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15 maio 2018

Gazeta do Povo: "200 anos de Marx: há algo a comemorar?"

Em homenagem aos 200 anos de nascimento de Marx, apresento abaixo minha pequena contribuição-retribuição aos desserviços intelectuais e práticos prestados por ele.

Esse texto foi publicado na Gazeta do Povo em 14.5.2018. O original encontra-se disponível aqui.

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200 ANOS DE MARX: HÁ ALGO A COMEMORAR?


“A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos”
(Karl Marx)

“Os verdadeiros partidários do progresso social não tardarão em reconhecer que a insurreição dos vivos contra o conjunto dos mortos é contraditória com a digna preparação de um futuro que supõe o passado”
“A ordem permanecerá retrógrada enquanto o progresso permanecer anárquico”
(Augusto Comte).


O dia 5 de maio marcou o bicentenário de nascimento de Karl Marx (1818-1883), o fundador do comunismo e, bem ou mal, pai espiritual de centenas de milhões de seguidores. Não há dúvida de que essa data incita à reflexão – especialmente quando os próprios marxistas celebram-na e afirmam que Marx teria contribuído decisivamente para o progresso da humanidade, em termos intelectuais e também práticos; nesse sentido, aliás, nas redes sociais houve marxistas que propuseram que os não marxistas e os antimarxistas tivessem “honestidade intelectual” para reconhecer essas contribuições. Ora, isso é altamente problemático: tanto a exigência de “honestidade intelectual” quanto a afirmação de que Marx teria sido um dos maiores pensadores da humanidade são largamente exageros, profundamente chocantes e, no fundo, ao contrário da honestidade intelectual exigida, essas afirmações são desonestas. No conjunto, essas afirmações integram um verdadeiro “mito Marx”, constituído por seus discípulos ao longo de pelo menos os últimos 170 anos.

Antes de mais nada: as virtudes habituais, ou seja, os comportamentos e as disposições de espírito que habitualmente se chamam de “virtudes” sempre foram chamadas por Marx de “preconceitos burgueses”; nesse sentido, a honestidade seria um dos mais claros desses preconceitos. Ocorre que, sendo um herdeiro do hegelianismo e, mais amplamente, da metafísica alemã, para Marx as opiniões mais incoerentes eram “resolvidas” por meio de pelo menos três expedientes complementares: (1) uma escrita rocambolesca; (2) o apelo às ideias de “contradição” e “lógica dialética”; (3) uma retórica violenta, agressiva e altamente irônica.

A escrita rocambolesca é um recurso bastante conhecido e fácil de entender: qualquer pessoa que deseje afetar profundidade pode escrever de maneira confusa, de modo a confundir os leitores e produzir com facilidade sofismas. Já a “contradição” é uma forma mais sutil, mas também mais desonesta, de iludir: quando um autor vê-se face a incoerências manifestas, basta afirmar que as incoerências referem-se a aspectos da própria realidade e que a realidade é “contraditoriamente” incoerente; ou, então, afirma-se que os aspectos díspares e incoerentes das “contradições” são “integrados” e “superados” na “lógica dialética”, que, por sua vez, é uma forma “superior” de racionalidade. Por fim, a retórica carregada, violenta e irônica é o recurso final para evitar qualquer forma de argumentação racional explícita; a ironia evita o confronto argumentativo, assim como a violência retórica evita a racionalidade e ainda dá permite ataques pessoais, ad hominem, aos adversários. (Esses traços, próprios do pensamento e da retórica de Marx, foram copiados em diferentes medidas por seus discípulos.)

Tudo isso para observar que Marx desprezava as virtudes habituais como sendo preconceitos, mas ao mesmo tempo aceitava – pelo menos em princípio – a argumentação racional e científica a respeito de suas obras, ou seja, a argumentação feita com honestidade “intelectual”. Entretanto, a aceitação da honestidade “intelectual” era feita apenas em princípio, de maneira retórica: Marx repudiava seus adversários apelando sistematicamente para os três aspectos acima (apelo às “contradições” e retórica violenta, irônica e confusa). Assim, da parte de Marx não havia nem respeito à honestidade em geral (“preconceito burguês”) nem respeito à honestidade “intelectual” em particular (rejeitada na prática).

“Um dos maiores pensadores da humanidade”: um título desses exige não apenas uma grande capacidade intelectual, como também contribuições efetivas e de vulto para o progresso da humanidade. Deixando de lado o fato de que o “progresso” conforme entendido por Marx é uma concepção altamente problemática (como também era a concepção-irmã de “ordem” – ambas definidas de maneira rasa) e que, após a atuação de Marx e dos marxistas a concepção do “progresso” sofreu danos gigantescos, ocorre que a atuação específica de Marx no que se refere a esses dois quesitos mínimos (grande capacidade intelectual e grandes contribuições efetivas para o progresso) não justificam sua inscrição no panteão intelectual e político da humanidade.

É necessário admitirmos que as inúmeras obras de Marx são de fato interessantes e estimulantes; a leitura de seus livros sugere muitas ideias, das quais muitas são úteis e realmente proveitosas. As chamadas “obras históricas” (como o 18 Brumário de Luís Bonaparte) são particularmente interessantes, ao sugerirem perspectivas para a Sociologia Política e para a História Social e Política. Entrementes, convenhamos: obras “interessantes”, “estimulantes” e “sugestivas” não é o mesmo que obras “geniais” ou “marcos inescapáveis da reflexão científica”. As obras “históricas” de Marx são interessantes – assim como o são, por exemplo, os livros de Alexis de Tocqueville (como A democracia na América): não há nada de “genial” aí. Observações similares podem ser feitas a respeito das obras “filosóficas” e das “econômicas” de Marx, bem como a respeito de sua atuação prática (no movimento dos trabalhadores).

Podem contra-argumentar que Marx teria sido genial na crítica ao capitalismo. Mas teria mesmo? A análise dos mecanismos sociais, políticos e econômicos da produção econômica não são e não foram exclusividade de Marx; propor um esquema geral para explicar diversos elementos da vida social também não foram exclusividade marxista. Exemplos de esquemas explicativos gerais e abrangente da realidade social do século XIX, em termos históricos? Basta ler-se as obras de Augusto Comte, de Tocqueville, de Herbert Spencer, de Bakunin, ou de muitos outros: não é que esses autores não tenham desenvolvido análises profundas, originais e muitas vezes brilhantes; ocorre que, não por acaso, o “mito Marx” obscurece-as.

