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30 maio 2024

Instintos e genética não são fatalidades

Instintos e genética não são fatalidades

Os trechos abaixo são particularmente impressionantes. Escritos originalmente em 1838, no volume III do Sistema de filosofia positiva, eles integram o capítulo dedicado ao exame das investigações sobre o cérebro, especificamente sobre as funções e os órgãos do cérebro[1]. Naquele momento do desenvolvimento da carreira filosófica de Augusto Comte, esse exame constituía a última etapa lógica e teórica no exame das ciências antes de avançar para a fundação direta e imediata da Sociologia (que, por sua vez, realizar-se-ia nos três volumes seguintes da Filosofia positiva, da Lição 46 à Lição 60).

Nesses dois trechos, após passar em revista as concepções teológicas e metafísicas sobre a natureza humana, Augusto Comte examina as investigações mais positivas à sua época e que, em sua opinião, eram as de Joseph Gall e seu assistente e colaborador Johann Spurtzheim; esse exame, também vale notar, era elogioso, o que não equivale a dizer “desprovido de críticas” e/ou de retificações mais ou menos importantes.

Os teológicos e os metafísicos partiam da noção de “alma”, que seria uma graça concedida pela divindade para animar os corpos dos seres humanos e dotá-los de inteligência. Com isso, eles consideravam que a inteligência seria um atributo exclusivo do ser humano, da mesma forma que o ser humano teria uma sempre e necessária unidade subjetiva, um núcleo duro e profundo de si mesmo irredutível de um ser humano para outro. Daí se seguia, como se segue, que haveria uma divisão radical, profunda e intransponível entre o ser humano e os “animais”; que o ser humano seria um ser principalmente raciocinante; que cada ser humano é um mundo radicalmente à parte dos demais. Essas concepções, embora tenham sido criticadas pelas mais elementares pesquisas da “neurociência” e da filosofia desde o final do século XVIII, ainda hoje impregnam os debates e as reflexões científicos, filosóficos, morais, políticos – e até midiáticos (como se vê nos filmes e seriados estadunidenses).

Além dessas concepções evidentemente de origem teológica, Augusto Comte também comenta concepções mais claramente metafísicas, que chamaríamos hoje em dia de “mecanicistas”, ou “fatalistas”, ou – como são popularmente denominadas, mesmo no âmbito acadêmico – “deterministas”. Essas outras concepções postulam que os animais (e, às vezes, o ser humano) possuem “instintos” e que esses instintos conduzem sempre, necessariamente, a comportamentos específicos automáticos. Isso corresponde às noções de que somente o ser humano é “racional” (ou seja, que somente ele controlaria seu comportamento) e que, portanto, os animais agem sempre sem nenhum autocontrole.

A concepção mecanicista-fatalista do instinto, quando transposta para o ser humano, conduz igualmente à noção de que o ser humano, como seria um “animal”, seria incapaz de controlar-se, de aprender, de modificar seu comportamento conforme as circunstâncias, as conveniências, os valores. A esse respeito, o comentário específico de Augusto Comte, nesse caso, consiste em uma nota de rodapé em sua apreciação da obra de Joseph Gall e de Johann Spurtzheim, valorizando uma retificação, ou uma correção, feita por este último às concepções do primeiro: a existência de órgãos específicos não conduz a comportamentos específicos (além de que, de qualquer maneira, não há órgãos para o roubo, para o assassinato etc.).

Novamente: esses comentários foram feitos há quase 200 anos, em 1838, como preparatórios para a Sociologia. Talvez pareçam meras curiosidades filosóficas – afinal, sendo tão antigos, não teriam valor “científico” –; talvez pareçam curiosidades históricas – afinal, sendo tão antigos, seriam “peças de museu”. De fato, muito da mentalidade contemporânea aponta para essas maneiras de ver, tanto a partir da ciência quanto do frenesi tecnológico atual, ambos cultores de um degradante “presentismo”, de um culto ao presente, ao que é “atual” (e que, por ser “atual”, seria “moderno”, “melhor”).

Mas, deixando de lado esses preconceitos presentistas, academicistas, cientificistas e tecnologistas, o fato é que esses comentários são profundamente, são radicalmente atuais. Em apenas dois parágrafos, a partir das pesquisas científicas anteriores (não somente biológicos e/ou de “neurociência”, mas do conjunto da produção científica) e de sua reflexão autônoma, Augusto Comte faz o seguinte:

1)      Define (e reafirma) o que é instinto e inteligência

2)      Define (e reafirma) que os instintos e a inteligência são comuns aos seres humanos e aos animais

a.       Define (e reafirma) que, portanto, os animais também são inteligentes e que, assim, não faz nenhum sentido estabelecer uma divisão radical, profunda e intransponível entre seres humanos e animais

3)      Define (e reafirma) que a inteligência é um atributo relacional, dos animais em relação ao ambiente que os cerca

a.       Define (e reafirma) que a inteligência – e a razão – é a capacidade de mudar o comportamento, conforme as circunstâncias

4)      Define (e reafirma) que os instintos são apenas disposições inatas que buscam alguma satisfação

a.       Define (e reafirma), portanto, que os instintos não correspondem a fatalismos comportamentais

5)      Define (e reafirma) que a presença de determinados órgãos não implica necessariamente determinados comportamentos

a.       Define (e reafirma) que os comportamentos concretos dependem das disposições internas aos seres vivos (o que inclui, evidentemente, a inteligência), e das circunstâncias ambientais (ou seja, do “contexto”), incluindo-se aí também os variados processos de educação

Todos esses aspectos têm que afirmados e reafirmados constantemente; eles têm influências profundas sobre as concepções sobre os animais e sobre o ser humano (e este em termos coletivos e individuais).

Por exemplo: a Biologia, a Sociologia e a Moral (chamada contemporaneamente de “Psicologia”), a partir das concepções teológico-metafísicas criticadas em 1838 por Augusto Comte, hoje em dia mantêm acirradas polêmicas sobre as relações entre a “natureza” e a “cultura”, discutindo se a herança genética é ou não um fatalismo, ou seja a educação serve ou não para mudar as disposições genéticas, ou se a educação (no caso do ser humano) não tem que se preocupar em absoluto com as disposições genéticas.

Para facilitar a identificação e o entendimento das passagens citadas, incluí pequenos títulos descritivos antes de cada uma delas.

