publicamente de afirmações do Presidente da República e de seu entorno palaciano e, no segundo caso, porque o servidor cumpriu o seu dever e multou o Presidente, então mero Deputado Federal, por pescar em área proibida (em 2012): esses são apenas dois exemplos entre muitos que ocorrem também em níveis inferiores e com menor visibilidade, em que os servidores têm sido punidos porque os governantes em exercício não gostam deles e que só não perderam os respectivos empregos porque são concursados e gozam de estabilidade[3]. (Eu mesmo, se não fosse a estabilidade funcional, estaria correndo o risco de demissão, apenas por manifestar minha opinião neste artigo.) Por fim, convém lembrarmos o desejo – anticonstitucional, diga-se de passagem – expresso pelo Ministro da Economia de demitir todos os servidores públicos que sejam sindicalizados. (Referindo-se a outro ambiente e a outra época, o historiador Richard Evans (2017) mostrou que o partido nazista expandiu-se no setor público alemão e dizimou os outros partidos políticos, em particular o comunista e o social-democrata, entre outras medidas, ao demitir sumariamente todos os filiados a qualquer outro partido.) A estabilidade dos servidores públicos, portanto, não é um luxo: é a garantia mínima de que eles poderão trabalhar para o bem comum sem sofrerem pressões ilegítimas e imorais.

Também se afirma que os servidores públicos “ganham muito”, com o juízo implícito de que tais “grandes salários” seriam ultrajantes. O ultraje não está tanto no “ganhar muito”, mas na comparação com o setor privado, cujos trabalhadores supostamente ganhariam bem menos. O problema é que essa comparação é extremamente superficial, tomando-se uma simples média aritmética dos gastos do setor público com alguma média do setor privado; assim, comparam-se duas coisas que, aparentemente, seriam homogêneas, quando, na verdade, elas não são homogêneas (cf. IPEA, s/d; ROSSI & BUONO, 2020). Vale notar que essa comparação baseia-se nas concepções, implícitas ou explícitas, de que o setor privado corresponde ao “mercado”, que os salários pagos pelo “mercado” são mais verdadeiros e que, por isso, os salários pagos no setor privado são mais “justos”. Ora, isso está longe de ser verdade, em particular porque a noção de salário justo é o que está na base da proposta do salário mínimo – e todos sabemos que o salário mínimo oficial no Brasil é violentamente baixo e que uma quantidade descomunal de brasileiros não recebe nem esse salário mínimo oficial (são muitíssimos mais que os 38 milhões de invisíveis do dr. Paulo Guedes).

Se as médias comparadas entre o setor público e o privado não são homogêneas, é importante então as entender de maneira heterogênea. Tanto em um setor quanto no outro, quem está no início de carreira recebe bem menos que quem está no final da carreira; da mesma forma, quem exerce cargo de chefia recebe mais que quem está nas posições mais humildes. O setor público, por um lado, divide-se em três ou quatro poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário e o Ministério Público) e em três níveis federativos (nacional ou federal, estadual e municipal). Todos os estudos sérios sobre o setor público indicam que a quantidade de servidores aumenta quando passamos do nível federal para o nível municipal, mas que os salários pagos diminuem nessa mesma direção. Além disso, o poder Judiciário e o Ministério Público têm salários muito maiores que os do poder Legislativo e estes, por sua vez, são maiores que os do poder Executivo. O poder Executivo, por sua vez, especialmente no âmbito federal, é bastante heterogêneo: as Forças Armadas, os diplomatas, os servidores da Receita Federal e mais algumas carreiras são regiamente pagas. Também vale lembrar que algumas áreas são necessariamente grandes, especialmente aquelas que lidam diretamente com a população: educação, saúde, previdência e assistência social, segurança pública; além disso, há setores que são intrinsecamente caros e custosos, como as áreas de infraestrutura e as de pesquisa: tudo isso entra na conta do poder Executivo.

Aqui é importante notar que o setor público tem uma dinâmica específica: a estabilidade no emprego permite que as carreiras desenvolvam-se de maneira efetiva, isto é, que haja de fato carreiras profissionais, caracterizadas pela ascensão profissional; tal ascensão ocorre a partir de cursos que são feitos pelos servidores. É claro que o egoísmo pessoal tem aqui seu papel: os servidores buscam subir na carreira porque isso se converte em salários maiores – e é bom que seja assim. Do ponto de vista da utilidade pública, isso significa que os servidores públicos podem de fato especializar-se e ampliarem suas habilidades profissionais; mas, de uma perspectiva meramente contábil e fiscalista, a maior qualificação dos servidores públicos é vista apenas como correspondendo a mais gastos públicos! Quando se fala em supersalários no setor público – e, o mais das vezes, a “reforma administrativa” é defendida como sendo o instrumento necessário para combaterem-se os “supersalários” – não é por acaso que eles ocorrem apenas no poder Judiciário, no Ministério Público e na cúpula do poder Executivo federal; ainda assim, a “reforma administrativa” terá efeito apenas no Executivo civil federal, sendo completamente silenciosa a respeito das Forças Armadas e dos outros três poderes[4].

