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26 outubro 2019

Gazeta do Povo: "Conservadores brasileiros rumo ao desastre"

O artigo abaixo foi publicado em 24.10.2019 no jornal curitibano Gazeta do Povo. A versão eletrônica do texto está disponível aqui.

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Os conservadores brasileiros rumo ao desastre

Os conservadores brasileiros estão à deriva: eu fiz essa observação em 1º de abril de 2018 e, desde então, os problemas apenas se acentuaram. Na verdade, a deriva diminuiu, mas a direção seguida pelos conservadores nacionais não poderia ser pior e mais desastrosa. Senão, vejamos.

Antes de mais nada, o conservadorismo não é necessariamente contra o “progresso”, embora seja ambíguo a respeito. O que o conservador deseja é o respeito às tradições e as mudanças temperadas pela cautela; as mudanças devem ser graduais, para que seus efeitos positivos e negativos sejam avaliados e, conforme for, sejam feitas alterações institucionais. As tradições, nesse sentido, são vistas como o fruto da sabedoria acumulada ao longo dos séculos: modificá-las é possível, mas não necessariamente desejável.

Ora, essa concepção de conservadorismo é inglesa, refletindo sem dúvida o desejo de manter o status quo, particularmente a vitória dos barões feudais sobre a monarquia centralizada, na forma do parlamentarismo, em 1688. Essa vitória foi em si mesma uma alteração profunda (não por acaso foi chamada de “Revolução Gloriosa”) e pôs termo a um século de crises políticas e sociais, em um país cuja história foi marcada por golpes, guerras civis, guerras externas, colonialismo etc., conforme Shakespeare exemplifica à farta para o período entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna.

O que importa notar do que se vê acima é que o conservadorismo britânico não é estranho às mudanças sociopolíticas, embora seja-lhe arisco. A Inglaterra modificou-se – e bastante – desde 1688, com a inclusão política de inúmeros grupos que não participavam da vida política na época da ascensão de Guilherme III: os trabalhadores, as mulheres, os católicos (!); um gigantesco império ultramarino foi criado, mantido e desfeito nesses mais de 300 anos. Aliás, chega a ser notável o fato de que mesmo o conservadorismo britânico não se opôs, nem desmontou, a estrutura do Welfare State criada após 1945, a despeito da virulenta retórica ultraliberal de M. Tatcher. Ao mesmo tempo, assim como pautas “esquerdistas” foram incorporadas à agenda política britânica, um traço aristocrático difundiu-se pela sociedade: o respeito às diferenças filosóficas, religiosas e intelectuais, bem como o respeito às divergências políticas, consubstanciado na fórmula “agree to disagree”. Juntamente com a desconfiança em relação às mudanças (em particular as planejadas), os conservadores mantêm uma desconfiança a respeito das posturas “ideológicas”.

O conservadorismo brasileiro, claro, não tem obrigação nenhuma de ser como o britânico; mas, no presente caso, o que poderia ser a manifestação da autonomia nacional prenuncia uma situação terrível, um verdadeiro desastre. Comparando o atual conservadorismo brasileiro – que, aliás, ocupa o poder em nível nacional – com o conservadorismo britânico, o que se evidencia é que o único traço comum é a valorização das “tradições”; fora isso, os conservadores brasileiros são intensamente “ideológicos”, fazem questão de realizar uma “revolução” sociopolítica (à direita), não se preocupam em preservar legados, não percebem a história brasileira como o esforço coletivo das gerações precedentes para o benefício coletivo – e, acima de tudo, são intolerantes e consideram que discordar deles é sinal de má-fé ou de problemas mentais.

Em meados de outubro ocorreu em São Paulo a versão brasileira da CPAC (Conservative Political Action Conference), de origem estadunidense. Ao contrário dos conservadores britânicos, os estadunidenses inspiram os brasileiros nesses péssimos traços indicados acima. Talvez devido ao peso que a teologia tem nos Estados Unidos, talvez como reflexo do ranço racista existente lá, o fato é que os conservadores brasileiros reunidos na CPAC – aliás, por que os conservadores brasileiros mantiveram o título em inglês, se estamos no Brasil? – esforçaram-se para espelhar a virulência que os conservadores estadunidenses apresentam atualmente. Três ministros de Estado fizeram questão de participar do evento organizado ostensivamente pelo terceiro filho do atual Presidente da República; esses ministros foram bastante ambíguos em suas atuações, revelando qualquer coisa menos respeito ao bem público, ao republicanismo, quando se valeram de suas posições institucionais como ministros de Estado – agentes responsáveis pelo bem comum de todo o país – mas manifestaram-se como integrantes e defensores de uma parcela específica da população brasileira. Em outras palavras, esses ministros foram literalmente partidários; ou, considerando que eles valorizam a teologia cristã, eles foram especialmente sectários.

Elementos básicos da tradição ocidental foram negados com veemência, até mesmo com raiva: o racionalismo, o empirismo, o naturalismo próprios ao Iluminismo foram considerados desprezíveis pelo Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo; aliás, ele também considerou de somenos importância o fim da sociedade de castas realizado pela Revolução Francesa. A Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, deu continuidade à divulgação de boatos, desinformações e fake news, sugerindo que em ambientes não conservadores há o consumo em regra de maconha e a introdução sistemática de crucifixos nas vaginas (!). Mas em um tal festival de disparates semioficiais, o maior veio logo do Ministro da Educação, Abraham Weintraub: ele disse que a esquerda é uma “doença”, aliás similar à sida/aids: ora, as doenças têm que ser exterminadas e, de qualquer modo, elas correspondem à anormalidade dos organismos; no caso específico da sida/aids, é uma doença fatal. Na fala do Ministro da Educação, não há nada de tolerância, de respeito, de “agree to desagree”, mas violência, incitação à agressividade, a sugestão de que quem é não conservador, isto é, quem é de “esquerda”, é doente, ou melhor, é a própria doença.