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Definições de “instintos”, “inteligência” e “razão”

“Conquanto, pelos motivos precedentemente indicados, as diversas escolas psicológicas ou ideológicas tenham estado de acordo em descurar essencialmente o estudo intelectual e moral dos animais, felizmente abandonado, desde a origem imediata da filosofia moderna, aos puros naturalistas, importa assinalar aqui a influência funesta que as concepções metafísicas exerceram todavia também, a este respeito, de uma maneira indireta, pela sua vaga e obscura distinção entre a inteligência e o instinto, estabelecendo, da natureza humana para a natureza animal, uma ideal separação, da qual os zoologistas não se libertaram ainda suficientemente, mesmo hoje. A palavra instinto não tem, em si mesma, outra acepção fundamental senão de designar todo impulso espontâneo para uma direção determinada, independentemente de alguma influência estranha. Nesse sentido primitivo, tal termo aplica-se evidentemente à atividade peculiar e direta de qualquer faculdade, tanto das faculdades intelectuais quanto das faculdades afetivas; ele não contrasta então de modo algum com o nome de inteligência, como se vê tantas vezes quando se fala daqueles que, sem nenhuma educação, manifestam um talento pronunciado para a musica, para a pintura, para as matemáticas etc. Sob esse ponto de vista, há certamente instinto, ou antes instintos, tanto ou mesmo mais no homem do que nos animais. Caracterizando, por outro lado, a inteligência mediante a aptidão de modificar a sua conduta conforme as circunstância de cada caso, o que constitui, com efeito, o principal atributo prático da razão propriamente dita, é ainda evidente que, a esse respeito, como pelo motivo precedente, não há lugar de estabelecer realmente, entre a humanidade e a animalidade, nenhuma outra diferença essencial senão a do grau mais ou menos pronunciado de que é suscetível o desenvolvimento de uma faculdade, necessariamente comum, pela sua natureza, a toda vida animal, e sem a qual não se pode mesmo conceber a existência desta”.

(Augusto Comte, Sistema de filosofia positiva, v. 3, lição 45, apud Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 5-6[2]; itálicos do próprio Augusto Comte.)

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Os instintos e a presença de órgãos não implicam fatalmente comportamentos

 “Aqueles dos meus leitores que não considerarem esta teoria senão na sua fonte mais pura, isto é, na grande obra de Gall, não devem esquecer um indispensável aperfeiçoamento geral introduzido por Spurtzheim, conquanto, penetrando-se o fundo do pensamento de Gall, se deva achar talvez que tal progresso concerne antes as simples denominações do que as próprias idéias. Seja como for, esse melhoramento consiste em reconhecer que as diversas faculdades fundamentais não conduzem a atos, e sobretudo a modos e graus de ação, necessariamente determinados, como Gall parecia estabelecer a princípio; mas que os atos efetivos dependem, em geral, da associação de certas faculdades, e do conjunto das circunstâncias correspondentes. É assim que não pode existir, propriamente falando, nenhum órgão do roubo, pois que tal ato não é senão uma aberração do sentimento da propriedade, quando o seu exagero não é suficientemente contido pela moral e pela reflexão; o mesmo dá-se com o pretenso órgão do assassinato, comparado com o instinto geral da destruição. Igual consideração aplica-se, com mais forte razão, às faculdades intelectuais, que, por si mesmas, só determinam tendências, e de modo algum resultados acabados”.

(Augusto Comte, Sistema de filosofia positiva, v. 3, lição 45, apud Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 9, nota de rodapé[3].)



[1] Deve-se ter claro, então, que o cérebro é um órgão composto, ou seja, na verdade ele é um verdadeiro aparelho, composto por uma pluralidade de órgãos, cada um responsável por diferentes funções. O capítulo em questão é o último capítulo do v. III da Filosofia positiva, ou seja, é a Lição 45.

[2] Nesta versão eletrônica – facsimilar da primeira edição do livro –, pode-se ler a passagem acima nas páginas 783 a 785: https://archive.org/details/bub_gb_i-cx5K6kWVMC/page/783/mode/2up?view=theater.

[3] Pode-se ler a passagem acima nas páginas 796 e 797 desta versão eletrônica: https://archive.org/details/bub_gb_i-cx5K6kWVMC/page/797/mode/2up?view=theater.

21 dezembro 2022

Anotações sobre as liberdades política e filosófica

No dia 20.12.2022 realizamos a nossa prédica positiva - a última do ano -, na qual terminamos a leitura comentada da teoria do culto privado, com a exposição dos últimos quatro sacramentos positivos (madureza, retiro, transformação e incorporação).
Em seguida, nas reflexões semanais, apresentamos alguns elementos da teoria positiva da liberdade. O primeiro aspecto exposto foram alguns conceitos de liberdade política conforme são estudados atualmente (negativa, positiva e republicana): Augusto Comte propõe e defende concepções próprias a cada uma dessas modalidades.

Na sequência, abordamos a chamada "liberdade moral", ou "liberdade filosófica": a concepção de Augusto Comte a esse respeito muitas vezes é criticada. Todavia, o exame detalhado da concepção própria a Augusto Comte e, ainda mais, das críticas que lhe são dirigidas deixa claro que tais críticas celebram a arbitrariedade e os caprichos: em outras palavras, tais críticas celebram não a liberdade humana, mas a imaturidade e o infantilismo do ser humano (seja individual, seja coletivamente).

Apresentamos abaixo as anotações que utilizamos para a exposição da teoria positiva da liberdade.

A prédica foi gravada ao vivo no canal Apostolado Positivista (disponível aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/2375938302773412) e no canal Positivismo (disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=DyELzJqcw3w). Os comentários sobre a liberdade estão disponíveis no vídeo do Apostolado Positivista a partir de 50' 15".