O setor privado, como se sabe (ou como deveríamos saber), tem outra dinâmica. Para começo de conversa, ele não investe de verdade na qualificação dos trabalhadores: ele espera que haja trabalhadores qualificados no “mercado” e que possam ser contratados; quando há “qualificação”, elas são tópicas e de curto prazo. As qualificações de longo prazo, exatamente porque são demoradas, não são realizadas pelo setor privado. Aliás, a constante busca da “redução de custos” tem um efeito paradoxal e trágico, na medida em que há trabalhadores superqualificados que, por isso mesmo, não encontram emprego, pois custariam muito! A idéia de lealdade das empresas para com os trabalhadores é algo que inexiste; como há apenas o “mercado” e a competição entre as empresas, os trabalhadores mais velhos e mais qualificados – mais caros – são mandados embora em benefício de trabalhadores mais novos, menos experientes e, claro, mais baratos. (E, seguindo a lógica do dr. Paulo Guedes, de preferência que não sejam sindicalizados.) Nesse sentido, o setor privado ou privatiza a qualificação profissional mais exigente ou, então, alegremente se beneficia dos investimentos feitos no e pelo setor público: não é por acaso que os grandes programas de mestrado e doutorado no país são todos públicos (ou pesadamente financiados pelo setor público).

A lógica do “mercado” é sempre a de achatar os salários. Ora, esse achatamento ocorre na base, para a massa dos trabalhadores; no ápice a tendência é de aumentos sucessivos, especialmente para os presidentes (“CEOs”) e gerentes-gerais das empresas. Nesse caso, não se ouve falar em “supersalários”, isto é, não há o tom de reprovação quando se usa essa expressão para referir-se ao setor público; os cada vez maiores salários da cúpula do setor privado são vistos como motivo de inveja e admiração. Tem-se aí uma situação ambígua, para não dizer paradoxal ou hipócrita: enquanto os “megassalários” da iniciativa privada são apresentados como o ideal de vida para todos os que estão no setor privado, apenas alguns poderão gozar deles, ao mesmo tempo em que a dinâmica salarial do setor privado, como vimos e como se sabe, tende sempre a achatar cada vez mais esses salários.

Infelizmente, o problema é ainda pior do que estamos indicando. A definição da omissão do Estado como projeto nacional a partir dos anos 1980 resultou em que estamos fortemente vinculados aos fluxos internacionais de capital especulativo e em que o país progressivamente se desindustrializa (cf. BENJAMIN, 2015). Esses dois fatos conjugados resultam em que no país temos cada vez menos investimento na economia real, isto é, na economia que gera renda e empregos, e temos cada vez menos empregos, isto é, trabalhos com carteira assinada, salários dignos e benefícios efetivos. A descoberta dos mais de 38 milhões de “invisíveis” pelo dr. Paulo Guedes, em 2020, é exemplar a respeito disso tudo: vinculado ao capital especulativo internacional, ele nunca teve experiência concreta nem com políticas públicas nem, muito menos, com a economia real; por outro lado, a dinâmica de financeirização do capital e de desindustrialização do país resultaram em que um vago setor de “serviços” ampliou-se dramaticamente nas últimas década, não porque tenhamos uma população altamente qualificada prestando serviços de complexidade média a alta, mas porque temos uma população que é pobre, ganha pouco, não consegue empregos e meramente realiza serviços ou “trabalhos”, ou melhor, faz “bicos”: vende água na esquina, trabalha como vendedor na alta estação etc. O grande símbolo disso é o entregador de comida vendida por meio de aplicativos de celulares que vai de bicicleta entregar o produto: recebe uma miséria, não tem estabilidade, não tem benefício social nenhum e tem que usar os próprios recursos (a bicicleta) para o trabalho; é a “uberização” do trabalho erigida como ideal social. Não é que falte engenhosidade, operosidade ou industriosidade à população: o que falta são políticas públicas que gerem emprego de verdade, um projeto de país que se afaste do capital especulativo e uma elite que valorize o país (e não seja nem autoritária nem seja cega para os “invisíveis”.)

O anti-timing da reforma contracionista

Algumas palavras sobre o timing da proposta de reforma administrativa são necessárias. Desde o governo Michel Temer (2015-2018), as “reformas” são apresentadas como fundamentais e imprescindíveis para que o Brasil deslanche em termos econômicos (nada se diz sobre as liberdades públicas, sobre nossos padrões civilizatórios etc. ­– mais deixemos esses temas “menores” de lado); mais do que isso: cada uma das reformas é apresentada para a nação como a verdadeira reforma fundamental, sem a qual o país não tem futuro e com a qual o sucesso será imediato e garantido. Todavia, uma reforma após a outra fracassa completamente em conduzir o país ao desenvolvimento e ao progresso; encerrada uma reforma, a próxima é imediatamente alçada à posição de reforma fundamental, imprescindível e bastante. Essa dinâmica política desmoraliza a noção de “reforma” e, com isso, levanta a suspeita de que seu objetivo não é tornar o Brasil um país melhor, mas apenas desmontar as instituições nacionais, em particular as estabelecidas em 1988. Isso, por si só, já bastaria para levantar-se sérias suspeitas sobre a atual proposta de “reforma administrativa”; os preconceitos políticos, sociais e ideológicos do dr. Paulo Guedes aumentam ainda mais as suspeitas. Todavia, o Brasil – como o mundo, aliás – atravessa a grave crise da pandemia, que será seguida necessariamente por uma recessão ou, talvez, por uma depressão: se há algo que o século XX ensinou é que crises desse tipo não podem ser enfrentadas por políticas contracionistas, que visem a cortar os gastos públicos; sem desperdiçarmos valiosos recursos, os gastos públicos terão que se aumentar ou, pelo menos, manterem-se nos próximos anos. Ora, a “reforma administrativa” claramente tem um objetivo contracionista – o que pode ser coerente com o ultraliberalismo do dr. Paulo Guedes, mas que vai contra a história político-econômica dos últimos 150 anos e vai contra também o interesse nacional brasileiro.