Em sua explicação do “capitalismo”, Marx usou um conceito moral (a maldade do “capital”) para iniciar sua “crítica”. Além disso, “inverteu” Hegel e afirmou que os elementos econômicos (ou materiais, ou infra-estrutura, ou qualquer que seja o termo que o exegeta marxista de plantão deseje) determinam os elementos não-econômicos (a “super-estrutura” – a política, a filosofia, as artes, as religiões, a cultura). O que significa “determinar” aí é um problema epistemológico insolúvel desde a época de Marx; mas o sentido geral é claro: são as relações econômicas que devem ser levadas em consideração para explicar-se ou entender-se a política, as artes, a cultura, as religiões etc.; além disso, é necessário mudar as relações econômicas para que se “mude” a sociedade.

Há nessa crítica uma forte ambiguidade moral a respeito da própria moralidade; na verdade, duas ambiguidades. Por um lado, Marx reconhecia que o ser humano tem elementos altruístas e que pode agir altruisticamente: o problema é que tal ação altruísta só pode ocorrer quando o “capitalismo” (e, de maneira mais ampla, a luta de classes) deixar de existir; até lá, o ser humano será sempre egoísta, com a possível exceção daqueles que “lutam” pelo fim do capitalismo. Por outro lado, embora a crítica ao capitalismo baseie-se em uma avaliação moral, essa própria moralidade de fundo é escondida sob o rótulo de “análise objetiva”, ao mesmo tempo em que a moralidade comum, como vimos, é condenada como “preconceito burguês”: em outras palavras, “dialeticamente”, “contraditoriamente”, a moralidade é afirmada-negada.

Dito isso, a submissão da super-estrutura à infra-estrutura é moralmente degradante, politicamente irresponsável e intelectualmente errada. Uma coisa é dizer que há relações mais ou menos fortes entre a classe social que a pessoa integra e algumas de suas preferências morais, políticas e filosóficas; outra coisa é dizer que basta saber em que classe social a pessoa nasceu para deduzir daí o seu comportamento – e, mais importante ainda, para (des)valorizar as ações dessa pessoa. O sentido disso é este: para Marx, o fato de uma pessoa ter nascido na classe média torna-a uma “burguesa” e todos os seus atos, conscientes ou não, serão favoráveis à burguesia; há a possibilidade de essa pessoa “trair” a classe (ajudando os proletários, por exemplo), mas, exceto no caso da traição em favor do proletariado, todas as ações desse burguês serão pela exploração dos trabalhadores, da sua dominação política, da enganação sistemática a respeito de sua condição etc. Se, inversamente, um proletário age “contra” a sua classe social, esse comportamento ocorre porque ele ou é um traidor da classe ou, o que supostamente seria mais “correto” para o marxismo, esse proletário não teria “consciência de classe”: em outras palavras, ele seria um iludido. Aliás, mesmo a expressão “capitalismo”, cunhada por Marx, implica sempre, necessariamente, a exploração objetiva do proletariado pela burguesia: expressão marxista, ela junta uma suposta descrição (relações entre proletariado e burguesia) com uma forte mas escondida condenação moral (“o capitalismo é mal porque as relações são sempre de exploração”).

Dois aspectos centrais que se evidenciam dos comentários acima são a luta de classes e a utopia igualitarista. A luta de classes, para Marx, não era uma figura de expressão, ao menos para o “capitalismo”: as duas classes sociais do capitalismo (proletariado e burguesia) estão sempre, necessariamente, em conflito, seja ele às claras, seja ele encoberto. O conflito às claras não são meramente as greves; por si sós, elas apenas podem constituir o início do conflito franco: o conflito às claras é a revolução social, o enfrentamento armado dos proletários contra a burguesia; em outras palavras, é a guerra civil em bases de classe. O conflito encoberto são as outras relações sociais – que, dessa forma, são sempre ruins, negativas: um tratamento digno que porventura um burguês dispense a um proletário (como cidadão, como trabalhador, como ser humano) é apenas um fingimento, ou uma ilusão autoinduzida. As relações sociais entre as classes sociais só não são ruins quando são alianças (sempre temporárias) que possam conduzir à revolução social. A revolução, por seu turno, é rompimento com a história, é tabula rasa: há uma forte ambiguidade também aqui, em que a história e a historicidade são-e-não-são valorizadas. (Mas, se considerarmos a famosa frase segundo a qual “as gerações passadas oprimem os cérebros dos vivos”, veremos que, no fim das contas, a história não é valorizada.)

Nesses termos, não foi por acaso que há alguns anos uma professora de Filosofia da Universidade de São Paulo falou que “a classe média é uma merda”: Marilena Chauí evidenciou de maneira cristalina todo o seu marxismo e a moralidade a ele vinculada – mesmo que ela mesma, como intelectual e servidora pública, e pelo conjunto de sua situação social objetiva, seja uma burguesa, integrante da classe média.

Se o capitalismo é sempre, por definição, mal; se ele define-se pelo conflito inexpiável entre proletários e burgueses, como é que esse conflito pode, talvez, ter um fim? Por meio do fim das classes sociais. Novamente: o “fim das classes sociais” deve ser entendido de modo literal; em particular, deve-se acabar com a classe burguesa. Para Marx, o fim das classes sociais permitirá que o ser humano deixe de ser “proletário” ou “burguês”, sendo somente um “ser humano”. Com o fim das classes, as pessoas deixarão de ser definidas, entendidas e explicadas a partir de suas classes sociais, passando a ser puramente “indivíduos”. Com isso, os indivíduos perderão as limitações que as classes sociais impõe-lhes: aí surge a imagem idílica, mas irreal e completamente fantasiosa, de que o fim das classes (e do capitalismo) permitiria que cada pessoa trabalhasse pela manhã em uma fábrica, fosse à tarde pescar e à noite discutisse filosofia e que no dia seguinte fosse passear pelos campos pela manhã, fizesse esculturas à tarde e redigisse poemas épicos à noite – e assim sucessivamente.