Fala-se muito na necessidade de constituir-se um partido de “direita” no Brasil, em oposição à “esquerda”; nesse caso, a “direita” é tomada como sinônima de “conservadorismo”. A relação entre “direita” e conservadorismo é algo a ser discutido, mas a proposta em si pode ser bastante interessante e pode vir a satisfazer uma necessidade sociopolítica nacional. Entretanto, esse novo e atual conservadorismo, constituído como está, defendendo idéias como as indicadas há pouco, será desastroso para o país: são idéias retrógradas (não por acaso, identifica-se como “conservador” e participou do CPAC um deputado federal que é descendente de d. Pedro II e que já defendeu na Câmara dos Deputados nada menos que a escravidão no Brasil), são boatos e desinformações, são incitações à violência de cidadãos contra cidadãos. Esse conservadorismo altamente ideológico e raivoso não tem como dar certo; não é mais um conservadorismo à deriva: ele aponta com clareza para o abismo.


Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política e Sociólogo da UFPR.

23 fevereiro 2012

Carvalho Romano - católicos desmerecendo o Positivismo


Dois autores de origem católica que adotam os mesmos argumentos a respeito das relações entre igreja e Estado e – o que é mais curioso – a respeito das relações entre igreja e Estado propostas por Augusto Comte são Roberto Romano e Olavo de Carvalho, respectivamente nos livros Brasil: igreja contra Estado (ROMANO, 1979) e O jardim das aflições (CARVALHO, 1999)[1].

As origens de cada um dos autores são bastante diversas: enquanto Roberto Romano começou seminarista dominicano[2] próximo à chamada “igreja progressista”, isto é, ao amálgama de catolicismo e marxismo chamado de “teologia da libertação”, há muitos anos é professor de Ética na Universidade Estadual de Campinas e, curiosamente (ou, talvez, nem tanto), especialista no pensamento político, moral, filosófico e científico do Iluminismo francês (em particular o de Denis Diderot) – justamente um dos mais agressivamente anticlericais do movimento (talvez atrás apenas do barão d’Holbach). Ainda assim, esse livro, que corresponde à tese de doutorado de Romano, é por ele valorizado até hoje, como se pode constatar facilmente no seu currículo Lattes: na base Lattes cada pesquisador pode indicar até cinco obras que considera excepcionalmente relevantes ou representativas de sua carreira – e lá está sua tese de doutorado, redigida na França, entre 1976 e 1977, sob a orientação (que, face aos problemas que indicaremos, supomos bastante indulgente) de Claude Lefort. De qualquer maneira, seus textos são (alegadamente) eruditos e articulados.

Já Olavo de Carvalho é mais conspícuo. Politicamente, começou à esquerda, integrando os grupos comunistas que abundavam nos anos 1960 e 1970; filosoficamente, buscava na astrologia orientação prática, tendo escrito diversos manuais a respeito, chegando a usar a astrologia para “predizer” – mas após os fatos – o fim do comunismo, em 1989-1991. Entre os anos 1970 e 1980, pelos desvãos da vida, desiludiu-se com a esquerda e tornou-se um áspero crítico dela, passando, por oposição, a ser da “direita”; não lhe cabe propriamente esse título, pois, segundo os critérios definidos por Bobbio (1997) em seu Direita e esquerda, Carvalho não é a favor das “desigualdades”; ele seria mais um liberal. Não um liberal elegante e cuidadoso como Raymond Aron, mas um extremamente cão raivoso, a quem esqueceram de ministrar vacina. Suas manifestações públicas (em artigos, entrevistas ou nas “redes sociais”) evidenciam sempre grande violência verbal e pessoal, autoritarismo e mesmo vulgaridade escatológica, com o uso abundante de palavrões (em particular, “cu”)[3]. Por outro lado, se Olavo de Carvalho faz questão de alardear seu afastamento da esquerda e sua aproximação do liberalismo, seu afastamento da astrologia foi muito mais silencioso e mais ambíguo: aproximou-se do catolicismo, não falou muito mais de astrologia, embora refira-se de quando em quando à astrologia, à cabala, critique o catolicismo sem muita clareza ao mesmo tempo que o defende. Em todo caso, a impressão geral que se tem é que ele é um católico, embora não se saiba precisar de que tipo específico, do mesmo modo que, ao escrever, ele não seja um católico que fale em nome do clero e/ou da igreja; além disso, da mesma forma que no caso de Romano, (alegadamente) os textos de Carvalho são eruditos e escritos com maestria retórica.

Ora, nos dois livros indicados, ao tratarem das relações entre igreja e Estado e, em particular das propostas positivistas para essas relações, é surpreendente que os argumentos dos autores sejam em tudo semelhantes, à exceção de alguns detalhes: enquanto Romano apresenta algumas referências bibliográficas a título de citações de Augusto Comte e suas obras, mas não é preciso em suas indicações, Carvalho não cita nenhuma obra de Comte mas é espantosamente preciso em suas referências a ele (embora, nem por isso, seja mais correto no que afirma). As propaladas erudições e os tons “críticos” das obras – dirigidos, em um caso, aos católicos marxistas, no outro caso, aos católicos liberais (de “direita”) – são suficientes para convencer quem quer ser convencido dos argumentos expostos.