Algumas palavras sobre as elites brasileiras

Para concluir, uma palavra sobre as elites brasileiras. Ao longo deste artigo fizemos diversas referências ao fato de que o Brasil não tem um verdadeiro projeto nacional desde a década de 1980; a partir dessa época, definiu-se que o país deveria integrar-se ao resto do mundo, por um lado saindo do isolamento político em que se encontrava devido ao autoritarismo militar, por outro lado vinculando-se aos fluxos econômicos internacionais, cada vez maiores. A expressão “projeto nacional” e as decisões que orientaram o país na direção da abertura político-econômica tornam-se vagas e muito abstratas – metafísicas, na verdade – quando não se considera que o conjunto da população e, em particular, as elites têm que encampar esses projetos, formulando-os com clareza e implementando políticas públicas de acordo – políticas que devem ser mais ou menos coerentes e que devem ser concebidas em termos de décadas, não somente de anos ou meses. A abertura política dos anos 1980-1990 foi exitosa; já a abertura econômica, como indicamos, foi bem mais problemática, em particular porque ela consistiu na abertura unilateral e mais ou menos sem critérios da nossa economia: as nossas elites apostaram no automatismo do “mercado” para resolver os problemas sociais e econômicos, desvalorizando o Estado no processo; a reação à valorização do Estado em termos econômico-sociais, isto é, em termos de “projeto nacional”, era no sentido de equivaler essa valorização ao autoritarismo, ao totalitarismo e, de qualquer maneira, à ineficiência e ao desperdício.

A inabilidade política e, por isso mesmo, a inabilidade econômica de Dilma Rousseff em um ambiente política cada vez mais polarizado – em que tiveram grande (ir)responsabilidade tanto o PT quanto o PSDB – permitiu a ascensão política e social do ultraliberalismo irresponsável e, no fundo, intelectualmente alienado do dr. Paulo Guedes; ao mesmo tempo, o desgaste institucional permitiu a ascensão de mais um político supostamente outsider com propostas violentamente anti-establishment – Bolsonaro. Provavelmente porque ambos eram rejeitados pelo establishment social-democrata dos irmãos-inimigos PT-PSDB, mas também porque um precisava do outro, logo Paulo Guedes e Bolsonaro passaram a apoiar-se; como se sabe pelo notório exemplo chileno, as compatibilidades mútuas eram maiores do que a mera necessidade que um tinha do outro e do fato de que ambos eram underdogs: o ultraliberalismo de Guedes é compatível e mesmo precisa do autoritarismo repressivo e persecutório de Bolsonaro, enquanto este, por seu turno, fica bastante à vontade com o capitalismo especulativo e socialmente irresponsável de Guedes, desde que sua família, seu entorno palaciano e seus apoios militares e paramilitares sejam satisfeitos.

A ausência de um verdadeiro projeto nacional desde os anos 1990 já indicava uma séria falha das elites brasileiras; mas era possível argumentar, com tranqüilidade, que havia preocupações verdadeiras com o país. É bem verdade que o PSDB era bem mais criticável a esse respeito que o PT; mas, por outro lado, não somente o exclusivismo próprio ao PT (e a Lula em particular), derivado do seu messianismo católico-comunista, dificultou ou impediu a correção intelectual e moral das nossas elites a esse respeito, como o PT, quando esteve no poder, não fez muito para alterar a situação. Assim, o vazio de um projeto nacional das nossas elites manteve-se. Em 2018, o que era uma falha tornou-se um buraco, ou melhor, uma retrogradação profunda em nossos valores, com a aliança entre o ultraliberalismo e o autoritarismo delirante – aliança que se viu vitoriosa. Essa vitória, claro está, não ocorreu por acaso e nem no vazio; em particular, ela deu-se porque as elites brasileiras apoiaram a aliança retrógrada. Se em 2018 e 2019 as elites brasileiras decidiram pular no abismo, ou no esgoto, em 2020 o que se evidenciou foi o completo desprezo dessas elites pela população: o apoio meio cerrado, meio explícito às inúmeras tentativas de golpe de Estado pelo próprio Presidente da República, à afirmada necessidade de um novo “AI-5” conforme expresso pelo dr. Paulo Guedes, pelos filhos do Presidente da República, por políticos da “base de apoio” e pelos ministros militares; da mesma forma, a rejeição de muitos e muitos presidentes de grandes empresas das medidas mais elementares de prevenção à pandemia de covid-19, bem como o apoio às sandices do Presidente da República – tudo isso revela o quanto nossas elites estão moralmente podres, o quanto estão muito abaixo das necessidades do Brasil[5]. Em qualquer momento, são as elites que comandam um país – em termos políticos e econômicos, não há dúvida, mas também sociais, intelectuais e morais. As atuais elites decidiram que o ultraliberalismo econômico, o autoritarismo repressivo e persecutório, o desprezo pela vida e pela verdade são “aceitáveis”[6]: talvez em outras épocas e outros lugares essa combinação ao mesmo tempo explosiva e degradante fosse aceitável, mas no Brasil após 1988 definitivamente ela não é.