Essa imagem pode parecer bonita e atraente, mas na verdade ela é profundamente falsa e errada. São pelo menos três os problemas relacionados a ela. Em primeiro lugar, ela despreza o trabalho e é irresponsável: a recompensa para os trabalhadores seria uma vida livre de qualquer responsabilidade, em particular sem a necessidade de trabalhar para sobreviver; o mundo ideal que o marxismo propõe para os trabalhadores é uma existência desvinculada de relações duradouras e de esforços constantes, que, “dialeticamente”, lembra os relatos dos aristocratas mais inúteis das monarquias. Deveria ser chocante esse contraste; mas o fato é que os marxistas (a começar pelo próprio Marx) nunca examina(ra)m atentamente o fato “contraditório” de que o ideal de vida para os trabalhadores consiste na negação radical do trabalho e, inversamente, na afirmação mais desbragada da inutilidade, da futilidade, da irresponsabilidade. Talvez os marxistas examinem, ou tenham examinado, essa incoerência: mas, por outro lado, não se vê nenhum marxista criticando a sua utopia, cujo papel político e intelectual é tão central; da mesma forma, a Sociologia do Trabalho, que é uma área acadêmica dominada pelo marxismo, a despeito de afirmar valorizar abstratamente o trabalho, sempre vê o trabalho concreto – por definição “capitalista” – como algo ruim e negativo, como fonte de alienação e nunca de realização pessoal e coletiva.

Em segundo lugar, a “utopia” marxista é falsa pelo simples fato de que o ser humano tem que trabalhar muito e continuamente para poder sobreviver. Como o Positivismo de Augusto Comte nota e ao contrário do que afirmam o marxismo e inúmeras filosofias da história que, na verdade, são anti-históricas, ao longo da história é possível que a carga de trabalho diminua, que a produtividade aumente, que as condições de trabalho melhorem e/ou tornem-se menos degradantes; ao contrário do que o marxismo afirma, a melhoria das condições de vida e de trabalho dependem do acúmulo histórico, não de revoluções (que, por seu turno, destroem os frutos acumulados do trabalho): mas, de qualquer maneira, o trabalho contínuo permanecerá sendo uma das características centrais de todas as sociedades. Assim, a utopia marxista é na verdade uma quimera, que nega a realidade, a permanência e a necessidade do trabalho e, no final das contas, degrada os próprios trabalhadores.

Em terceiro lugar, há um aspecto por assim dizer técnico referente ao trabalho. Um trabalhador qualquer só se torna habilidoso em suas atividades se realizar cotidiana e continuamente suas tarefas, ao longo de bastante tempo. Aliás, não importa que seja um trabalhador; um burguês, um intelectual, um artista têm que desenvolver suas habilidades da mesma forma. Esse desenvolvimento das habilidades requer tanto o trabalho prático, nas atividades laborais cotidianas, quanto o aprendizado de novas técnicas, novas teorias etc., em cursos de aperfeiçoamento. Em outras palavras, para que o trabalho seja bem feito é necessária a especialização dos trabalhadores (e dos burgueses, e dos intelectuais, e dos artistas); ela ocorre não somente em termos individuais, mas coletivos, e o resultado da especialização coletiva é a constituição, e a permanência, das classes sociais. Uma outra forma de entender a especialização é por meio da divisão social do trabalho – e, como os sociólogos não marxistas sabem há muito tempo, uma das consequências da divisão social do trabalho é a complementaridade das relações sociais: cada indivíduo e cada classe fornece às demais o que produz e recebe das demais o que não produz.

Esses erros intelectuais e defeitos morais perpassam as obras de Marx e as de seus herdeiros teóricos e práticos: as dezenas ou centenas de marxismos todas compartilham essas características. Elas não são erros menores ou secundários; esses problemas são centrais, mesmo que não sejam explícitos. Nesses termos, como é possível afirmar, com seriedade, que Marx teria sido um dos maiores pensadores da humanidade? O período em que ele viveu (o século XIX) já tinha elementos suficientes para que ele não incorresse em tais problemas: tanto isso é verdade que muitos outros pensadores fizeram “críticas” da época sem errarem como errou Marx.

Mas é necessário comentar as consequências práticas do marxismo. Nesse aspecto, é necessário falar bem menos: não porque não haja o que dizer, mas porque as suas consequências são desastrosas e elas são sobejamente conhecidas, ainda que os próprios marxistas façam o possível (mas também o imoral) para mudarem de assunto, para fingirem que não produziram desastres e para imputarem aos outros os seus próprios defeitos. (Embora, como observamos antes, um “defeito” seja uma categoria moral – e, para os marxistas, as categorias morais são apenas “preconceitos burgueses”, portanto desprezíveis.)

Comecemos pelo mais conhecido: os crimes de Lênin e Stálin, as invasões à Hungria em 1956 e à Tchecoslováquia em 1968, os grupos terroristas na Alemanha e na Itália entre as décadas de 1960 e 1990, as violências em Cuba, na Albânia, no Camboja, o apoio ao terrorismo árabe etc. Para tudo isso, sugerimos somente duas referências gerais: O passado de uma ilusão, de François Furet, e O livro negro do comunismo, de Jean-Louis Margolin e outros. Os regimes políticos inspirados no marxismo foram, e são, sempre autoritários, cerceadores das liberdades. A seu favor não é nem mesmo possível argumentar a diminuição das mazelas do “capitalismo” – por exemplo, com o chamado Estado de Bem-Estar Social: o Welfare State foi criado para preservar o capitalismo e evitar o comunismo, não o inverso; os propositores do Estado de Bem-Estar eram todos e sempre pessoas imbuídas de todos aqueles valores e preocupações que Marx chamava de “preconceitos burgueses”: isso se torna mais nítido quando se percebe que o Welfare consiste em larga medida em uma política de colaboração de classes, em vez de uma luta de classes. Ao mesmo tempo, a ação direta dos marxistas foi sempre no sentido de incentivar sublevações populares, revoluções, golpes etc. As ocasiões em que os comunistas desenvolveram ações realmente mais progressistas e construtivas foram aquelas em que eles afastaram-se das ortodoxias marxistas: basta ver a Social-Democracia na Alemanha, após a II Guerra Mundial.

De qualquer maneira, podemos reconhecer sem dificuldade que, independentemente das suas ações concretas, a popularidade do marxismo pode servir como uma espécie de “termômetro social” (uma proxy, como se diz nas Ciências Sociais): quanto mais popular o marxismo, presumivelmente piores serão as condições sociais. Evidentemente, disso não se segue que as soluções propostas pelo marxismo devam ser postas em prática.