Em poucas palavras, argumentos os expostos são os seguintes. Para eles, a igreja é (sempre foi e sempre será) fonte de liberdades política, intelectual e espiritual, ao passo que o Estado, baseando-se na força física, é fonte de opressão; além disso, o Estado também teme permanentemente as forças intelectuais, por serem elas fonte de crítica às ações estatais e àquelas baseadas na força bruta[4]. De acordo com a narrativa de Romano e Carvalho, ao longo da história – bem entendido: ao longo da Idade Média e, de maneira mais específica, ao longo da alta Idade Média (séculos VI a X) –, enquanto o Estado subordinou-se à igreja, vigeu um regime de liberdades, mas à medida que o Estado combateu com sucesso essa influência eclesiástica, seja por meio da sujeição da igreja, seja por meio de elites intelectuais, políticas e sociais laicas, os meios de opressão aumentaram e, portanto, a tirania aumentou[5].

Todavia, para os autores em questão, o problema nas relações entre igreja e Estado é mais profundo. Por um lado, o Estado passou a pregar a capacidade de justificar-se a si próprio, independentemente de fundamentos “transcendentais” (a salvação das almas, o temor do inferno, o amor a deus) e/ou externos a si. Com isso, ele passaria a defender alguma coisa como uma “transcendência imanente”, ao mesmo tempo que negar as “transcendências transcendentais”: tudo o que ultrapassasse ao próprio Estado seria errado, ilegítimo, imoral.

Por outro lado, de acordo com Carvalho e Romano, a igreja é a intérprete e a representante da religião, ou melhor, da verdadeira religião, que necessariamente é a religião católica apostólica romana. O Estado é particular, restrito a territórios bem delimitados, ainda que nesses territórios circunscritos passe a afirmar-se como universal e ilimitado à medida que ele (Estado) neutraliza a igreja; a igreja (católica), por outro lado, é universal no tempo e no espaço, de modo que não conhece limites territoriais e é eterna, pois vincula-se com o próprio altíssimo e é dele que obtém e fornece sua legitimidade. As campanhas de laicização, portanto, em vez de proporem as condições de liberdade, visam ao autoritarismo e, no limite, ao totalitarismo. Trata-se, portanto, de uma suposta crítica ao totalitarismo, a partir da perspectiva eclesiástica; todavia, o papel político atribuído à igreja e, em particular, o papel desempenhado pela igreja em relação às liberdades de pensamento e expressão, ao controle social e à exigência de apoio estatal para tais práticas, é completamente silenciado, ainda que seja tomado como pressuposto. As possibilidades teóricas e os eventos históricos relativos a essas questões são soberbamente deixados de lado, como as exemplares atuações tirânicas dos frades dominicanos à frente da Inquisição em Portugal e Espanha ou o completo desregramento moral, político, intelectual e social do papado, do século XIII em diante[6]: a igreja é abstrata e etereamente tomada como exemplo e parâmetro de conduta, como se ela própria não tivesse uma longa história, cuja evolução foi marcada por ascensão, apogeu e declínio[7].

Esses são os argumentos gerais a respeito das relações entre igreja e Estado e, portanto, sobre a laicidade. No que se refere a Augusto Comte, eles dão um passo além, especialmente Romano, que dedica todo um capítulo “crítico” ao Positivismo. Claramente repetindo um conhecimento comum, ele “sabem” que Comte propôs uma “Religião da Humanidade” e que essa religião é laica; da mesma forma, Comte propôs uma “ditadura republicana” e, finalmente, Romano e Carvalho “sabem” que os militares brasileiros, em algum momento da história nacional, foram influenciados pelo Positivismo. A conclusão lógica dessa série de premissas soltas, descontextualizadas e baseadas no que há de pior no senso comum leigo e acadêmico é que Augusto Comte propôs uma religião de Estado, a ser implantada e mantida via ditadura militar, de que o Brasil ofereceu o melhor (e único) exemplo entre 1964 e 1985[8]. Não é coincidência que o único estudo comparativo que Romano use sobre a ditadura republicana no Brasil seja a pesquisa que Leopoldo Zea fez sobre o... México (de 1870 a 1910)!

Como Carvalho e Romano “provaram” anteriormente, a partir de suas premissas teológico-políticas, que a igreja é fonte de liberdade (devido aos seus vínculos com a divindade) e que o Estado, por oposição, é fonte de opressão, o Positivismo é apresentado como o caso-teste nacional de suas teses filosóficas. Em nenhum momento há um exame detido das idéias de Comte. Mas... que bobagem! O que estamos dizendo?! Em nenhum momento há sequer exposições, citações de Augusto Comte e/ou de seus discípulos, de modo a provar ou corroborar as afirmações anteriores: por mais espantoso e incrível que pareça, há simplesmente a justaposição das idéias de senso comum, apresentadas a título de premissas, seguidas das conclusões adequadas e dadas de antemão. As diferenças entre os dois autores são secundárias: Romano, como já indicamos, apresenta algumas referências bibliográficas a mais, embora em momento nenhum discuta seriamente os trechos indicados – em várias ocasiões, aliás, ele conclui exatamente o contrário do que as citações afirmam[9]! Já Carvalho não cita absolutamente nada, a despeito de suas afirmações peremptórias e de sua alegada erudição; em virtude disso, suas premissas são mais imaginativas, donde suas conclusões são mais despropositadas, ainda que seu estilo seja mais claro.

Não é possível dizer que a literatura sobre Augusto Comte seja propriamente pequena. É claro que, como diria Bourdieu, há os efeitos do campo acadêmico, que regem as modas intelectuais e que funcionam próximas dos ritmos políticos mais amplos; assim, as décadas de 1950 a 1980 caracterizaram-se pelas influências do marxismo, do comunismo, da contracultura, da Guerra Fria, do Círculo de Viena, das “guerras da ciência” e por aí vai. Assim, fazer análises “críticas” do Positivismo equivalia a falar mal dele (ao mesmo tempo em que análises “críticas” sobre o marxismo, por exemplo, eram sempre discursos laudatórios). Esse Zeitgeist valeu em particular no Brasil, durante o regime militar, quando, como comentamos, o senso comum com enorme facilidade associava Positivismo, ditadura republicana, militarismo e regime militar[10].