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Anotações sobre a liberdade

 

-        A liberdade é um dos temas mais clássicos de reflexão filosófica, política e social

o   Para o que nos interessa, podemos considerar aqui dois tipos gerais de liberdade, a “filosófica” e a “política”

§  Antes de mais nada: não trataremos aqui da liberdade econômica

o   Augusto Comte evidentemente trata de ambas

§  Mais do que tratar de ambas, Augusto Comte relaciona uma à outra de maneira íntima

§  Na presente exposição, trataremos antes da liberdade política e, com os seus elementos, trataremos da liberdade “filosófica”

-        Em termos de liberdade política, eis o que podemos comentar:

o   O conceito mais básico e elementar é o de Thomas Hobbes, que entende a liberdade como a capacidade de realizar coisas sem sofrer obstrução

o   O sentido básico que Augusto Comte dá à liberdade segue esse conceito de Hobbes

-        Entre os séculos XVII e início do século XIX, a partir da chamada “querela dos antigos e dos modernos”, estabeleceu-se uma distinção entre a “liberdade dos antigos” e a “liberdade dos modernos”; no século XX essa distinção recebeu uma nova elaboração, entre “liberdade negativa” e “liberdade positiva”

o   A liberdade negativa consiste em fazer o que se deseja, sem que nada ou ninguém ofereça obstáculos ou resistências

o   A liberdade positiva consiste na autonomia da decisão

o   Na década de 1990, após o fim do comunismo, revalorizou-se o republicanismo (e a cidadania) e, a partir disso, propôs-se também a “liberdade republicana”, que é a ausência de arbitrariedade nas relações políticas

§  O propositor da liberdade republicana, Phillip Pettit, inspira-se no constitucionalismo da antiga república romana, mas no geral ele tem uma concepção bem restrita e pobre de “república” (ele rejeita os aspectos que as repúblicas costumam e que devem ter: antimonarquia, afirmação das liberdades, caráter social das repúblicas)

·         Pettit afirma que essa modalidade de liberdade é uma variação da liberdade negativa; assim, ele acaba aproximando-se mais do liberalismo (liberdade negativa) e afastando-se da “democracia” (liberdade positiva)

·         Convém lembrar que o liberalismo é uma degradação do republicanismo, especialmente na Inglaterra do século XVII; em outras palavras, não é o republicanismo que seria uma alternativa atual e meio esquisita ao liberalismo

§  Embora tenha sérias limitações filosóficas, a proposta de Pettit – de que a liberdade consiste na ausência de arbitrariedade nas relações políticas – é uma concepção fundamental e em si mesma muito acertada

·         De modo central, a ausência de arbitrariedade significa que ser livre não é o mesmo que fazer qualquer coisa quando e do jeito que se desejar

-        Augusto Comte fala em liberdade considerando sempre a autonomia decisória individual e coletiva (liberdade positiva) e a ausência de obstáculos (liberdade negativa); também defende a ausência de arbitrariedade (liberdade “republicana”):

o   A autonomia nas decisões e o respeito tanto à autonomia quanto às decisões é o que confere dignidade nas relações sociais

o   As liberdades de consciência, expressão e associação são as liberdades fundamentais da vida política moderna

o   O pacifismo, o relativismo e a fraternidade evitam a arbitrariedade nas relações sociais e políticas; além disso, a república deve ter um caráter social mais que político

-        No que se refere à “liberdade filosófica”: é a respeito dela que as considerações de Augusto Comte sobre a liberdade são mais conhecidas:

o   Popularmente, quando há referências ao conceito positivista de liberdade, menciona-se apenas um pequeno trecho específico (um parágrafo, na verdade) do Catecismo positivista

§  Nesse trecho, muito famoso, Augusto Comte afirma que não temos liberdade de desobedecermos às leis naturais:

 

O Sacerdote – [...] Longe de ser por qualquer forma incompatível com a ordem real, a liberdade consiste por toda a parte em seguir sem obstáculos as leis peculiares ao caso correspondente. Quando um corpo cai, a sua liberdade manifesta-se caminhando, segundo sua natureza, para o centro da Terra, com uma velocidade proporcional ao tempo, a menos que a interposição de um fluido não modifique a sua espontaneidade. Do mesmo modo, na ordem vital, cada função, vegetativa ou animal, é declarada livre se ela se efetua de conformidade com as leis correspondentes, sem nenhum empecilho exterior ou interior. Nossa existência intelectual e moral comporta sempre uma apreciação equivalente que, diretamente incontestável, quanto à atividade, se torna, por conseguinte, necessária para seu motor afetivo e para seu guia racional” (Augusto Comte, Catecismo positivista, 4ª ed., Rio de Janeiro, 1934, “Oitava conferência”, p. 243-244)

 

o   Esse trecho tornou-se famoso porque os críticos do Positivismo atribuem-lhe vários aspectos negativos: cientificismo, determinismo, ausência de liberdade

o   Vale reforçar: esse trecho é famoso porque os “críticos” de Augusto Comte limitam-se apenas a esse trecho, que é um pequeno parágrafo de uma obra de divulgação de Comte: as reflexões e as obras propriamente políticas (Opúsculos de filosofia social, Sistema de política positiva, Apelo aos conservadores) são desprezadas

o   Mas a leitura do trecho completo, isto é, a leitura integral dos parágrafos anteriores e posteriores em que se insere a citação acima evidencia que as interpretações negativas são extremamente superficiais, quando não de má-fé:

 

A Mulher – Antes de encetarmos o melhor domínio teórico, eu devo, meu pai, submeter-vos um escrúpulo geral devido às objeções metafísicas que com freqüência tenho ouvido formular contra esta extensão decisiva do dogma positivo. Toda sujeição do mundo moral e social a leis invariáveis, comparáveis às da vitalidade e da materialidade, é agora apresentada, por certos argumentadores, como incompatível com a liberdade do homem. Posto que estas objeções me tenham sempre parecido puramente sofísticas, nunca eu soube destruí-las nos espíritos, ainda muito numerosos, que se deixam, assim, estorvar em sua marcha espontânea para o positivismo.

O Sacerdote – É fácil, minha filha, superar este embaraço preliminar, caracterizando diretamente a verdadeira liberdade.

Longe de ser por qualquer forma incompatível com a ordem real, a liberdade consiste por toda parte em seguir sem obstáculos as leis peculiares ao caso correspondente. Quando um corpo cai, a sua liberdade manifesta-se caminhando, segundo sua natureza, para o centro da terra, com uma velocidade proporcional ao tempo, a menos que a inter-posição de um fluido não modifique a sua espontaneidade. Do mesmo modo, na ordem vital, cada função, vegetativa ou animal, é declarada livre, se ela efetua de conformidade com as leis correspondentes, sem nenhum empecilho exterior ou interior. Nossa existência intelectual e moral comporta sempre uma apreciação equivalente, que, diretamente incontestável, quanto à atividade, se torna, por conseguinte, necessária para seu motor afetivo e para seu guia racional.