De qualquer maneira, há um traço intelectual originado com Marx e transmitido pelo marxismo que se perpetuou ao longo do tempo e que se difundiu mundo afora, sendo muito ativo hoje no Brasil; esse traço consiste na combinação das “contradições dialéticas” com a atitude “crítica”. Já comentamos como é que o marxismo lida com as “contradições”; a mera inclusão dessa palavra em um discurso marxista basta para solucionar as maiores e mais gritantes incoerências. Um exemplo é o conceito de “tolerância intolerante”; embora de validade atual, ele foi elaborado no final dos anos 1960 pelo filósofo Herbert Marcuse, de origem alemã mas convenientemente radicado nos Estados Unidos. A tolerância intolerante consiste nisto: como a tolerância é uma virtude burguesa, ela na verdade é mais um preconceito burguês que serve apenas para beneficiar o capitalismo; dessa forma, os adeptos da tolerância intolerante devem ser tolerantes com aqueles que compartilham suas opiniões, mas devem ser intolerantes com quem discorda de suas opiniões; além disso, os adeptos da tolerância intolerante são, por definição, “progressistas” e, inversamente, aqueles que discordam são por definição “fascistas”. Evidentemente, a ideia de “tolerância intolerante” é incoerente e sua aplicação é profundamente autoritária; mas, para vestir uma roupagem “progressista”, basta dizer que ela é contraditória – e aí fica tudo bem.

A atitude “crítica” geralmente é apresentada em um primeiro momento como de “avaliação científica” de alguma realidade (geralmente, uma realidade social); mas o específico do que estamos comentando é que essa avaliação é sempre político-moral, com um viés negativo e um espírito destruidor. O conceito de “capitalismo”, por exemplo, é essencialmente crítico no sentido que estamos expondo: ele não consiste apenas em uma forma de descrever uma certa realidade, mas, além de dizer que a sociedade organiza-se de uma determinada forma, a palavra “capitalismo” também faz uma acusação de que o capitalismo é mal e é sempre dominador-e-explorador. Assim, a atitude “crítica” é uma atitude permanentemente contrária “a tudo que aí está”; ela serve para destruir, para negar, não para avaliar e propor.

É claro que há muitas situações em que é necessário de fato “criticar”: por exemplo, o trabalho escravo nos dias atuais deve ser efetivamente criticado sem remissão. Isso é uma coisa. Mas outra coisa, bem diversa, é sempre criticar, sempre destruir e, de qualquer maneira, sempre reclamar. Além de chatos, os intelectuais críticos são incapazes de propor soluções, de considerar que (de vez em quando!) há avanços, que situações antes ruins tornaram-se melhores, que o que estava menos mal está agora melhor; da mesma forma, os intelectuais críticos são incapazes de avaliar o que quer que seja sem apelar para a quimera comunista, mesmo que implicitamente. Como exemplos concretos de intelectuais marcadas por atitudes “críticas”, nesse sentido, podemos desde já duas intelectuais brasileiras que fazem grande sucesso: Marilena Chauí e Márcia Tiburi. A primeira é ortodoxamente marxista, enquanto a segunda seria uma marxista “pós-moderna”; mas é fácil perceber nos escritos e entrevistas de ambas a forte “criticidade”.

De maneira mais conspícua, podemos dar um outro exemplo de atitude “crítica”: a corrente teórica dos chamados “estudos pós-coloniais”. De acordo com os seus autores, a África, a Ásia e até a América Latina são dominadas desde o século XV até hoje pela Europa e pelo seu sucedâneo, os Estados Unidos – em uma palavra, pelo “Ocidente” –; como são dominadas política, econômica e intelectualmente pelo “Ocidente”, essas regiões devem sublevar-se contra a dominação e o status de “colônia”, desenvolvendo relações sociais, políticas, econômicas e intelectuais “alternativas”. Pouco importa a essa corrente que não há mais colônias ocidentais na Ásia, na África e na América Latina; que muitos dos problemas (embora não todos) por que essas regiões passam têm origem nelas mesmas; que muitos, quando não a totalidade, dos intelectuais “pós-coloniais” estuda, estudou ou trabalha nos mesmos países integrantes do Ocidente que criticam; que – e isto é o mais importante – as condições sociais, políticas, econômicas e intelectuais que permitirão a “emancipação” dessas regiões (liberdades de pensamento, de expressão, de reunião; emancipação das mulheres; trabalho livre etc.) foram criadas e são mantidas exatamente pelo mesmo Ocidente violentamente criticado. Aliás, embora o “Ocidente” tenha sérias responsabilidades sobre diversos problemas atuais – por exemplo, a interferência daninha da Europa em conflitos no Oriente Médio –, os intelectuais do pós-colonialismo fazem um completo e obsequioso silêncio a respeito do neocolonialismo exercido por países asiáticos sobre o resto do mundo (exemplos banais: penetração da China na África, na Ásia e na América Latina; imperialismo russo renovado na Europa, no Oriente Médio e na Ásia); ou das violências que países “colônias” sofrem de seus próprios governantes (como em Cuba e na Venezuela). Tudo isso apresentado sempre de maneira bastante “crítica”.

O que vimos indicando corresponde a traços do pensamento e das práticas do marxismo, mas também do próprio Marx; com a distância que 150 a 200 anos, é sem dúvida nenhuma fácil para nós fazermos essas críticas, mas convém notar que desde o século XIX, ou seja, desde quando o próprio Marx vivia, escrevia e atuava havia autores que indicavam que esses problemas poderiam ocorrer. O mais interessante é que muitas de tais críticas provieram não da “direita”, mas do próprio lado do marxismo – da esquerda anarquista. Tanto Bakunin (Escritos contra Marx) quando Proudhon (Os anarquistas julgam Marx) já denunciavam no século XIX que o marxismo conduziria ao autoritarismo, à alienação dos trabalhadores etc. – sem deixar de notar que o próprio Marx agia de maneira torpe, desonesta, de má-fé com seus adversários (mesmo os adversários anarquistas) (afinal, as virtudes habituais são “preconceitos burgueses”).