Todavia, não é aceitável que argumentos tão precários, sobre questões tão centrais para as vidas individuais e coletivas dos seres humanos, sejam apresentados e discutidos dessas formas tão rasteiras. No caso do livro de Romano, a conjuntura, embora não desculpe, pode até justificar: eram os anos 1970 e ele próprio era orientado por um filósofo preocupado com a centralidade da democracia para a esquerda, contra os totalitarismos. Isso, é claro, não desculpa: os problemas do seu livro são muito grandes e suas falhas não têm relação alguma com as preocupações de uma esquerda que acordava, enfim, para a importância das liberdades “formais”[11]. Já o livro de Carvalho foi escrito em meados dos anos 1990, quando o Brasil vivia um período de francas liberdades[12]; muito embora o seu alvo fosse a esquerda marxista, para atingi-la Carvalho deu uma volta enorme, a fim de “demonstrar” que a laicização é um processo daninho e que “fora da igreja não há salvação”[13].

Em termos acadêmicos, há várias obras brasileiras recentes de grande porte sobre o pensamento político de Augusto Comte – que, não por acaso, indicam o quanto os argumentos de Carvalho e Romano, mais que improcedentes, são sofísticos, como os livros de Lacerda Neto (2003) e Volkoff e Lacerda Neto (2004) e, ainda mais, os de Lacerda (2010; 2013; 2016; 2018). Além desses dois livros, há uma série de artigos e textos acadêmicos e de polêmica que tratam dessas e de outras questões; é possível conferi-los aqui: http://www.filosofiasocialePositivismo.blogspot.com/.

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EXCURSO SOBRE O LIVRO DE ROBERTO ROMANO

O raciocínio do livro de Romano é que a igreja não é um “aparelho ideológico do Estado”, como pregavam Althusser e Gramsci, mas, antes, uma instituição com autonomia organizacional e intelectual, com dinâmica própria e – palavras suas – “auto-reflexão”, capaz de compreender cada momento que vive e, com base nos elementos do passado, buscar situar-se no presente para projetar-se para o futuro. Desse modo, a perspectiva do autor centra-se na igreja, especialmente em contraposição a outras organizações e elites, ou melhor, em contraposição às elites laicizantes, secularizantes e anticlericais: em outras palavras, Romano com muita clareza e sem muita preocupação escorrega do centramento na igreja para a defesa da igreja.

Essa perspectiva é realçada pelo momento histórico em que o livro foi escrito (1976-1977), durante o regime militar brasileiro: de um lado, o Estado era opressivo; de outro, amplos setores da igreja católica apresentavam-se como “progressistas” e lutavam pela liberalização do regime. Desse modo, Romano pôde, conjunturalmente, argumentar que o Estado é autoritário e que a igreja é libertária, deixando de lado o fato de que a igreja apenas episodicamente foi libertária no Brasil[14].

Sua posição é clara: a igreja esteve sempre acuada pelo Estado e pelas elites laicas, que procuravam instrumentalizar uma estrutura eclesiástica – que, de outra maneira, seria “pura” e “liberal” – para dominar a população; daí, aliás, a preferência do Estado pelas elites católicas, deixando ao baixo clero o trabalho junto às massas.

Romano considera que houve na história do Brasil três momentos principais: (1) a igreja na Colônia e no Império, (2) depois na I República Velha contra o liberalismo e, por fim, (3) no Império e na I República especificamente contra o Positivismo[15]. No que se refere ao Império, o argumento é o exposto acima: as elites imperiais oprimiram a igreja, impedindo-a de manifestar-se, expandir-se, organizar-se e expressar-se, a todo momento procurando instrumentalizar a hierarquia a favor dos meios de dominação. É notável que ele deixe de lado o fato de que a liberdade de religião não existia até 1824 e que, entre esse ano e 1890, a igreja detinha o monopólio dos atos civis públicos (nascimentos, casamentos, óbitos, enterros); além disso, embora houvesse uma certa liberdade religiosa, apenas algumas outras religiões eram toleradas e vistas como excepcionais[16].

Ao tratar do liberalismo, Roberto Romano afirma que essa corrente foi um instrumento não propriamente do Estado, mas do capitalismo que se modernizava no país, com o avanço da cultura do café: ao ser necessário integrar novos braços para a lavoura cafeicultora, o liberalismo afirmou a laicidade a fim de permitir que imigrantes europeus fossem atraídos para o Brasil. Essa laicidade tinha vários resultados positivos: atraía mão de obra qualificada; atraía europeus e deixava de lado os “inferiores” negros e índios (além dos mulatos); reforçava o poder do Estado. Assim, em um raciocínio ao mesmo tempo católico e marxista – teologia da libertação, afinal de contas... –, a laicidade teria sido meramente uma ideologia, isto é, um instrumento hipócrita da exploração do capital, não uma forma de instaurar liberdades.

Convém lembrar que Romano insiste na idéia de que a Igreja não pode retirar-se para o foro íntimo dos fiéis; ela tem que ser fiel a si mesma, atuando no âmbito público e orientando as massas em termos espirituais da mesma forma que o Estado orienta em termos temporais. A impossibilidade de retraimento para o âmbito privado, para Romano, é um argumento contrário à laicidade e uma forma de indicar a falsidade, ou hipocrisia, do liberalismo do final do século XIX.