A “reforma administrativa” é apenas a mais recente proposta de uma elite que está aquém das necessidades e das possibilidades brasileiras: urgem novas elites e a rejeição dessa soi-disant reforma!

 

Referências bibliográficas

BENJAMIN, César. 2015. Desindustrialização – pode o Brasil sobreviver sem um expressivo setor industrial? Boletim Conjuntura Brasil, Brasília, n. 2, out.

CARDOSO JR., José C. (org.). 2011. Burocracia e ocupação no setor público brasileiro. Série “Diálogos para o desenvolvimento”, n. 5. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

CHAIB, Júlia & URIBE, Gustavo. 2020. Guedes confirma auxílio emergencial por mais dois meses e criação do Renda Brasil. Folha de S. Paulo, 9.jun.

EVANS, Richard. 2017. A chegada do Terceiro Reich. 3ª ed. São Paulo: Crítica.

HALLAL, Pedro C. 2021. SOS Brazil: Science under Attack. The Lancet, V. 397, n. 10272, Jan. 30. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)00141-0/fulltext. Acesso em: 22.jan.2021.

IPEA. s/d. Atlas do Estado brasileiro. Brasília: Instituto Econômico de Pesquisa Aplicada. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasestado/. Acesso em: 4.fev.2021.

LACERDA, Gustavo B. 2020. Lamento por uma burguesia abaixo do mínimo político-moral. Filosofia Social e Positivismo, 7.maio. Disponível em: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2020/05/lamento-por-uma-burguesia-abaixo-do.html. Acesso em: 4.fev.2020.

LASSANCE, Antonio. 2017. O serviço público federal brasileiro e a fábula do ataque das formigas gigantes. Texto para Discussão n. 2287. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

LYNCH, Christian E. 2020. “Nada de NOVO sob o Sol”: teoria e prática do neoliberalismo brasileiro. Insight Inteligência, Rio de Janeiro, ano 23, n. 91, p. 16-34, out.-dez.

PIRES, Roberto; LOTTA, Gabriela & OLIVEIRA, Vanessa E. (orgs.). 2018. Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasília: Instituto Econômico de Pesquisa Aplicada.

ROSSI, Amanda & BUONO, Renata. 2020. Quem ganha mais no serviço público. Piauí, São Paulo, 2.mar. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/quem-ganha-mais-no-servico-publico/. Acesso em: 3.fev.2021.

THE LANCET. 2020. COVID-19 in Brazil: “So What?”. V. 395, n. 10235, May 9. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)31095-3/fulltext. Acesso em: 3.fev.2021.



[1] O presente texto destinava-se inicialmente apenas a tratar de maneira rápida da comparação entre os salários do setor público e do privado, considerando-se as consequências acarretadas pelas diferenças de regime jurídico e de carreiras em cada caso. Entretanto, à medida que escrevíamos a extensão do texto aumentou paulatinamente. De qualquer maneira, o seu caráter opinativo manteve-se.

[2] Em recente e interessante artigo publicado na Insight Inteligência, Christian Lynch (2020) diferencia as inúmeras variedades de liberalismo, distinguindo em particular as que enfatizam a liberdade política (“liberais” simplesmente, sem maiores qualificativos) das que enfatizam a liberdade econômica (“neoliberais”). Claro está que, nessa classificação, Paulo Guedes seria um “neoliberal”; mas sua crença pura nas virtudes da liberdade econômica e seu desprezo pela política – que, não por acaso, permitem-no admirar o Chile sob o tacão de Pinochet e dos Chicagoboys (c. 1975-c. 1984) – levam-me a chamá-lo de “ultraliberal”.

[3] Em janeiro de 2021 a revista The Lancet publicou uma carta aberta do pesquisador Pedro Hallal, de Pelotas, em que o autor denuncia a perseguição política que sofreu; ele não perdeu cargo de chefia, mas teve cortados recursos públicos de pesquisas que coordenava. Esse caso não teve o mesmo impacto midiático na imprensa brasileira que os outros dois, mas revela de maneira muito mais clara a ausência de um “projeto de país”.

[4] O mesmo ocorreu na reforma da previdência de 2019 – que, aliás, teve a característica de que os militares foram a única categoria que, então, teve aumento salarial e cuja exclusão da reforma foi a condição política imposta pelas Forças Armadas para apoiarem tanto a própria reforma como continuarem a subscrever o governo Bolsonaro de modo mais amplo.

[5] Já no início de maio de 2020 manifestei publicamente meu lamento e meu desagrado por essas elites retrógradas e insensíveis à sorte da população em uma longa postagem em meu blogue (LACERDA, 2020).

[6] Por motivos evidentes, no presente artigo insistimos apenas nas questões políticas e econômicas; entretanto, o apoio das elites brasileiras a Bolsonaro tem que incluir também o apoio às fake news e à política de “pós-verdade”, o apoio ao desmatamento e às queimadas ilegais, o apoio ao isolamento internacional do país (reduzido à condição de pária em menos de dois anos), a violação sistemática à laicidade do Estado, o apoio a uma nova dizimação dos índios etc. Para usar a linguagem contábil, tão querida por esses ultraliberais autoritárias, o passivo político-social dessas elites aumenta cada vez mais.