Todos esses problemas que indicamos são tanto de Marx quanto das tradições nele inspiradas. Como se vê, não são problemas pequenos ou secundários, mas são grandes e centrais. Fica assim a dúvida: o que há, de fato, para comemorar nos 200 anos de nascimento de Marx? Aliás, como é possível que marxistas exijam, com seriedade, que se tenha generosidade para com Marx no momento de sua avaliação, se essa generosidade sempre foi “criticamente” rejeitada por ele e pelos marxismos?

Embora longo, este artigo não pôde desenvolver outros temas, que deveriam ser abordados. Queríamos antes de mais nada indicar que é difícil, ou impossível, sustentar que Marx teria sido um gênio e um benemérito da humanidade; assim, este artigo lamentavelmente assumiu um aspecto... “crítico”. Mas é fato que uma avaliação minimamente completa de Marx teria que abordar pelo menos dois outros aspectos: (1) quais propostas e meios positivos para solucionar os problemas humanos e sociais? (2) Como entender o “progresso”, considerando que desde o século XX essa concepção é monopolizada pela esquerda e, em particular, pelos marxistas? Notamos antes que os danos causados pelos marxismos ao “progresso” (e à sua idéia-irmã, a de “ordem”) foram imensos; aqui só podemos sugerir a leitura de nosso artigo “Os conservadores à deriva no Brasil” (Gazeta do Povo, 1.4.2018). Já sobre a primeira questão, teremos que aguardar uma nova e mais propícia ocasião.

27 janeiro 2017

Historicidade para o progresso

Há uma frase de Karl Marx, repetida à exaustão, segundo a qual "as gerações passadas oprimem os cérebros dos vivos". Ela está logo no início do 18 Brumário de Luís Bonaparte e já assumiu o caráter de frase pop de todo indivíduo que quer exibir alguma atitude "crítica", "política", "engajada", "histórica" etc., incluindo aí intelectuais, professores universitários, doutores e assim por diante.

Em contraposição a essa frase de Marx, há uma outra, agora de Augusto Comte, muito mais interessante:

"Os verdadeiros partidários do progresso social não tardarão em reconhecer que a insurreição dos vivos contra o conjunto dos mortos é contraditória com a digna preparação de um futuro que supõe o passado" (Augusto Comte, Apelo aos conservadores, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1899, p. 135).

Progresso de verdade é isso - e pressupõe uma historicidade real. O resto é lenga-lenga para impressionar e causar sensação.

02 maio 2015

Marxistas ricos e condenação moral da riqueza para Marx

Nos últimos meses, nas chamadas “redes sociais”, várias pessoas têm afirmado que nas obras de Karl Marx não há nenhuma afirmação que impeça socialistas, comunistas ou “marxistas” de serem ricos – ou, por outra, que não é incoerente ou hipócrita da parte dos marxistas, socialistas ou comunistas criticarem a riqueza concentrada e serem eles mesmos ricos: talvez essa inexistência de condenação seja verdade. O problema é que tal argumento é uma falácia, por definição destinada (1) a enganar (2) os incautos: o conjunto da obra de Marx pretende demonstrar que a concentração da riqueza – seja o processo de geração da riqueza, seja o processo de concentração da riqueza, seja a simples posse da riqueza concentrada – é imoral de qualquer maneira.

Em O capital e em outras obras, Marx argumenta que os ricos são ricos porque sistemicamente exploram os não-ricos. No capitalismo isso quer dizer que a burguesia explora o proletariado; tal exploração é “sistêmica” e objetiva: o funcionamento do sistema conduz os burgueses a explorar e os proletários a serem explorados, independentemente da vontade individual. Não importa a vontade, a consciência, os valores, a intenção de quem explora: a exploração ocorrerá quer os capitalistas queiram, quer não queiram. Em outras palavras, o que o marxismo pretende demonstrar é que ser rico é explorar o proletariado –  sempre.

Além de ser o produto da exploração, a riqueza também é o índice por definição da desigualdade social; a desigualdade, por sua vez, é ruim em si mesma. Por esse motivo, na sociedade socialista – nunca definida por Marx –, as desigualdades devem desaparecer, juntamente com a luta de classes que a produz, que a perpetua e que a justifica. A desaparição das desigualdades, das classes e da luta de classes fará desaparecer, também, a própria idéia de “riqueza”.

Em suas obras, Marx condena a exploração e a desigualdade: esse valor moral específico – condenação da exploração e da desigualdade – é um valor “aceitável”. Mas outros valores morais a respeito dos quais Marx não faz nenhuma ressalva são a hipocrisia e o cinismo; na verdade, o que se percebe nos escritos marxianos é a idéia de que a condenação e a rejeição da hipocrisia e o cinismo são valores morais burgueses ou até pré-capitalistas. 

Enquanto Marx pretende fazer uma crítica objetiva (que, como vimos, afirma que no capitalismo ocorre a eterna e necessária exploração do proletariado pela burguesia), as críticas "subjetivas" - que se baseiam em e que consistem na aplicação de valores morais a situações sociais - são sempre hipócritas, cínicas, ingênuas. Aliás, seguindo nessa mesma linha, para Marx, bem como para seus inúmeros seguidores, a crítica ao cinismo e à hipocrisia é “moralismo” e é ela mesma cínica e hipócrita.

Para Marx, a rejeição moral de idéias ou situações, de modo geral, é uma característica “burguesa” e, como tal, é desprezível e um instrumento da luta de classes – logo, é um instrumento da dominação burguesa de classe e da exploração do proletariado realizada pela burguesia. Em suma: rejeitar a hipocrisia e o cinismo (ou a corrupção) – em todo caso, rejeitar a falsidade – é um valor burguês que serve apenas para manter a exploração do proletariado e a desigualdade social.

O resultado disso tudo é que: (1) rigorosamente, pode ser que Marx não fosse contrário a socialistas serem “ricos”, mas (2) a riqueza é sistemicamente o resultado da exploração classista sofrida pelo proletariado. Ao mesmo tempo, contraditoriamente, (3) não há problema em socialistas serem ricos, pois (4) a rejeição da hipocrisia é um valor (ou preconceito) burguês.

As soluções habituais encontradas pelos marxistas (teóricos e/ou práticos) para tal situação profundamente “contraditória” – isto é, para essa incoerência – são as seguintes: (1) afirmar que a riqueza mantida pelo Estado (“propriedade coletiva dos bens de produção”) é progressista e libertadora, ao contrário da riqueza individual, vista como reacionária ou conservadora; (2) denunciar ou desprezar a denúncia moral como sendo burguesa, logo, como sendo ela mesma hipócrita e instrumento da luta de classes; (3) silenciar a respeito dessa incoerência. É claro que essas estratégias não são mutuamente excludentes.