O argumento de Romano enfatiza que o liberalismo brasileiro, seguindo os passos do europeu (como o kantiano, seguido depois pelo hegeliano[17]), dessacralizava o poder, tornando o Estado um fim e um fundamento em si mesmo, ou seja, a imanência tornava-se sua própria transcendência, criando as condições para o abuso do poder que resultaria, depois e em outras condições, no totalitarismo (essa é uma evidente, e conveniente, influência de Claude Lefort). Mas convém notar que a crítica ao liberalismo como consagrando o Estado como fim em si mesmo está presente na reacionária encíclica Quanta Cura, de 1864, em que o Papa Pio IX reforçou o movimento ultramontano ao criticar a modernidade, o liberalismo, a laicidade, a liberdade de pensamento etc.[18]. Não é por acaso que Romano adota o fácil, quase demagógico, expediente de citar trechos de artigos do jornal O Estado de S. Paulo, em que se apresentam com clareza perspectivas ao mesmo tempo liberais e discriminadoras (racistas, eurocêntricas etc.): essas citações permitem a Romano validar a crítica ao liberalismo nacional e, daí, resguardar a igreja católica. Ao mesmo tempo, Romano (no que é seguido por O. Carvalho) deixa de lado o fato de que o papado apoiou ativamente o fascismo contra o liberalismo (e comunismo e os judeus), obtendo com isso a generosa mas aberrante transformação de um palácio medieval, desde há muito sede de uma religião, em um Estado nacional (o Vaticano). O posterior apoio de Pio XII a Hitler é igualmente deixado de lado, da mesma forma que os movimentos fortemente iliberais e antiliberais brasileiros, como a neocristandade de Sebastião Leme e Jackson de Figueiredo[19].

Não é por acaso, aliás, que Romano deixe de lado nesse momento o Positivismo em sua argumentação, mas que, em outro momento, dedique-lhe um capítulo inteiro, mesmo que individualmente maior que cada um dos dois capítulos anteriores: o Positivismo como doutrina e os positivistas como ativistas não cometiam nem cometeram os erros que o Estado brasileiro e os liberais (brasileiros e/ou alemães) cometeram. Em outras palavras, como indicamos em Lacerda (2016; 2018), os positivistas não procuraram instrumentalizar a igreja para reforçar o poder do Estado; não afirmaram que o Estado é fundamento e fim de si mesmo e que não carece de nenhuma transcendência; não relegaram a população humilde a segundo plano; não foram racistas ou discriminadores; não foram anticlericais. Não é à toa que ele tem que, retoricamente, falar em “astúcia” para (des)caracterizar os positivistas: afinal, somente lhes atribuindo uma implícita má-fé, um ultramaquiavelismo que teria oito décadas de antecedência (!) é possível tornar aceitável criticar o comportamento em todo sentido exemplar deles.

Roberto Romano mistura vários procedimentos para sua confusão. Antes de mais nada, algumas palavras a respeito de seu estilo. O texto é o de um filósofo que reflete, ou seja, que desenvolve argumentos; esse desenvolvimento, todavia, não segue uma ordem muito firme, nem em termos de exposição das idéias, nem em termos de demonstração dos raciocínios. Assim, as idéias são expostas de modo truncado, sobrepondo-se argumentos e linhas argumentativas, muitas das quais não têm relação direta com o tema imediatamente anterior; da mesma forma, as citações utilizadas para ilustrar as afirmações têm referências secundárias na melhor das hipóteses – isso, claro, quando o autor dá-se ao trabalho de apresentar citações[20].

No que se refere às idéias propriamente ditas, Romano não é contraditório – pois isso pressuporia um desejo de expor idéias e raciocínios e comprovar, via demonstração, alguma tese. Os vai-e-véns argumentativos não permitem considerar que se deseja provar alguma coisa, mas simplesmente expor algumas idéias gerais que devem, ao cabo da leitura, ficar associadas devido à justaposição de idéias. Quais seriam essas idéias? (1) O Positivismo é “autoritário” e prega uma “ditadura” religiosa e secular, mesmo quando defende a laicidade e mesmo que precise do apoio dos militares; (2) a exposição e defesa públicas de idéias pelos positivistas são estratégias de manipulação calculistas (“racionalidade calculadora”[21] – ou, quem sabe, “maquiavélicas”); (3) o regime militar vigente após 1964 teria tido fortes traços positivistas; (4) a igreja católica dividia-se em duas grandes partes: uma autoritária, ultramontana, própria ao clero, e outra popular, simpática ao povo, ao ativismo popular e contrária à exclusão político-econômica brasileira (e em particular a que ocorria desde 1964). Além disso, ele acusa (!!!) não somente os positivistas como também os liberais de pleitearem a laicização da política; para Romano, a laicidade do Estado é daninha para a igreja, ao impedi-la de manifestar-se publicamente de acordo com seus próprios critérios em termos universais e de propor uma transcendência para a realidade política. Implícita estão as idéias (1) de que a única religião, a única instituição que pode ter universalidade no tempo e no espaço e, portanto, que pode conferir transcendência é a igreja católica, e (2) de que a laicidade seria uma forma de censura contra a “religião”, em vez do próprio regime que permite e consagra as liberdades de consciência, expressão e associação.

É notável que o texto de Romano seja ao mesmo tempo erudito – ele cita Augusto Comte (não somente a Filosofia positiva e a Política positiva), como também Ivan Lins, Pereira Barreto, Miguel Lemos, Teixeira Mendes, João Cruz Costa – e tão desinformado. Na verdade, parece que ele desenvolve uma estratégia de simulação: multiplica algumas referências, dando a impressão de ser erudito, para melhor criticar, ou melhor, para mais facilmente dar livres asas à sua imaginação. Mesmo a sua erudição não é profunda: bastar-lhe-ia consultar dois ou três livros brasileiros (digamos, os de Ivan Lins e de João Cruz Costa) para deles extrair algumas passagens que lhe parecessem mais adequadas. Em outras palavras, absolutamente nada garante que Romano tenha de fato lido os originais e realizado uma exegese profunda. Ora, lendo os livros de Ivan Lins (História do Positivismo no Brasil) e de Cruz Costa, encontramos todas as citações feitas por Romano, embora Romano não tenha apresentado nada além das citações presentes em Cruz Costa e, acima de tudo, no livro de Ivan Lins. Em outras palavras, para tratar do Positivismo em sua tese de doutorado, Roberto Romano limitou-se a ler apenas (alguns capítulos de) dois livros.