Se a liberdade humana consistisse em não seguir lei alguma, ela seria ainda mais imoral do que absurda, por tornar-se impossível um regime qualquer, individual ou coletivo. Nossa inteligência manifesta sua maior liberdade quando se torna, segundo seu destino normal, um espelho fiel da ordem exterior, apesar dos impulsos físicos ou morais que possam tender a perturbá-la. Nenhum espírito pode recusar seu assentimento às demonstrações que compreendeu. Mas, além disto, cada qual é incapaz de rejeitar as opiniões assaz acreditadas em torno de si, mesmo quando ignora os verdadeiros fundamentos em que assentam, a menos que não esteja preocupado de uma crença contrária. Podemos desafiar, por exemplo, os mais orgulhosos metafísicos a que neguem o movimento da terra, ou doutrinas ainda mais modernas, posto que eles ignorem absolutamente as provas cientificas de tais doutrinas. O mesmo acontece na ordem moral, que seria contraditória se cada alma pudesse, a seu bel-prazer, odiar quando cumpre amar, ou reciprocamente. A vontade comporta uma liberdade semelhante à da inteligência, quando nossos bons pendores adquirem bastante ascendência para tornar o impulso afetivo harmônico como verdadeiro destino dele, superando os motores contrários.

Assim, a verdadeira liberdade é por toda parte inerente e subordinada à ordem, quer humana, quer exterior. Porém, à medida que os fenômenos se complicam, eles se tornam mais suscetíveis de perturbação, e o estado normal supõe neste caso maiores esforços, os quais, aliás, são aí possíveis graças a uma aptidão maior para as modificações sistemáticas. Nossa melhor liberdade consiste, pois, em fazer prevalecer, tanto quanto possível, os bons pendores sobre os maus; e é também nisso que o nosso império tem a sua maior amplitude, contanto que a nossa intervenção se adapte sempre às leis fundamentais da ordem universal.

A doutrina metafísica sobre a pretendida liberdade moral deve ser historicamente considerada como um resultado passageiro da anarquia moderna; porquanto ela tem por objeto direto consagrar o individualismo absoluto, para o qual tendeu cada vez mais a revolta ocidental que teve de suceder à Idade Média. Mas este protesto sofistico contra toda verdadeira disciplina, privada ou pública, não pode de modo nenhum entravar o positivismo, se bem que o catolicismo não pudesse superá-lo. Jamais se conseguirá apresentar como hostil à liberdade e à dignidade do homem o dogma que melhor consolida e desenvolve a atividade, a inteligência e o sentimento (Augusto Comte, Catecismo positivista, 4ª ed., Rio de Janeiro, 1934, “Oitava conferência”, p. 243-247; os grifos são meus).

 

-        O trecho acima tem que ser entendido como uma crítica científico-filosófica às pretensões de que a liberdade consiste em desejar qualquer coisa e, a partir disso, em querer fazer qualquer coisa

o   Como vimos acima, a respeito da liberdade republicana, desejar qualquer coisa e poder fazer qualquer coisa é o mesmo que ser arbitrário e não ter nenhuma regra; mais do que isso, é o desejo de uma realidade que ceda aos nossos caprichos

-        A concepção de leis naturais estabelece que o mundo não é caótico, ou seja, que ele obedece a regularidades:

o   As regularidades evidenciadas e afirmadas pelas leis naturais rejeitam também, em particular, a concepção de que o mundo é governado por entidades que fazem o que querem, quando querem, do jeito que querem

o   Lembremos que a teologia é a transposição para a ordem cósmica de um desejo imaturo interno aos seres humanos

-        Entendendo a questão de uma outra perspectiva e chegando ao ponto que nos interessa aqui: a concepção de leis naturais requer o amadurecimento intelectual e moral do ser humano, no conjunto dos vários sentidos próprios ao amadurecimento:

o   É necessário reconhecer que a realidade impõe limites à ação humana

o   É necessário reconhecer que o mundo não obedece às meras vontades humanas

o   É necessário reconhecer que a satisfação das vontades humanas requer tanto a limitação dessas vontades quando a adequação das vontades às possibilidades efetivas de ação

§  Podemos até não gostar do fato de que a realidade não é dócil às vontades humanas: ainda assim, temos que nos resignar a isso e aprender a lidar com a realidade

·         Essa resignação é o que todos os filósofos sempre reconheceram como sendo a “sabedoria”

·         É necessário insistir: essa resignação consiste, precisamente, em um dos mais importantes aspectos do que se chama, por toda parte, de “amadurecimento”

§  Por outro lado, insistir em que o mundo e a realidade deveriam curvar-se à vontade humana é puramente pirraça, é mentalidade e comportamento infantil e caprichoso

-        Há uma concepção difundida segundo a qual a mera vontade humana, entendida como puro desejo de algo, não tem limites e que, portanto, nesse sentido, a vontade humana seria “livre”

o   A concepção da vontade-desejo da liberdade também consiste em um entendimento infantil da liberdade, especialmente da liberdade negativa (que é a ausência de impedimentos à ação): a liberdade aí é tornada sinônima de arbitrariedade

o   A redução da vontade humana ao “desejo” é o último refúgio da concepção infantil de liberdade, ao tentar recuar ao máximo da subjetividade o âmbito do arbitrário

-        Como a teologia e a metafísica buscam o absoluto e o arbitrário; como elas consistem em transpor para uma suposta objetividade algo que é próprio ao que é subjetivo, o resultado é que a concepção de liberdade que rejeita as leis naturais é uma concepção teológico-metafísica

o   Essa concepção tem o terrível agravante de que é imatura ou, da pior maneira possível, é infantil, é mimada

-        Reconhecermos o império das leis naturais e submetermo-nos a ele é a única garantia de ação e de aperfeiçoamento, ou seja, é a única possibilidade de liberdade

o   Qualquer possibilidade de ação requer o conhecimento das leis naturais (seja o conhecimento empírico e concreto, seja o conhecimento sistemático e abstrato)

o   Como dizia Francis Bacon, “só se pode controlar a natureza submetendo-se a ela”

-        É por meio do conhecimento e do reconhecimento das leis naturais que o ser humano pode agir e satisfazer suas necessidades e, quando é o caso, também seus desejos

o   O (re)conhecimento das leis naturais é ao mesmo tempo uma etapa e um resultado geral do amadurecimento do ser humano

o   Vale notar que até mesmo os desejos satisfeitos pelo recurso às leis naturais não são desejos arbitrários, pois são limitados e regulados pelas condições idiossincráticas dos indivíduos e, acima de tudo, pelos “contextos” sociais, em termos políticos e morais (e mesmo tecnológicos)

-        Em suma: Augusto Comte reconhece a particularidade das reflexões políticas sobre liberdade, mas evidencia que mesmo essas reflexões não podem isolar-se de reflexões mais amplas sobre a realidade cósmica e sobre a existência humana no mundo

o   Não há nisso nenhum cientificismo, nenhum determinismo, nenhuma negação da liberdade (ou a afirmação de autoritarismo): o que há é a exigência de amadurecimento moral e intelectual e a rejeição da arbitrariedade (moral, intelectual e política)    

26 outubro 2022

Teoria positiva da esperança

Na noite de 18 de Descartes de 168 (25 de outubro de 2022) fizemos nossa prédica positiva; como de hábito, após a leitura comentada do Catecismo Positivista (dando continuidade à terceira conferência, sobre a teoria geral do culto positivo), apresentamos reflexões gerais sobre um tema "livre"; o tema escolhido foi a esperança.