É dessa forma que é possível aos marxistas, socialistas e/ou comunistas denunciarem a riqueza mas eles mesmos serem ricos.

05 fevereiro 2007

O “verdadeiro” Marx e o individualismo: Augusto Comte como teórico do coletivismo totalitário

O artigo abaixo foi redigido como réplica a um texto anteriormente publicado na revista eletrônica Verinotio; em virtude disso, os editores dessa revista julgaram adequado publicar o meu texto, a fim de permitir-se o diálogo e a troca de idéias. Agradeço imensamente a honestidade e a correção dos editores da revista. A minha réplica pode ser lida aqui: http://www.verinotio.org/conteudo/0.6239758242145.pdf.

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Neste artigo comento o texto de Maria de Annunciação Madureira, “Elementos da filosofia de Augusto Comte” (MADUREIRA, 2005). O objetivo da autora é apresentar alguns elementos da filosofia e da proposta moral de Comte, indicando em particular a ênfase comtiana na coletividade, em oposição ao individualismo. Com essa exposição a autora pretende reunir elementos para demonstrar, seguindo uma sugestão de José Chasin (1999), que a ênfase no coletivismo geralmente atribuída a Marx e propalada pelos “marxismos vulgares” – cujo resultado histórico foram os vários “socialismos reais”, de triste memória – na verdade é comtiana, não marxista (ou melhor, marxiana); eis as palavras da autora: “Ao expor os elementos centrais da filosofia de Comte, o objetivo deste artigo é o contribuir para a elaboração da crítica às diversas vertentes do marxismo vulgar, esforço necessário que se soma ao conjunto de pesquisas que estão sendo desenvolvidas para se resgatar o pensamento marxiano” (MADUREIRA, 2005).

A exposição da filosofia de Augusto Comte que a autora faz é, em si, bastante tradicional e, por assim dizer, “conservadora”, recorrendo a uma literatura já antiga e de caráter introdutório (embora em alguns casos ilustre: Evaristo de Morais Filho, João Cruz Costa) para apresentar Comte. Nesse sentido, aliás, há inúmeras referências à no mínimo tendenciosa apresentação que J. A. Gionnotti fez de Comte para a coleção “Os pensadores”, em que usou e abusou do sofisma ad hominem, ou seja, em que procurou desmerecer a filosofia por meio de anedotas (narradas parcial e incompletamente) da vida do pensador. Os compromissos intelectuais da autora revelam-se com clareza na medida em que ela parafraseou esses sofismas ad hominem – assumindo-os para si. Óbvio ululante: sofismas (de qualquer tipo) são “argumentos”?

Por outro lado, a rarefação de textos da lavra do próprio Comte que a autora consultou, aliás, é extremamente reveladora das ambições do artigo (ou melhor: de suas limitações): novamente, apenas textos introdutórios do volume dedicado a Comte na coleção “Os pensadores”, além do Discurso sobre o espírito positivo. Essas limitações bibliográficas são aceitáveis para um estudante de graduação que tem que fazer um trabalho de final de semestre sobre Comte, mas, parece-me – de acordo com os critérios acadêmicos presentemente aceitos no Brasil e no mundo –, é inaceitável para uma pesquisadora, professora efetiva de universidade pública (da Universidade Estadual de Maringá) e, de acordo com as informações disponíveis em seu currículo lattes, doutoranda que já tem mais de 20 anos de vida acadêmica.

Todavia, o pior do texto – e o texto é ruim! – não é a apresentação de Comte em si, mas o móvel da autora ao escrever essa pequena obra-prima de desinformação: seu objetivo é demonstrar que a culpa pelas atrocidades que a União Soviética e o chamado “socialismo real” cometeram não é de Marx, mas de Comte, afirmando que a ética coletivista que nega o individualismo é comtiano e não marxista! Essa hipótese ultrapassa a ousadia e chega às raias do despropositado, do fora da realidade. Ou melhor: ela é contra a realidade 1) teórica e histórica, 2) do positivismo e do próprio marxismo.

Embora a autora considere a preocupação com o conhecimento algo de menor importância (“Marx se voltou não para a problemática do conhecimento – como, sob inspiração positivista, sua obra costuma ser divulgada” (MADUREIRA, 2005)), uma pequena avaliação epistemológica é necessária. Assim, a idéia de que é de Comte, e não de Marx, o coletivismo liberticida é caracteristicamente uma hipótese ad hoc formulada para salvar o paradigma marxista. Como diria Imre Lakatos (LAKATOS & MUSGRAVE, 1970), isso por si só é uma prova da degenerescência do paradigma – de que a substância da hipótese é uma comprovação cabal.

Essa “hipótese” transfere a responsabilidade de Marx – ou melhor, do marxismo – para Comte e o Positivismo[1]; como afinal não é possível negar os crimes perpetrados em nome do marxismo (nem, após 1989, afirmar sua relevância política), afirma-se que a responsabilidade – a culpa – é de outro; assim, a consciência permanece tranqüila e é possível continuar sendo quem ou que se é, sem maiores preocupações[2].

Mas deixemos de lado as questões epistemológicas e metodológicas e passemos diretamente às afirmações e interpretações da autora.

A autora está corretíssima ao afirmar que Comte instituiu uma ética do coletivismo em contraposição à do individualismo – antes a sociedade, depois os indivíduos – e que insistiu nisso a vida inteira. Melhor dizendo: para Comte, não se tratava de uma ética da “coletividade”, mas do “coletivo”; sem querer abusar das palavras nem recorrer a bizantinismos, é crucial notar que “ética da coletividade” não é o mesmo que “negação da individualidade”, “negação da subjetividade”, “negação do esforço e da responsabilidade pessoais”. O que Augusto Comte afirmava era a necessidade sociológica de adotar-se um padrão moral que guiasse as condutas individuais e coletivas por critérios sociais. Diga-se de passagem que é exatamente essa a concepção subjacente ao conceito de “altruísmo”, que foi aliás criado por Augusto Comte.