Comecemos pelos juízos que Romano emite sobre a igreja. Ele é extremamente ambíguo sobre ela. Como indicamos, para ele há uma duplicidade eclesiástica: os grandes prelados e a arraia miúda; os “poderosos” e os “identificados com o povo”. Essa duplicidade é criticada por Romano, especialmente quando implicitamente ele critica a época em que escreve (década de 1970) a partir da teologia da libertação: o baixo clero está do lado da verdade, pois está do lado dos fracos, dos pobres, da emancipação popular; já o alto clero... a respeito do alto clero da década de 1970 Romano não fala nada, mas fala do alto clero das décadas de 1930 em diante, que conseguiu associar-se novamente ao Estado e dar um apoio fundamental ao autoritarismo que ressurgiu em 1964. Entretanto, de modo geral, Romano considera que “a igreja” (tomada tout court, sem distinção de nível social) tem propriedades institucionais, morais e políticas importantes, a começar por sua plasticidade histórica, que lhe permite modificar-se, adaptar-se e, assim, renovar-se com o passar do tempo. Em outras palavras: feitas as contas, como a igreja é a igreja, ela é boa e deve permanecer exercendo sua influência sobre a sociedade (já o que se lhe opõe é ruim).

Mas é Romano quem critica a igreja, isto é, ele arroga-se a exclusividade do direito de poder criticar a igreja: em contraposição, as observações dos positivistas a respeito da igreja são sempre vistas como suspeitas, como se sempre tivessem sido escritas com “motivos ocultos”. Indicativo dessa reiterada e profunda suspeição que Romano nutre pelo Positivismo é o título do capítulo que lhe dedica: “A astúcia do Positivismo”. Quando os positivistas criticam a igreja, sugere Romano, seria para negar sua importância histórica, política e social; quando os positivistas afirmam a laicidade do Estado é para impedir a manifestação política da igreja, acabar com a transcendência do Estado mas, ao mesmo tempo, por meio da “ditadura republicana”, implantar uma “transcendência imanente” por via das armas com apoio dos militares; quando os positivistas têm propostas sociais iguais às da igreja, é para a opressão social (isto é, para manter melhor o domínio da burguesia, do Estado e, de modo geral, da situação de passividade do povo)[22]. Novamente: as citações reproduzidas aqui e ali por Romano, quando são reproduzidas, mal têm relação com o argumento – isso quando não o contradizem frontalmente.

O que espanta na exposição de Romano são seus argumentos implícitos, a cujo respeito vale perguntar com clareza: (1) por que seria necessária alguma forma de transcendência para o Estado? (2) Por que logo, e tão-somente, a igreja católica poderia conferir essa transcendência ao Estado? (3) Por que a laicidade seria um disfarce para uma “transcendência imanente”? (4) Por que, afinal de contas, a “transcendência imanente” conduziria ao totalitarismo?

O autor toma como pressupostas essas idéias; a virulência e a má-fé que ele manifesta em relação ao Positivismo, dessa forma, assumem um outro caráter: para Romano não se trata de analisar as relações da igreja católica com uma força política, social, intelectual – em uma palavra, moral – alternativa, mas com um rival perigoso, que deve ser vilipendiado ao máximo[23].

Convém insistir no reiterado movimento histórico, por assim dizer, que Romano realizou, em que expôs idéias dos positivistas das décadas de 1870 e 1890, ao mesmo tempo que afirmou haver conseqüências delas na década de 1930 e, ainda mais, afirmou haver outras conseqüências nas décadas de 1960 e 1970. Costuma-se dizer, na História, que o historiador escreve sobre o passado pensando no presente; mas isso, evidentemente, é um certo exagero, pois há que se respeitar a autonomia dos tempos idos: qual seria a relevância contemporânea, digamos, do sistema político do Egito Antigo? Da mesma forma, há que se compreender que cada contexto tem suas particularidades e, ainda mais, há que se respeitar o princípio científico básico de que cada afirmação factual tem que ser comprovada: ora, Romano nem comprova as afirmações, nem respeita os contextos históricos. Dessa forma, ele afirma sem comprovar e comete o grave erro teórico-metodológico do anacronismo[24].

É realmente espantoso que esse conjunto – fragílimo sob qualquer perspectiva, exceto sob o da militância ideológica – tenha sido aprovada como uma “tese de doutorado”. Em suma, termina-se a leitura do livro com grande dificuldade para não pôr em questão a validade filosófica, científica, histórica e política dos argumentos, dos raciocínios e dos valores do autor.