Para nossas reflexões sobre a teoria positiva da esperança, elaboramos algumas anotações, que reproduzimos abaixo.

Para quem quiser assistir e ouvir a nossa exposição (bem como a prédica), ela está disponível no canal The Positivism (https://www.youtube.com/watch?v=GRC37sXFaK4&t=1s) e no canal Apostolado Positivista (https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/1180062485914834), a partir dos 56 minutos do vídeo.

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-        De um modo simples e geral, a esperança é o desejo de que algo bom aconteça (bem entendido: no futuro)

o   Assim, a esperança é uma combinação de sentimentos e intenção prática

o   A base positiva da esperança, evidentemente, é o dogma positivo e, mais especificamente, a ciência, isto é, o conhecimento das leis naturais:

§  É a máxima “saber para prever a fim de prover”, especialmente nas partes conexas de “prever” e “prover”

-        Na teologia, a esperança baseia-se na crença de que a divindade agirá de determinada maneira:

o   Como não se conhece efetivamente a divindade e apenas se atribui a ela o que se deseja dela, essa esperança não tem uma base racional

o   Deixando de lado os meros desejos, na medida em que essa esperança tem de fato alguma realidade, ela tem um fundamento puramente empírico

o   É um desejo-crença que se manifesta por meio de pedidos; esses pedidos consistem no essencial das orações teológicas

o   É uma crença “justificada” em última análise no raciocínio – completamente arbitrário – de que a divindade “age certo por linhas tortas”

o   Em última análise, a esperança teológica é o fundamento da crença – completamente irracional e arbitrária – de que o “reino dos céus” ocorrerá

-        Conforme a natureza real e relativa do dogma positivo, a esperança positiva tem outros fundamentos:

o   O conhecimento das leis naturais

o   A natureza altruísta do ser humano

o   Os dois aspectos acima, em que o segundo integra e altera o primeiro, podem e devem ser combinados, no que se refere à esperança, no princípio fundamental do dogma positivo: “os fenômenos mais nobres modificam os mais grosseiros subordinando-se a eles”

-        Quando a esperança positiva frustra-se:

o   A frustração não é entendida arbitrariamente como a divindade sendo surda a nós, como a divindade punindo-nos (pelo que quer que seja) e/ou como a divindade “agindo certo por linhas tortas”

o   A frustração é entendida como uma oportunidade de aprendizado e de correção do enunciado das leis naturais (e, portanto, do que e como esperar desse conhecimento) e também da nossa maturidade moral (em termos individuais e coletivos)

-        Dessa forma, o conceito positivo de esperança permite dignificar tanto a própria esperança (que se torna real, racional e relativa) quanto a oração (que deixa de ser um pedido e/ou uma humilhação e torna-se um esforço de autoaperfeiçoamento altruísta)


16 setembro 2015

Artigo: "Vontades e leis naturais – liberdade e determinismo no positivismo comtiano"

Um artigo de minha autoria acabou de ser publicado na revista Mediações, da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Seu título é este: "Vontades e leis naturais – liberdade e determinismo no positivismo comtiano" e está disponível neste endereço: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/19818.

Modestamente, esse artigo é importantíssimo para teoria política e epistemologia (das Ciências Humanas e das Ciências Naturais).

Eis o resumo e as palavras-chave do artigo.

Resumo: Nas Ciências Sociais, o "positivismo" de modo geral implica naturalismo, i. e., objetivismo e determinismo. No Positivismo comtiano, porém, as leis naturais são compatíveis com subjetividade e historicidade, devido a uma série de motivos: (1) pressupõe-se a intervenção humana (afinal, conhecem-se as leis para melhor agir); (2) as Ciências Sociais, ou melhor, na terminologia comtiana, a Sociologia é uma das mais complexas ciências e, portanto, é uma das mais modificáveis em suas aplicações e manifestações concretas; (3) o acúmulo teórico, metodológico, histórico e moral da Sociologia permite-lhe e até a obriga a modificar os métodos e as teorias das Ciências Naturais. Assim, há amplos vínculos entre Epistemologia, Sociologia e política prática, em particular via idéia de "liberdade de ação", o que ordinariamente resulta na dicotomia determinismo-vontade. Interessa aí o conceito comtiano de "vontade positiva": vista inicialmente como teológico-metafísica, ela foi introduzida na fase mais madura de Comte, em que a preocupação não era estabelecer as condições de cientificidade e as características da Sociologia, mas já elaborar os termos concretos da intervenção humana na sociedade e no mundo. Dessa forma, o presente artigo apresentará as etapas do conceito comtiano de "vontade", conforme exposto acima, relacionando-o também com o conceito de "liberdade filosófica" (ou seja, a própria possibilidade de intervenção humana no mundo).


Palavras-chave: Augusto Comte; Positivismo; leis sociológicas; determinismo; liberdade; vontade.