Como seria possível a Augusto Comte negar o espaço às individualidades ou “negar a subjetividade” (como afirma a autora) se a moral proposta por Comte exige a adesão voluntária dos indivíduos? Como seria possível negar as individualidades e as subjetividades se o que o Positivismo prega é a “sinergia”, isto é, o concurso dos indivíduos para o benefício coletivo? Como seriam possíveis as pungentes efusões íntimas de afeto de Augusto Comte por Clotilde de Vaux (sua “esposa subjetiva”) – tornadas “normais” na Religião da Humanidade – se não houvesse espaço para a individualidade e, de maneira mais crucial, para a subjetividade no Positivismo? Aliás – e tocando em um problema central para o marxismo –: como seria possível a existência da propriedade privada – que Augusto Comte afirmava como elemento da Estática Social – sem a existência de “indivíduos”?

Dessa forma, não é possível nem razoável afirmar que a “ética da coletividade” comtiana redundou, ou poderia redundar, em coletivismos liberticidas e/ou qualquer espécie de negação da “subjetividade”. Justificar o coletivismo comunista e as tiranias dele decorrentes fazendo referência a Comte é um disparate: para comprová-lo, bastaria a autora ter feito uma pesquisa bibliográfica um pouco melhor e chegaria sem dificuldade a vários autores: Aron (1999), Alain (1993), Jean Lacroix (2003) ou o portal eletrônico Auguste Comte et le Positivisme (http://membres.lycos.fr/clotilde/) (não citarei nem o próprio Comte (1890; 1899; 1946; 2000) nem Pierre Laffitte (1938) pois parece claro que a autora não teve a menor intenção de pesquisar mais a fundo o tema). Sobre as questões específicas a que estamos referindo-nos aqui, ela poderia tentar ler: a dissertação de mestrado de Ângelo Torres (1997), sobre o léxico comtiano, em particular o relativo ao conceito de “liberdade”; o livro do Arthur Lacerda (2003), a respeito do projeto republicano de Comte; a dissertação de mestrado e a tese de doutorado do Sérgio Tiski (2005; 2006), que tratam extensamente dos conceitos de Moral e de religião no pensamento comtiano – fazendo referência direta, portanto, aos “indivíduos” e às “subjetividades” – ou o meu artigo sobre a política em Comte (LACERDA, 2004). Mas, na verdade, o que a autora realmente deveria ter lido deveria ser o livro do Alfredo Severo dos Santos Pereira intitulado As falsas bases do comunismo, recentemente reeditado (PEREIRA, 2003), que trata exatamente do tema em (des)apreço, ou seja, de como o Positivismo comtiano é radicalmente contrário a qualquer conceito de coletividade que negue a responsabilidade individual e que afirme a “coletivização” da sociedade (percebida, aliás, como necessariamente liberticida)[3]. Mas, conforme depreendemos da retórica da autora, procurar esses livros seria preocupar-se em demasia com “o conhecimento” e muito pouco com “o homem”, com “a ontologia do ser social”!

Mas, por outro lado, surge a questão da responsabilidade do próprio Marx. Afinal de contas, ele foi ou não o responsável pelos crimes do comunismo? Afinal de contas, ele era ou não a favor do coletivismo e da coletivização dos meios de produção? Afinal de contas, ele era ou não contrário ao individualismo?

Na verdade, responsabilizar o autor de uma idéia pelas conseqüências práticas que essa idéia pode eventualmente ter não deixa de ser uma forma de irresponsabilidade política, ao afirmar que os indivíduos, quando agem, não o fazem porque quiseram agir daquela forma, mas porque foram guiados por algo semelhante a uma força ideológica superior a eles, que os torna meros títeres do destino.

Afirmar que Marx foi o responsável pelos crimes do comunismo é, em certo sentido, um exagero: quem praticou os crimes foram indivíduos que quiseram praticá-los. A questão é saber se o pensamento marxista favorece(u) esse tipo de prática – e a resposta é inequívoca: sim, o marxismo favorece, seja por motivos teóricos (com suas afirmações e suas negações), seja por motivos políticos (com as ações e as omissões de Marx e seus êmulos e epígonos).

Os crimes cometidos pelo comunismo foram justificados pelo messianismo marxista. Sobre esse messianismo já se escreveram rios de tinta: ele combina a dialética hegeliana (que, por si só, é metafísica e, assim, filosoficamente absoluta, isto é, anti-relativa) com o providencialismo judaico-cristão. Não podemos esquecer: seguindo a trilha teórica e metodológica de Hegel – não de Comte! –, Marx afirmava – desde o início de sua carreira, quando ainda era um “jovem hegeliano” e “preocupado com a ontologia” (e não com o “conhecimento”) – que o individualismo burguês é causa da alienação do “homem”, do “homem inteiro”, do “homem total”: para restituir-se o “homem”, o “homem inteiro”, o “homem total”, há que se acabar, imperiosamente, com esse vilão que é o individualismo. Depois, com o desenrolar de sua carreira, Marx abandonou o tom metafísico e adotou preocupações mais sociológicas (isto é, políticas, econômicas e propriamente sociológicas) e em inúmeras ocasiões afirmou-se contrário à propriedade privada e à venalidade do individualismo, percebido como caracteristicamente burguês e capitalista e, portanto, como inerente e irremediavelmente mal e desprezível; como solução para a desumanização e as desigualdades capitalistas, Marx estabeleceu que a meta fundamental da sociedade comunista seria a coletivização dos meios de produção, de modo que o homem poderia viver integralmente e por inteiro em uma sociedade em que todos seriam iguais (mesmo que à força). Por fim, é senso comum (ou seria “marxismo vulgar”?): Marx sempre afirmou a centralidade dos conflitos na “ontologia social”, com a luta de classes em primeiro lugar. Coletivização, repúdio dialético (i. e., metafísico e absoluto) ao individualismo, defesa radical do igualitarismo, luta de classes como necessidade política e sociológica: lê-se tudo isso em Marx – do “jovem Marx” ao “Marx maduro” –, mas não se lê nada disso em Augusto Comte – em lugar algum da obra de Comte.