14 fevereiro 2021

"Contra alguns mitos da 'reforma administrativa'"

O artigo abaixo foi publicado em 8.2.2020 no jornal Monitor Mercantil; o original pode ser lido aqui.

Da mesma forma, ele foi publicado em 14.2.2021 no jornal Gazeta do Povo; o original pode ser lido aqui

*   *   *

Contra alguns mitos da “reforma administrativa”

A tragédia global e nacional que caracterizou o ano de 2020 deveria reverter-se em lições para a sociedade brasileira; entretanto, o início de 2021 já sinaliza que nós teimamos em não aprender com nossos erros e nossas tragédias. A nova retomada da proposta de “reforma administrativa” é exemplar nesse sentido. Essa “reforma” prevê a alteração radical de diversos dispositivos que regram a estrutura do Estado brasileiro, em particular na contratação e na manutenção de servidores. O principal advogado dessa “reforma” é o Ministro da Economia, Paulo Guedes, defensor de um novo AI-5 e que não esconde desgostar dos servidores públicos – “parasitas” cuja sindicalização deve ser proibida e os sindicalizados, demitidos.

A reforma administrativa pressupõe que o Estado brasileiro é “grande demais”; mas, na verdade, em termos de quantidade de servidores ou de gastos com pessoal, o Brasil está longe de ser “grande”. O tamanho do Estado tem que ser medido pela quantidade e pela qualidade de serviços públicos prestados: mas a estrutura disponível para os serviços públicos é insuficiente para as necessidades nacionais. Os serviços mais evidentes já o ilustram: professores, médicos, enfermeiros, peritos previdenciários etc., sua quantidade está longe de ser suficiente. Os problemas suscitados pela pandemia de covid-19 estão escancarando essa insuficiência.

Os exemplos acima deveriam lembrar-nos de que as necessidades sociais brasileiras não são pequenas, não são de curto prazo nem são estritamente econômicas; inversamente, deveriam lembrar que o Estado brasileiro não pode ser meramente o “regulador neutro do ambiente de negócios”. Como representante prático e realizador concreto do “interesse nacional”, o Estado tem a obrigação de realizar mudanças necessárias na sociedade em conformidade com a opinião pública, além de orientar em grandes linhas a atividade econômica. Entretanto, desde a crise da dívida na década de 1980, progressivamente o Estado brasileiro abdicou dessas funções: a abertura econômica indiscriminada (a financeira em particular) é expressão disso. Assim, os servidores públicos têm um papel central na realização de algo que está meio fora de moda, mas que deveria voltar aos debates públicos: um “projeto de país”.

Passamos, então, à estabilidade dos servidores: simplesmente não se deveria pô-la em questão. A perseguição político-ideológica, realizada com freqüência de maneira raivosa, levada a cabo pelo governo Bolsonaro é a própria justificativa para a existência da estabilidade. Não se trata de um “privilégio” do funcionalismo público, que se erige em casta, contra a instabilidade do setor privado, mas a garantia de que os servidores públicos exercerão um serviço profissional e, ainda mais, que eles não estarão sujeitos aos humores dos governantes do momento.

Também se afirma que os servidores públicos “ganham muito”, com o juízo implícito de que tais “grandes salários” seriam ultrajantes. O ultraje não está no “ganhar muito”, mas na comparação com o setor privado, cujos trabalhadores supostamente ganhariam bem menos. O problema é que essa comparação é superficial, tomando-se uma simples média aritmética dos gastos do setor público com alguma média do setor privado; comparam-se duas coisas que seriam homogêneas, quando, na verdade, elas são heterogêneas. Nos dois setores, quem está no início de carreira recebe bem menos que quem está no final; da mesma forma, quem exerce cargo de chefia recebe mais que quem está nas posições mais humildes. O setor público divide-se em três ou quatro poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público) e três níveis federativos (nacional, estadual e municipal): todos os estudos sérios indicam que a quantidade de servidores aumenta quando passamos do nível federal para o nível estadual e daí para o municipal, mas que os salários pagos diminuem nessa mesma direção. Além disso, o Judiciário e o Ministério Público têm salários muito maiores que o Legislativo e estes são maiores que os do Executivo. O poder Executivo, por sua vez, especialmente no âmbito federal, também é bastante heterogêneo: as Forças Armadas, o Itamaraty, a Receita Federal e mais algumas carreiras são regiamente pagas. Também vale lembrar que algumas áreas são sempre grandes – aquelas que lidam diretamente com a população: educação, saúde, previdência e assistência social, segurança pública –; além disso, há setores que são intrinsecamente caros e custosos, como as áreas de infraestrutura e as de pesquisa: tudo isso entra na conta do Executivo. Quando se fala em supersalários no setor público – e a “reforma administrativa” é defendida em parte para combaterem-se os “supersalários” –, eles ocorrem no Judiciário, no Ministério Público e na cúpula do Executivo; ainda assim, a reforma terá efeito apenas no Executivo civil federal, silenciando a respeito das Forças Armadas e dos outros três poderes.