08 janeiro 2013

Astronomia e fenômenos que escapam à previsão estimulando a sabedoria e o amor


O longo trecho abaixo continua apresentando elementos da extensa e interessante avaliação que A. Comte fez das qualidades lógicas, sociais e morais da Astronomia.
Mas estes parágrafos apresentam uma observação fundamental: a idéia de que muitos fenômenos e acontecimentos podem ocorrer (e de fato ocorrem) além das previsões das leis científicas – o exemplo dado é o do choque de um cometa no planeta Terra. Com essa observação, fica novamente patente que, para Comte, embora só possamos regular a vida humana por meio das previsões científicas (feitas, por sua vez, por meio das leis naturais), não é possível prever todos os acontecimentos reais – e é justamente por tais motivos que a sabedoria humana (moral, intelectual, prática) deve sempre ser valorizada.
Comte nota que, em seu conjunto, a Astronomia favorece o relativismo e elimina o absoluto, embora inicialmente dê a impressão contrária. Mais do que isso: a Astronomia apresenta uma série de importantes conseqüências morais, não apenas em virtude de seus métodos e suas teorias, mas também ao relevar ao ser humano a situação cósmica da Terra. Eis algumas dessas conseqüências: a regulação do sentimento de esperança; a evidência da resistência do meio à ação humana; a necessidade de o ser humano buscar em si mesmo os meios para superar as adversidades; o descartar o excesso de previsões e considerar as possibilidades de eventos imprevisíveis (como o possível choque de cometa na Terra); o evitar o terror imobilizante frente às adversidades. Como todos os seres humanos estão igualmente submetidos a esses fenômenos e possibilidades, o cuidado com os demais e o “viver para outrem” evidencia-se como lei moral suprema.
Por fim: as observações abaixo reiteram a concepção de ciência de Comte, bem como a posição que, para ele, a inteligência ocupa na ordem humana. Nada de “cientificismo”, de “intelectualismo”, de “torre de marfim” ou distância da realidade prática; nada de concepção asséptica da ciência; bem ao contrário, preocupação com o bem comum, com o desenvolvimento das idéias para regular a conduta prática e os sentimentos.

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“Ainsi, toute l’astronomie concourt naturellement à constituer l’esprit relatif dans le domaine qui, par as simplicité et son indépendance, paraissait le moins l’admettre. Envers les phénomènes qui concernent l’homme, on n’a jamais pu méconnaître entièrement les variations intérieures qui n’y permettent pas l’absolu. Mais cet attribut semblait devoir appartenir toujours aux événements où nous ne sommes que spectateurs. Or, l’astronomie l’élimine spontanément dans l’étude même de ceux qui sont inaccessibles à toute modification humaine. Cette constitution décisive de la rélativité, au début de l’initiation systématique, doit puissamment influer sur son extension immédiate aux phénomènes plus compliqués, avant que leur propre appréciation l’y ait directement établie.
Pour mieux sentir une telle tendance astronomique, il faut aussi l’envisager sous l’aspect moral. Car la véritable science céleste étend finalement la relativité de nos idées à nos espérances, et par suite à tous nos sentiments. En manifestant les diverses conditions planétaires, elle dissipe la sécurité absolue qui nous représentait comme exemptes de perturbations quelconques. La stabilité essentielle, tant célébrée envers la terre, par les géomètres modernes, ne se rapporte qu’aux changements graduels dus aux gravitations secondaires, qui, en effet, ne peuvent y produire que des oscillations presque indifférentes. Mais, outre la résistance du milieu, qu’on y néglige toujours, il faut surtout considérer les changements brusques, qui ne comportent pas de prévision réelle, et contre lesquels nous ne possédons aucune garantie scientifique. Rien ne peut, par exemple, démontrer, quoi qu’on ait dit, que notre planète est à l’abri de tout choc cométaire. En achevant ainsi d’apprécier notre vraie condition astronomique, on constitue mieux l’énergie et la dignité du caractère humain, qui doit trouver en lui-même sa principale ressource contre l’ensemble de nos misères. Sans nous préoccuper de vaines terreurs, nous tendons alors à écarter davantage un excès de prévoyance et de présomption, qui altère beaucoup notre véritable bonheur, privé et public. Les affections bienveillantes, dont il dépend surtout, acquièrent ainsi plus de prix encore que lorsque chacun se confie trop aux garanties extérieures. Quand même la terre devrait être bientôt bouleversée par un choc céleste, vivre pour autrui, subordonner la personnalité à la sociabilité, ne cesseraient pas de constituer jusqu’au bout le bien et le devoir suprêmes. Les vrais philosophes sentiront toujours, comme les francs prolétaires, que de telles pensées tendent plutôt à consolider notre bonheur réel, chez ceux du moins qui savent en utiliser l’aptitude morale” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 506-507).

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Tradução para o português:

"Assim, toda a Astronomia concorre naturalmente para constituir o espírito relativo no domínio que, devido à sua simplicidade e sua independência, pareceria admiti-lo menos. Em relação aos fenômenos que concernem ao homem, não se pôde nunca desconhecer inteiramente as variações interiores que não não permitem o absoluto. Mas esse atributo pareceria dever pertencer sempre aos eventos em que não somos senão expectadores. Ora, a Astronomia elimina-o espontaneamente no estudo mesmo desses que são inacessíveis a toda modificação humana. Essa constituição decisiva da relatividade, no início da iniciação sistemática, devia influenciar poderosamente sobre sua extensão aos fenômenos mais complicados, antes que sua própria apreciação tenha sido diretamente estabelecida.


Para melhor sentir uma tal tendência astronômica, é necessário também a observar sob o aspecto moral. Afinal, a verdadeira ciência celeste estende finalmente a relatividade de nossas idéias às nossas esperanças e, em conseqüência, a todos os nossos sentimentos. Ao manifestar as diversas condições planetárias, ela dissipa a segurança absoluta que nos representava como isentos de perturbações quaisquer. A estabilidade essencial, tanto celebrada em relação à Terra, pelos geômetras modernos, não se refere senão às mudanças graduais devidas às gravitações secundárias, que, com efeito, não podem produzir senão oscilações quase indiferentes. Mas, além da resistência do meio, que se negligencia sempre, é necessário sobretudo considerar as mudanças bruscas, que não comportam previsão real e contra as quais não possuímos nenhuma garantia científica. Nada pode, por exemplo, demonstrar – o que quer que tenha sido dito – que nosso planeta está ao abrigo de todo choque cometário. Ao concluir assim a apreciação de nossa verdadeira condição astronômica, constitui-se melhor a energia e a dignidade do caráter humano, que deve encontrar em si mesmo seu principal recurso contra o conjunto de nossas misérias. Sem nos preocuparmos com vãos terrores, tendemos então a descartar mais um excesso de previsão e de presunção, que altera bastante nossa verdadeira felicidade, privada e pública. Os afetos da benquerença, de que ela depende sobretudo, adquirem assim mais valor ainda que quando cada um confia demais nas garantias exteriores. Quando mesmo a Terra devesse ser logo perturbada por um choque celeste, viver para outrem, subordinar a personalidade à sociabilidade, não cessariam de constituir até o fim o bem e o dever supremos. Os verdadeiros filósofos sentirão sempre, como os francos proletários, que tais pensamentos tendem antes a consolidar nossa felicidade real, entre aqueles que ao menos sabem utilizar a sua aptidão moral" (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 506-507). 