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[1] Uma primeira versão destas anotações foi escrita e publicada em 23.2.2012; uma ampla reformulação ocorreu em 27.11.2018.
[2] Na “Introdução” ao seu livro Romano agradece à Ordem dos Pregadores (ou seja, aos dominicanos).
[3] Para o comum dos seres humanos – incluindo todos aqueles “cristãos conservadores” de quem Olavo de Carvalho apresenta-se como uma espécie de porta-voz autoproclamado –, essa vulgaridade é simplesmente chocante e desagradável. Todavia, o seu uso reiterado sugere que Olavo de Carvalho entende essa vulgaridade como uma forma de expressão “afirmativa”, “livre”, “sem censura” etc. Como Lilla (2018) indicou, aliás, a virada mais conservadora e fundamentalista do Partido Republicano nos Estados Unidos, entre os anos 1970 e 1980, foi justamente marcada pelo início do emprego de uma retórica violenta e “sem concessões”. Da mesma forma, como Levitsky e Ziblatt (2018) observam, a instalação de regimes autoritários (quando não fascistas) é precedida pela violência política, que começa exatamente com a violência retórica.
[4] Como se vê, esses dois autores adotam a concepção que opõe o poder Temporal ao Espiritual, de origem medieval (de S. João Crisóstomo). Nesse sentido, embora não por acaso não o reconheçam, eles acompanham A. Comte, da mesma forma que ignoram, ou fingem ignorar, que acompanham o fundador do Positivismo em algumas das conseqüências propostas para as relações entre os dois poderes. Sobre a filosofia política de Comte e sobre as relações entre os poderes, cf. Comte (1899; 1929) e Lacerda (2010; 2013; 2016; 2018).
[5] Pode-se dizer que essa concepção é especificamente católica: além de ser exposta por O. Carvalho e Romano, ela também está claramente presente Scampini (1978) e, como indica Huaco (2008), ela integra o arsenal teórico e retórico do Vaticano em sua luta contra a laicidade do Estado.
[6] Sobre o declínio papal do século XIII em diante, cf. Harrison (1894); sobre a Inquisição, cf. Herculano (2011).
[7] É importante notar que, assim, a despeito de afirmarem-se defensores das liberdades, a idéia de que a única e verdadeira religião é a católica apostólica romana é um argumento implícito ao longo dos dois livros e em nenhum momento discutido. Com isso, a liberdade que defendem é a sua própria. Dessa forma, as reiteradas críticas, ou referências, ao totalitarismo tornam-se confusas, incoerentes ou ambígüas.
[8] Como discutimos longamente em Lacerda (2016; 2018), esse raciocínio é propriamente um sofisma baseado em pressupostos falsos, dados históricos incorretos e uma imaginação desenfreada, além de, pura e simplesmente, grande má vontade para com o Positivismo. Ainda assim, cumpre notar que Sérgio Buarque de Hollanda tem a primazia em tais defeitos.
[9] Convém notar que a quase totalidade das citações de Romano são de segunda mão, extraídas do livro de Ivan Lins (2009) mas, em sua maioria, sem indicação de que ele cita a citação. É possível determinar a origem das citações de Romano por meio do simples cotejo com o livro de Lins: Romano cita estritamente apenas o que Lins cita e nada mais.
[10] Esse gênero de associação ainda ocorre, embora investigações historiográficas e políticas mais recentes indiquem o quanto elas são improcedentes. Cf. José Murilo de Carvalho (2005) e Lacerda (2018).
[11] As anotações feitas no “Excurso”, abaixo, demonstram com clareza esses problemas.
[12] Na verdade, Carvalho considera que o Brasil vive uma “tirania comunista” (e “globalista”), disfarçada sob a máscara das liberdades públicas; essa verdadeira conspiração teria tido lugar especialmente durante as décadas de 2000 e 2010, ou seja, durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Em virtude dessa tirania disfarçada, em 2005 ele autoexilou-se nos Estados Unidos, ainda que em 2018 ele tenha manifestado apoio ao candidato fascista Jair Bolsonaro, em nome do combate ao PT, ao “marxismo cultural”, ao comunismo e ao “globalismo” (!!!).
[13] Parece claro que nenhum dos dois autores, ao escrever, fala em nome da igreja, seja em nome do episcopado, seja em nome do laicato; mas, ainda assim, apresentam-se como representantes implícitos da igreja. Ora, essa era a missão de d. Sebastião Leme e de Jackson de Figueiredo, que desenvolveram a partir da década de 1910 o projeto de recatolicização das elites e do Estado por meio da “neocristandade” e que, afinal, “retomaram” o Estado após 1930 (embora nem Carvalho nem Romano assumam-no). Mas as críticas de Carvalho e de Romano à laicidade e ao liberalismo são semelhantes às de Sebastião Leme e de Figueiredo. Uma linha investigativa bastante interessante pode ser esta: até que ponto esses católicos “desgarrrados” dão continuidade à obra da militância católica antiliberal do início do século XX? Sobre esses intelectuais, cf. Rodrigues (2005).
[14] Esquecendo-se, por algum motivo, das justificativas para as escravidões indígena e negra, para a manutenção dos privilégios eclesiásticos, para a religião oficial de Estado, para o monopólio de nascimento, de casamento e de enterro; para o ensino oficial e obrigatório da religião católica etc. etc. Como vimos, nisso o esquerdista Romano é acompanhado de perto pelo direitista Carvalho.
[15] Romano trata de cada um desses temas respectivamente nos capítulos 4, 5 e 6 de seu livro (ROMANO, 1979).
[16] De modo específico: os protestantismos, que se limitavam a regiões muito definidas no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Rio de Janeiro, e, depois, o Positivismo. As religiões fetichistas de origem nativa e africana e o espiritismo eram duramente perseguidos e reprimidos (cf. MARIANO, 2002; LACERDA, 2016).