O setor público tem uma dinâmica específica: a estabilidade no emprego permite que as carreiras desenvolvam-se de maneira efetiva, com ascensão profissional, a partir de cursos feitos pelos servidores. É claro que os servidores buscam subir na carreira porque isso se converte em salários maiores; mas, do ponto de vista da utilidade pública, isso significa que os servidores especializam-se e ampliam suas habilidades. Só de uma perspectiva meramente contábil e fiscalista essa maior qualificação é vista como correspondendo a “mais gastos”!

O setor privado tem outra dinâmica. Para começo de conversa, ele não investe de verdade na qualificação, mas espera que haja trabalhadores qualificados no “mercado” que possam ser contratados; quando há “qualificação”, elas são tópicas e de curto prazo. As qualificações de longo prazo, como são demoradas e caras, não são realizadas pelo setor privado. Aliás, a busca da “redução de custos” tem um efeito paradoxal, pois há trabalhadores superqualificados que, por isso mesmo, não encontram emprego, pois custariam muito! A idéia de lealdade das empresas para com os trabalhadores é algo que inexiste; como há apenas o “mercado” e a competição entre as empresas, os trabalhadores mais velhos e mais qualificados – mais caros – são mandados embora em benefício de trabalhadores mais novos, menos experientes e mais baratos (e não sindicalizados.) Assim, o setor privado ou privatiza a qualificação profissional mais exigente ou beneficia-se dos investimentos feitos pelo setor público: não é por acaso que os grandes programas de mestrado e doutorado no país são todos públicos (ou pesadamente financiados pelo setor público).

A ausência de projeto nacional a partir dos anos 1980 resultou em que estamos fortemente vinculados aos fluxos internacionais de capital especulativo e que o país progressivamente se desindustrializa. Daí termos cada vez menos investimento na economia real, que gera renda e empregos, e termos cada vez menos empregos, isto é, trabalhos com carteira assinada, salários dignos e benefícios efetivos. Inversamente, um vago setor de “serviços” ampliou-se dramaticamente nas últimas décadas, não porque tenhamos uma população altamente qualificada prestando serviços de complexidade média a alta, mas porque temos uma população que é pobre, ganha pouco, não consegue empregos e meramente realiza serviços ou “trabalhos”, ou melhor, faz “bicos”. O grande símbolo disso é o entregador de comida vendida por meio de aplicativos de celulares que vai de bicicleta entregar o produto: recebe uma miséria, não tem estabilidade, não tem benefício social nenhum e tem que usar os próprios recursos para o trabalho; é a “uberização” do trabalho erigida em ideal. Não falta engenhosidade, operosidade ou industriosidade à população: o que falta são políticas públicas que gerem emprego de verdade, um projeto de país que se afaste do capital especulativo e uma elite que valorize o país (e não seja nem autoritária nem seja cega para os “invisíveis”.)

A reforma administrativa não resolverá nenhum desses problemas; na verdade, por opção das elites brasileiras, aumentará os existentes e criará outros, ao desestruturar um serviço público importante e qualificado mas insuficiente para as necessidades nacionais. No fundo, essa é uma contra-reforma, ou anti-reforma: carecemos de uma verdadeira reforma, a partir de um projeto nacional efetivo.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e Doutor em Sociologia Política.

25 agosto 2020

Portal Bonifácio: "Intérpretes do Brasil – os Positivistas"

Após quase um século de pesado e daninho desprezo político e intelectual da parte dos liberais, dos marxistas e/ou dos católicos, felizmente parece que aos poucos o Positivismo vem sendo recuperado e revalorizado pelas elites políticas e sociais brasileiras preocupadas com os destinos nacionais. Isso é motivo para grande comemoração.

 

O texto abaixo foi publicado em um portal eletrônico de caráter nacional-desenvolvimentista intitulado Bonifácio. O original do artigo encontra-se disponível aqui.

 

O autor do texto, entretanto, a despeito da boa vontade ao escrever o texto acima, cometeu alguns equívocos:

 

(1) o projeto positivista NÃO foi implantado durante o regime militar; na verdade, os militares que tomaram o poder eram influenciados pelo autoritarismo e pelo fascismo e combatiam encarniçadamente o Positivismo;

 

(2) o projeto social positivista levava em consideração a "sociedade industrial", que é a forma de organização social baseada no trabalho livre e na divisão entre trabalhadores e patrões; ela NÃO equivale a "industrialismo" ou ao primado das fábricas;

 

(3) simplesmente não está claro o que significa a afirmação segundo a qual Getúlio Vargas teria ampliado o castilhismo em nível nacional, após 1930; em particular, o Estado Novo foi incluenciado pelos fascistas (Góes Monteiro, Francisco Campos e até laivos de Plínio Salgado) e não pelos positivistas, assim como a queima das bandeiras estaduais foi um ato simbólico representativo de uma política radicalmente antifederalista e anticastilhista.

 

*          *          *

 

Intérpretes do Brasil – Positivistas

 

Felipe Maruf Quintas

 

22/08/2020

 

O positivismo no Brasil foi, em grande parte, organizado e difundido pela Sociedade Positivista brasileira, fundada em 5 de setembro de 1878 por Benjamin Constant (1836-1891), Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927). Ela foi um núcleo de pensamento e de organização política influenciado pelo positivismo francês, corrente teórica inaugurada pelo filósofo Augusto Comte, um dos fundadores da sociologia.