31 outubro 2012

Permanência do espírito absoluto disseminando o ateísmo

O espírito absoluto que reinava - e, a bem da verdade, ainda reina - nas ciências naturais faz delas um âmbito privilegiado para o desenvolvimento do ateísmo. Ora, o ateísmo é uma forma de teologia, embora pela via negativa: rigorosamente, o ateísmo nega a única resposta possível ("deus") para a pergunta que continua fazendo ("quem, ou o quê, criou o universo?"). 

A perspectiva relativa, ou positiva, é deixar de lado tal gênero de indagações: em vez de negar a única resposta possível, deve-se deixar de lado a própria pergunta; o tipo de raciocínio desenvolvido na pergunta teológica ("por quê?"; a investigação das causas) deve ser substituído pelo tipo de raciocínio próprio à positividade e à relatividade ("como?"; a investigação das relações entre os fatos observáveis, ou seja, das leis).

Assim, a manutenção do espírito absoluto nas ciências naturais de uma única vez apresenta três conseqüências nefastas: mantém as investigações de caráter teológico, estimula o ateísmo e, por fim, rejeita o espírito relativo e positivo.

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“C’est là surtout que réside l’athéisme proprement dit, plus hostile aujourd’hui à la vraie philosophie qu’aucun autre théologisme, comme l’explique mon Discours préliminaire. Le matérialisme y puise aussi ses principales forces intellectuelles, quoique la biologie dévellope davantage ses dangers moraux” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 456).

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Tradução para o português:


"É sobretudo aí que reside o ateísmo propriamente dito, mais hostil hoje à verdadeira filosofia que qualquer outro teologismo, como o explica meu Discurso preliminar. O materialismo possui aí suas principais forças intelectuais, ainda que a Biologia desenvolva mais seus perigos morais" (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 456).

25 outubro 2012

Lógica positiva e moralidade


O caráter moral da lógica positiva é afirmado abaixo: a criação da Sociologia incorpora as idéias de sociabilidade e de altruísmo; tais idéias, de caráter relativo, influenciam a própria moral, que se torna relativa e, portanto, claramente direcionada para o ser humano. O estudo relativo das leis naturais – ou seja, das relações entre fenômenos – deixa para trás a pesquisa absoluta das causas – ou seja, das questões do tipo “de onde viemos?”, “quem criou o universo?” – e permite que se investigue as possibilidades e os graus de mudança no ser humano, o que conduz ao aperfeiçoamento moral.

Como se vê, não há nada de “separação entre fato e valor” aí, muito menos de “tecnocracia” ou de “reificação da realidade”. O que há, de fato, é preocupação com o ser humano e com o conhecimento (útil) da realidade.

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“Mais la supériorité morale de la nouvelle logique religieuse est encore plus directe et plus profonde que sa préeminence intellectuelle ; car la subjectivité positive est nécessairement sociale, en vertu de sa réalité, tandis que la subjectivité théologique fut toujours personnelle, d’après son caractère absolu. Celle-ci concevait l’ensemble des êtres comme créé pour l’homme, tandis que celle-là destine l’humanité à perfectionner la faible portion de l’ordre universel qui comporte notre intervention. Or, si cette appréciation finale surpasse l’autre en rationalité, elle lui est encore plus supérieure en moralité. La première nous ayant seule gouvernés jusqu’ici, il a bien fallu y rattacher la culture des sentiments comme celle des pensées ; et même son règne affectif a dû se prolonger davantage que sa prépondérance spéculative, toujours compromise par l’activité pratique. Mais le privilége de sentimentalité ainsi attribué à l’ancienne logique religieuse ne repose que sur une appréciation empirique, qui, depuis longtemps, a cessé d’être vraie. Le déclin politique du monothéisme permit de sentir partout que sa morale tant vantée consistait nécessairement en un immense égoïsme, directement opposé à toute vraie sociabilité. Dans la nouvelle logique religieuse, la substitution spéculative du relatif à l’absolu et la substitution affective de l’humanité à l’homme sont toujours la suite naturelle l’une de l’autre” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 452-453).

22 outubro 2012

Teoria e prática, leis gerais e aplicações específicas

Mais uma citação longa, mas muito interessante. Ela apresenta inúmeros elementos da epistemologia comtiana: relações entre teoria e prática, entre conhecimentos abstratos e concretos, entre leis gerais e aplicações específicas, entre empirismo e dogmatismo (ou "racionalismo").

Essas páginas do Sistema de política positiva permitem claramente diálogos com todas as teorias epistemológicas contemporâneas, sem dever nada a nenhuma delas, quer sejam das Ciências Naturais, quer sejam das Ciências Humanas. Entretanto, o que se conhece como "epistemologia comtiana" reduz-se apenas aos dois primeiros capítulos do Sistema de filosofia positiva (também conhecidos como duas primeiras lições do Curso de filosofia positiva). Repito duas observações feitas em outros momentos: essa ignorância não é acidental e nem o Sistema de política é produto de "delírio". Basta ler os trechos abaixo para comprovar-se isso.