[17] Ao tratar dos liberalismos kantiano e hegeliano, Romano comete algumas das mais incríveis falácias possíveis. Em primeiro lugar, ele restringe o liberalismo às suas versões alemãs, deixando de lado as francesas e, em particular, as inglesas e as estadunidenses: por exemplo, cita apenas uma única vez John Locke – e apenas Locke, quando trata do mundo inglês. Isso é notável, na medida em que mesmo liberais conservadores, como Ricardo Vélez Rodríguez (2011), tratam do liberalismo francês e celebram-no. Por outro lado, ao caracterizar o ambiente sócio-econômico-cultural alemão em comparação com o brasileiro, ele afirma que na Alemanha do início do século XIX as idéias de Hegel não tiveram muita repercussão, pois não tinham muito contato com a realidade da época; isso, todavia, não era problemático, pois garantiu grande liberdade e originalidade ao pensador idealista, que, depois, teve inúmeros seguidores. Já no Brasil o pensamento liberal estabeleceu-se em um solo previamente ocupado, de modo que sua atividade foi servil e ideológica, mesmo que a favor da laicidade do Estado, da abolição da escravatura, da proclamação da República etc. Em outras palavras, deixando de lado a estranha retórica a respeito da “presença prévia de idéias no país” (algo que lembra bastante a equívoca argumentação das “idéias fora do lugar”, de Roberto Schwarcz), no Brasil Hegel teria sido ideológico e servil simplesmente porque foi contrário aos ideais defendidos por Romano.
[18] Como vimos antes, a mesma idéia – de que o Estado laico torna-se o fundamento de si mesmo e, daí, a base para o totalitarismo – é repetida por Olavo de Carvalho em seu O jardim das aflições e, por algum motivo, atribuída por ele ao Positivismo (cf. CARVALHO, 2000). A coincidência dessa perspectiva entre um esquerdista e um direitista sugere que, provavelmente, o motivo dessa imputação seja, pura e simplesmente, propagar desinformação em favor do catolicismo.
[19] Sobre o apoio do papado a Mussolini e a transformação do Vaticano de mera sede da igreja católica em Estado nacional, cf. Kertzer (2017); sobre as relações entre Pio XII e Hitler, cf. também Cornwell (2000); sobre a neocristandade, cf. Della Cava (1975) e Rodrigues (2005).
[20] É difícil não vir à mente a provinciana – mas, neste caso, bastante adequada – contraposição feita pelos ingleses desde o início do século XX entre a “filosofia analítica” e a “filosofia continental” – em que a primeira caracterizar-se-ia pela clareza analítica e pela busca da elucidação dos enunciados, justamente os traços opostos da “filosofia continental”. Sem dúvida que essa contraposição é falaciosa e virulenta, mas é impossível não considerar que o livro de Romano é um exemplo quase ideal-típico dessa “filosofia continental”.
[21] A expressão “racionalidade calculadora” tem um outro sentido, é claro: refere-se também à crítica, de caráter metafísico, feita pela Escola de Frankfurt à razão e à “racionalidade instrumental”; em contraposição a elas, os frankfurtianos defendem alguma coisa como “o espírito” ou o “mundo da vida”. Como, infelizmente, é mais fácil desdenhar da obra de Comte que a conhecer, as críticas de Romano e da Escola de Frankfurt parecem fazer sentido quando dirigidas para o Positivismo.
[22] Bastaria ler-se os originais da Igreja Positivista do Brasil para qualquer um convencer-se de que o que Romano argumenta é tolice, fruto de delírio ou de má-fé. Todavia, como esses originais são relativamente difíceis de serem encontrados atualmente – bem entendido: encontrados em suas versões originais, pois na internet é muito fácil encontrar versões digitalizadas –; bastaria ler-se o livro de Ivan Lins, ou mesmo o de João Cruz Costa, na medida em que ambos têm longas citações dos positivistas. Por fim, embora já o tenhamos indicado diversas vezes nestas anotações, convém reiterar: em Lacerda (2016; 2018) apresentamos longamente as concepções de Comte e dos positivistas brasileiros a respeito das relações do Estado com as igrejas, incluindo aí claras afirmações da importância histórica da igreja católica e do necessário respeito que se deve a qualquer igreja nos dias atuais. Entre dezenas mais, podemos citar ainda como outras fontes de consulta os livros de Laffitte (1897), Audiffrent (1925) e Carneiro (1940).
[23] Isso não é exagero: como vimos anteriormente, antes de ser repetidor de Filosofia, Roberto Romano era seminarista dominicano, ou seja, integrante de uma das mais ativas e agressivas ordens religiosas que atuaram no verdadeiro movimento repressivo que foi a Inquisição. A Igreja Positivista é, literalmente, uma rival da Igreja Católica, a ser devidamente combatida.
[24] Como não poderia deixar de ser, esse comportamento enviesado de Roberto Romano a propósito do Positivismo não se limitou à tese-de-doutorado-manifesto-político redigida sob orientação de Claude Lefort: em diversos outros textos, Romano insiste na idéia de que o Positivismo é “conservador”, com isso querendo dar a entender que a filosofia, a política e a religião criadas por Augusto Comte seriam opressivas, a favor da discriminação, da exploração etc. Isso está evidente, por exemplo, no artigo “O pensamento conservador” (ROMANO, 1994), em que Romano lembra a observação banal, feita pelo próprio Comte, de que o Positivismo teria uma dívida intelectual com o pensamento conservador francês (na figura de Louis-Grabriel de Bonald e, acima de tudo, de Joseph de Maistre), na conceituação da “ordem”. Ora, Roberto Romano enfatiza a dívida comtiana com De Maistre, mas silencia totalmente as reiteradas referências do fundador do Positivismo a respeito da sua dívida com Diderot e Condorcet, dois pensadores que na França definiram a idéia de “progresso”. Esse silenciamento feito por Romano a respeito da dívida comtiana para com os progressistas não é casual; não é um “esquecimento”, mas uma omissão proposital, que se evidencia quando se tem em mente que desde a década de 1980 Romano especializou-se no pensamento de... Diderot! Assim, ao mesmo tempo em que Romano silencia a respeito da sua própria origem conservadora (quase foi frade dominicano), ele critica o Positivismo porque o Positivismo é um rival da igreja católica e, bem vistas as coisas, Romano também critica o Positivismo e Comte porque deseja deter o monopólio dos comentários sobre Diderot.