 

Segundo o conceituado sociólogo nacionalista Alberto Guerreiro Ramos, os positivistas foram os que “pela primeira vez, entre nós, colocaram com toda clareza o problema da formulação de uma teoria da sociedade brasileira como fundamento da ação política e social” (Ramos, 1957, p. 56). Isto é, o conhecimento científico da realidade social própria do Brasil era a condição basilar para a adequada intervenção política nos rumos do país. 

 

Caso contrário, a ação política limitar-se-ia ao simples empirismo, como teria sido o caso, de acordo com eles, da Inconfidência Mineira, da Revolução Pernambucana de 1817 e da Independência em 1822.

 

Os positivistas valorizaram a memória desses eventos fundadores da nacionalidade e, em particular, resgataram as figuras históricas de Tiradentes e de José Bonifácio, esquecidos durante a Monarquia, colocando-as no panteão dos Pais da Pátria. Propuseram, então, continuar e aprofundar o trabalho histórico de construção do Brasil soberano por eles iniciado, partindo da compreensão científica da realidade brasileira, cujos instrumentos teóricos e metodológicos ainda não teriam sido formulados nos contextos pretéritos em que a Independência havia sido tentada e conseguida.


O caráter analítico sustentaria, assim, o normativo. Os positivistas elaboraram um arrojado projeto de Nação, bastante influente nos anos iniciais da República e que seria aplicado, em essência, no século XX, durante a Era Vargas e o regime militar.

 

A Pátria foi entendida por eles como intermediária entre as famílias, unidade básica da sociedade, e a humanidade, ponto de referência superior da ação política. Tal concepção evitava, assim, o individualismo atomizante próprio da ideia britânica de Estado formulada por Thomas Hobbes e John Locke e, também, o chauvinismo belicista, em tudo contrário à disposição fraterna que os positivistas buscavam estabelecer nas relações internas ao Brasil e externas do nosso País com os demais.

 

Sendo considerada “uma reunião de famílias ligadas pelas mesmas tradições, pelos mesmos interesses, pelas mesmas aspirações” (Teixeira Mendes, 1902, p. 3), a Pátria deveria, então, ser venerada e celebrada em sua história, formadora das possibilidades presentes de construção de um futuro melhor. A ordem, construída pela história e mantida pelo culto aos ancestrais, era a base para o progresso, para o conjunto de melhoramentos aos que a Pátria estaria destinada.

 

Tais possibilidades de melhoria, por sua vez, dependeriam de uma direção intelectual, moral e política, que os positivistas se propunham assumir e colocar em prática por meio do planejamento governamental.

 

A organização nacional proposta pelos positivistas tinha como eixos a República, a centralidade do Poder Executivo, a supressão da hereditariedade dos cargos políticos, a abolição da escravatura sem indenização aos antigos senhores, a separação entre o Estado e a Igreja e as liberdades civis como a de pensamento, de expressão e de culto.

 

O desenvolvimento industrial – entendida a agricultura como a “indústria fundamental” – seria o cerne da estruturação do Brasil projetado pelos positivistas. Segundo eles, o industrialismo seria a base material da moralização da sociedade, ainda mais a brasileira, marcada pelo modelo dissipador do latifúndio escravista voltado ao atendimento prioritário da demanda externa.

 

A indústria elevaria o meio técnico de organização do trabalho, favorecendo uma maior produção e circulação dos bens necessários à elevação do padrão de vida do conjunto da população, bem como uma maior solidariedade social pelo aumento da divisão do trabalho.

 

Defensores da grande propriedade – a mais propícia, segundo eles, para encadear os efeitos positivos da indústria -, os positivistas não deixaram de assinalar a sua função eminentemente social. O capital, surgido do concurso coletivo ao longo de várias gerações, deveria servir ao bem estar das gerações presentes e vindouras. Não seria, portanto, meramente privado, mas um instrumento da sociedade a fim de encaminhar o progresso para todos, devendo ser planejado para essa finalidade.

 

A indústria deveria ser organizada do ponto de vista civil e social, seguindo um planejamento político, não de acordo com o laissez-faire propugnado pelo liberalismo. A ordem industrial não deveria ser guiada por interesses particulares desenfreados, mas pelos interesses de toda sociedade, quer dizer, de toda a Pátria. O desenvolvimento industrial estaria subsumido, assim, à Questão Nacional. Portanto, seria imperativa a incorporação dos trabalhadores, que constituíam a massa de cidadãos, à fruição das melhorias engendradas pela indústria.

 

Ainda que os positivistas enfatizassem a necessidade de uma reforma moral e intelectual dos industriais para conscientizá-los do papel social a que estavam destinados a cumprir, eles não perderam de vista a necessidade de mudanças institucionais.

 

Por isso, em 25 de dezembro de 1889, Teixeira Mendes, por intermédio de Benjamin Constant, apresentou ao Governo Provisório da República nascente um ambicioso projeto de reforma legal das condições de trabalho para proteger a “família proletária contra o empirismo industrialista”. Esse plano, elaborado a partir da consulta a cerca de 400 operários, e não a Carta del Lavoro da Itália fascista, foi a base para a legislação trabalhista adotada por Getúlio Vargas.