Não deixa de ser curioso, para não dizer irônico, o fato de a autora referir-se a problemas pessoais de Comte – dificuldades familiares, conjugais, financeiras – para desmerecer sua filosofia, ao mesmo tempo em que não adota o mesmo padrão para Marx – que, sugere-se, é um gênio visionário e libertário, além de isento de máculas. Mas o comportamento de Marx, em certos momentos, não foi “problemático”: foi francamente execrável. À parte o fato de que, em termos familiares, ele burguesmente tinha uma amante e que fazia sexo à força (ou seja, praticava estupro) tanto com a esposa quanto com a amante, a verdade é que ele sempre adotou uma prática bismarckiana na vida política, uma Realpolitik informada pelo seu idealismo messiânico – não é coincidência o fato de que Marx & Engels tinham uma profunda admiração pelo Chanceler de Ferro. Aliás, como o destino da humanidade já está dialeticamente definido; como a moral corrente é burguesa e, portanto, hipócrita e “ideológica”; como a vida em sociedade é guerra; como a justiça está do lado da verdade e a verdade (dialética) está do lado dos proletários, não há porque não adotar um comportamento politicamente “realista”, de acordo com o qual os fins justificam os meios. Nesse sentido, como lembram os insuspeitos anarquistas, a prática de espalhar calúnias e mentiras pessoais sobre os inimigos, na esperança de que, mesmo que desmentidas, sempre ficará na lembrança coletiva um “resíduo”, não é de Goebbels, mas de Marx (SKIRDA et alii, 2001). Além disso, expurgos, golpes de força, golpes políticos: Bakunin (2001) já denunciava essas práticas de Marx e de seus seguidores no movimento operário do século XIX: como se vê, as práticas autoritárias ou totalitárias não eram estranhas ao marxismo mesmo em suas origens. É necessário possuir uma imaginação fértil e uma ousadia sem limites para atribuí-las a Comte e ser muito cândido (ou, no presente caso, cândida) para delas “inocentar” Marx. Detalhe: nenhuma dessas minhas afirmações é gratuita; basta ler um pouco: Aron (1980), Furet (1995), Courtois (1999); talvez mesmo Louis Dumont (1992; 1994; 1994; 2000), para entender o tal do “individualismo”.

Para concluir, duas observações.

A autora afirma querer “resgatar o pensamento” de Marx. Todavia, esse empreendimento intelectual e político tem sido realizado há décadas; na verdade, desde que o próprio Marx era vivo, há mais de um século, fala-se em resgatar o seu pensamento e, de fato, devemos parte da riqueza do marxismo exatamente aos insistentes e contínuos esforços dos mais diversos teóricos para o “resgate” do marxismo. Todavia, por mais variadas que sejam as diferenças entre esses teóricos que “resgatam” o pensamento marxista, algumas coisas permanecem constantes: a importância da luta de classes, o destaque ao proletariado, a dialética e... o coletivismo[4]. A insistência no coletivismo, mesmo após a falência do sistema comunista (ou soviético, se se preferir), é uma das características dos diversos marxismos e, nesse sentido, parece que também deve ser do “verdadeiro” marxismo. Por outro lado, bem ao contrário, a crítica do coletivismo e a defesa do individualismo pertence ao campo dos adversários, teóricos e práticos, do marxismo: são os liberais: Isaiah Berlin, Friedrich A. von Hayek, Ludwig von Mises, Frank Knight, Milton e Rose Friedman... podemos até incluir aí Raymond Aron e o brasileiro José Guilherme Merquior. Creio que nem os mais ousados teóricos da Terceira Via teriam coragem de filiar Marx, mesmo um “verdadeiro Marx”, no liberalismo!

Novamente: a autora deseja “resgatar o pensamento marxiano”. Mas na literatura da Teoria Política que trata do “resgate do pensamento dos autores” (SKINNER, 1972; BEVIR, 1994; 1997; 2002; SILVA, 2006) – a que a autora, aliás, não faz nenhuma referência – não há nenhuma sugestão ou orientação teórica ou metodológica no sentido de que “resgatar um autor” consiste em atribuir a outros autores aqueles traços que julgamos desagradáveis ou ruins no autor que “resgatamos”. Bem ao contrário: resgatar um autor implica reconhecer que esse autor deve ser entendido por inteiro, com suas “qualidades” e com seus “defeitos” – isto é, com aquilo que nós, pesquisadores posteriores, julgamos serem “qualidades” e “defeitos”. Em outras palavras, atribuir a Comte (a partir de uma interpretação canhestra do pensamento comtiano) traços do pensamento de Marx para, com um único movimento, tentar 1) livrar da tradição marxista a responsabilidade pelos crimes do comunismo e 2) “resgatar” o pensamento de Marx, não resulta nem em uma coisa nem em outra: apenas degrada o pensamento dos dois autores.

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[1] Claro que a referência a Comte, isto é, ao “Positivismo”, ajuda nessa transferência, pois, afora o preconceito generalizado de que goza essa palavra nos dias que correm (cf. Wacquant, 1996, p. 592-596), ninguém sabe direito a que corrente, ou escola, ou doutrina ela refere-se. Veja-se, por exemplo, a douta afirmação do brasilianista norte-americano Thomas Glick: “O positivismo não é uma filosofia estrito senso, mas é principalmente um conjunto de princípios gerais apropriados por indivíduos ou grupos para legitimar objetivos ideológicos intelectuais específicos ou políticos” (GLICK, 2003, p. 181). Em outras palavras, não existem escolas específicas, nas mais diversas áreas do conhecimento chamadas “Positivismo”, mas apenas diferentes formas de enganar o povo. Essa postura, que nega qualquer cidadania filosófica ou teórica a qualquer corrente chamada de “positivista”, é ela mesma ideológica, pois apenas produz confusão e diversionismo. Para apresentações de algumas modalidades de “Positivismo”, cf. Ayer (1959) e Giddens (1998, cap. 5).

[2] Convenhamos: “transferir para outros a responsabilidade pelos próprios atos, a fim de não lidar com a culpa” permite uma interpretação clínica – que, neste momento, seria oportuna.

[3] Precisamente esse foi um dos motivos que levou Augusto Comte a condenar os “comunismos” de sua época (que incluíam os autores do “socialismo utópico” mas em que, bem vistas as coisas, poderíamos sem dificuldade incluir o “socialismo científico”) (cf. COMTE, 1946; LACROIX, 2003, p. 28-29n.).

[4] Uma exceção a esse comentário seriam os marxistas adeptos da escolha racional (Jon Elster à frente). Todavia, é sabido que sua filiação ao marxismo é uma questão decididamente controversa e, de qualquer forma, é a exceção que confirma a regra.