 

Entre as medidas propostas, constavam o salário mínimo, a jornada de trabalho de 7 horas diárias, a proibição do trabalho infantil, o direito a férias de 15 dias e à folga dominical, a estabilidade no emprego após 7 anos de serviço, a licença remunerada em caso de doença, aposentadoria por idade e por invalidez, pensões às viúvas e órfãos menores de idade.

 

Tais medidas, muito à frente do estágio então presente das forças produtivas brasileiras, foram arquitetadas deliberadamente para impedirem que a industrialização em nosso País se desse nas condições hostis ao trabalhador e sua família, verificadas na maioria dos países que compõem o centro capitalista norte-atlântico. O modelo de desenvolvimento propugnado pelos positivistas era, portanto, de cunho social, dirigido prioritariamente para o bem-estar da sociedade como um todo e não para a acumulação de riqueza nas mãos de poucos capitães de indústria.

 

Os positivistas brasileiros influenciaram significativamente os círculos militares e o movimento republicano, podendo ser considerados, com justiça, patronos da República brasileira.

 

Benjamin Constant teve papel decisivo na Proclamação da República, convencendo o até então monarquista Deodoro da Fonseca a aderir à causa republicana e dirigindo a rebelião militar para que a substituição de regime não desandasse em violência e revanchismo. A criação, em 1890, do Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, voltado a organizar a educação básica no Brasil, atendeu a solicitação de Benjamin Constant, tendo sido desmantelado após o seu falecimento.

 

Teixeira Mendes, por sua vez, é o autor da atual bandeira nacional, tendo sido da sua iniciativa a preservação do traçado básico da bandeira imperial e a inclusão do lema “Ordem e Progresso”, derivado do lema comteano “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”. Foi estabelecida em contraposição à bandeira sugerida por Rui Barbosa, cópia verde-amarela da dos EUA, absolutamente incompatível com a nossa identidade e as nossas tradições.

 

Houve, pois, forte influência positivista no Exército e a participação decisiva de alguns dos seus principais quadros na Proclamação da República e, também, na instauração do Estado laico na primeira Constituição republicana.

 

Todavia, o reformismo social positivista, em grande parte, não obteve efetivação prática em âmbito nacional durante a Primeira República, principalmente a partir dos governos de Prudente de Morais e de Campos Sales, que consolidaram no comando do país a coalizão oligárquica capitaneada pelos cafeicultores paulistas.

 

Ainda assim, e possibilitado pelo federalismo adotado na República, o positivismo foi decisivo, em particular, no plano estadual do Rio Grande do Sul. Os governos do PRR (Partido Republicano Riograndense), liderados por Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros e Getúlio Vargas, estabeleceram uma direção fortemente positivista à administração desse estado, formando uma vertente política do positivismo alcunhada de castilhismo. Desse modo, o Rio Grande do Sul, em linha contrária ao do liberalismo oligárquico prevalecente na esfera federal, conheceu avanços substantivos em sua estrutura produtiva, na cobertura dos serviços públicos e na proteção aos trabalhadores. Essa última, inclusive, foi assegurada pela Constituição estadual de 1891, redigida por Castilhos e de elevada inspiração positivista.

 

O positivismo também foi marcante nos governos de Moniz Freire (1892-1896 e 1900-1904) no Espírito Santo, estado onde a Constituição também recebeu forte influência do positivismo; nos governos de Lauro Sodré (1891-1897 e 1917-1921) no Pará; e no governo de João Pinheiro (1906-1910) em Minas Gerais. A capital mineira, Belo Horizonte, havia sido planejada no final do século XIX por um engenheiro positivista, Aarão Reis (1853-1936), cuja contribuição para a economia política brasileira muito influenciou o futuro presidente Getúlio Vargas. Em todos esses estados, a prática do planejamento econômico levou a administrações inovadoras e a uma grande prosperidade material.  Em grande parte, o projeto delineado pela Sociedade Positivista alcançou realização empírica nesses estados.

 

No âmbito nacional, o projeto positivista de industrialização concomitante à formação de um Estado de bem-estar social tipicamente brasileiro somente veio a ser colocado em prática após a Revolução de 1930, que, de certa forma, amplificou o castilhismo em escala nacional. Em maior ou menor grau, os sucessivos governos nacionais até aproximadamente 1980 foram influenciados pelo positivismo, fazendo com que o Brasil se tornasse um dos países de maior crescimento industrial nesse período.

 

Tanto os postulados teóricos quanto as contribuições programáticas do positivismo permanecem atuais no século XXI.

 

A primazia dos interesses nacionais sobre os particulares e a superação dos conflitos e ódios em favor da unidade da Pátria são a base para o êxito de todos. A retomada da industrialização, necessária para incrementar a posição do Brasil e dos seus empresários na ordem internacional multipolar que se delineia, precisa ser compatível com o atendimento das necessidades materiais e espirituais de um contingente de mais de 200 milhões de compatriotas, que constituem a essência e a razão de ser da Nação. Em um país infelizmente marcado pela precariedade das condições de vida da maior parte da população, o desenvolvimento das forças produtivas deve servir à edificação de uma sociedade mais justa e generosa, de modo a solidificar os vínculos de solidariedade nacional, condição fundamental para o Brasil sobreviver e prosperar frente aos desafios desse século.

 

Referências e sugestões de leitura:

 – A Pátria Brasileira – Teixeira Mendes. 1902. Disponível em: http://www.biblio.com.br/conteudo/teixeiramendes/molduraobras.htm