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“La sagesse vulgaire a toujours reconnu qu’il n’existe point de règle sans exception; mais, en même temps, la raison philosophique n’a cessé d’aspirer à des régles invariables. Ces deux appréciations, qui semblent incompatibles, sont pourtant également saines, en se plaçant au point de vue convenable. Leur conciliation naturelle résulte toujours de la distinction précédent, entre les lois abstraites ou simples et les lois concrètes ou composées. Celles-ci ne peuvent êtres que particulières, tandis que les autres comportent une pleine généralité, qui constitue leur vrai mérite. Tous les divers éléments de chaque existence sont respectivement assujettis à d’invariables lois, communes aux êtres quelconques où se retrouve le même événement. Au fond, c’est en cela que consiste surtout l’ordre naturel, dont la vraie notion, nullement déductive, résume toujours les inductions correspondantes, assitées des analogies convenables. Si les lois élémentaires d’où résulte n’étaient pas entièrement générales, nos prévisions rationnelles ne comporteraient aucune sécurité. Mais cette indispensable généralité, seule source d’une précieuse cohérence, ne s’obtient jamais que d’après une abstraction qui altère plus ou moins la réalité de nos conceptions théoriques. Les événements ne pouvant s’étudier que dans des êtres, il faut, en effet, écarter les circonstances propres à chaque cas pour y saisir la loi commune. C’est ainsi, par exemple, que nous ignorerions encore les lois dynamiques de la pesanteur, si nous n’avions pas fait d’abord abstraction de la résistance et de l’agitation des milieux. Même envers les moindres phénomènes, nous sommes donc obligés de décomposer pour abstraire avant de pouvoir obtenir cette réduction de la varieté à la constance que poursuivent toujours nos saines méditations. Or ces simplifications préalables, sans lesquelles la vraie science n’existerait jamais, exigent partout des restitutions correspondantes, quand il s’agit de prévisions réelles. Ce passage de l’abstration au concret constitue la principale difficulté des applications positives, et la source nécessaire des restrictions finales que comportent toutes les indications théoriques. Alors surgissent d’énormes déceptions, comme celles que le tir effectif des projectiles présente aux orgueilleux calculs des purs géomètres. Voilà d’où provient, dans la vie pratique, l’alternative habituelle des meilleurs esprits théoriques entre l’hésitation et la méprise. C’est l’un des motifs essentiels de leur inaptitude notoire aux affaires temporelles.
L’entière généralité est donc incompatible avec une parfaite réalité. Notre vraie régime logique exige que ces deux conditions également indispensables soient d’abord séparées convenablement pour être ensuite sagement combinées. Toute notre conduite normale institue ainsi un hereux concours final entre le dogmatisme et l’empirisme, qui seraient également incapables de la diriger isolément, l’un par illusion, l’autre par imprévoyence. Des lois purement empiriques ne conviendraient qu’aux cas qui les auraient fournis, et elles y constitueraient une stérile érudition, très-différent de la vraie science. Quelque complètes qu’elles fussent, la diversité nécessaire des circonstances concrètes empêcherait d’en déduire de nouvelles prévisions, où réside toute l’efficacité de nos spéculations positives. Mais, à son tour, le pur dogmatisme abstrait ne nous serait pas moins funeste, quoique d’une autre manière. L’entière généralité et la liaison parfaite de ses conceptions ne se rapporteraient qu’à une stérile existence ascétique. Dans la vie réelle, ses présompteuses prévisions nous exposeraient sans cesse aux plus graves aberrations.
Cette conciliation normale entre le dogmatisme et l’empirisme était incompatible avec la nature absolue du théologisme, sous lequel ces deux marches coexistèrent forcément, mais sans aucune harmonie. La source divine des préceptes théoriques ne comportait pas d’exceptions, et l’indivisibilité des notions pratiques interdisait toute généralisation réelle. Ce conflit logique, propre à notre enfance mentale, reste encore très-sensible envers les sujets, surtout moraux et politiques, où cette enfance à dû persister davantage. On y flotte souvent entre l’évidente nécessité pratique qui impose des exceptions et l’impérieuse exigence théorique qui prescrit l’inflexibilité : en sorte que les règles de conduite y deviennent presque toujours ou impraticables par sévérité ou impuissantes par concession.
Il en sera tout autrement sous le régime positif, comme l’indiquent déjà les cas préliminaires où il a pu être partiellement ébauché. La nature tourjours realtive du nouveau dogmatisme le rend aisément conciliable avec un empirisme qui, de son côté, s’est élevé. D’une part, on écarte la vaine recherche des causes ; de l’autre, on ne se borne plus à la stérile étude des faits. Le génie théorique et le génie pratique se sentent également appelés à découvrir les lois, c’est-à-dire les relations, seules conformes à nos moyens réels et aussi à nos vrais besoins. Ils ne diffèrent plus qu’en ce que le premier cherche les lois générales de chaque classe d’événements possibles et le second les lois spéciales de chaque être existant. Mais cette distinction se réduit, au fond, à une simples division fondamentale, à la fois spontanée et systématique, de l’ensemble du travail humain, dont la nature et le but sont partout les mêmes. Car, nous n’étudions les événements qu’afin d’améliorer les êtres. Notre providence ne peut devenir rationnelle que par une suffisante prévision, qui exige des lois générales. Or cette généralité suppose toujours la décomposition préalable des existences particulières en phénomènes universels, seuls susceptibles de règles invariables. C’est ainsi que la saine constitution logique repose sur la distinction générale entre l’étude abstraite et l’étude concrète.
Voilà comment la religion finale consacre et discipline à la fois le dogmatisme et l’empirisme, par leur concours continu à l’harmonie du Grand-Être. Tous deux ont également participé à sa conception fondamentale ; car toute induction réelle est empirique dans sa source et dogmatique dans son terme. Quelque éminent que soit enfim devenu l’esprit positif, il ne doit jamais oublier qu’il émana partout de l’activité pratique, substituant graduellement l’étude des lois à celles des causes. Le principe universel de l’invariabilité des relations naturelles, sur lequel repose toute notre rationalité, est une acquisition essentiellement empirique. Au lieu d’être inspirée par le dogmatisme primitif, il lui était directement contraire, ce qui explique assez sa formation lente et graduelle, qui n’est complète que depuis la récente fondation de la sociologie. Mais, d’un autre côté, la science abstraite pouvait seule fournir la première conception générale de l’Humanité. Le plus tendre empirisme s’arrête à la considération de la famille, et s’élève très-difficilement à celle de la Patrie, même fort restreinte d’abord. Quelque réel que soit le nouvel Être-Suprême, sa nature collective exige beaucoup d’abstractions préalables. Pour comprendre dignement cette immense et éternelle existence, l’appréciation, seule directe, de ses nombreux éléments, simultanés et successifs, doit d’abord être purifiée de tous leurs conflits partiels.
Cette éminente difficulté, que exige aujourd’hui un concours familier entre le sentiment et la raison, ne constitue que le plus haut degré de celle qu’offre partout l’abstraction théorique indispensable à la généralité de nos conceptions positives. Dans toute la hiérarchie scientifique, la pensée abstraite diffère davantage de la pensée concrète et s’en sépare plus péniblement, à mesure que les phénomènes deviennent moins généraux et plus dépendants. Cette difficulté augmente tellement qu’il serait bientôt impossible de la surmonter assez par l’étude isolée des effets correspondants. Mais leur propre dépendance envers les phénomènes antérieurs fournit naturellement une précieuse assistance théorique, sans laquelle on ne pourrait distinguer suffisamment entre les circonstances à écarter et celles à conserver. C’est seulement ainsi qu’on parvient, envers les plus éminents sujets, à constituer des abstractions tout ainsi positives que celles dont les spéculations mathématiques comportent si aisément la formation. Il s’agit partout d’éviter à la fois les entités nominales et les réalités entièrement isolées. Or, cela n’est presque jamais possible qu’autant que les déductions antérieures viennent convenablement assister les inductions directes. Leur sage concours permet enfin de discerner, au milieu des circonstances accesoires ou indifférentes, le principal phénomène, qui devient alors la base d’une saine abstraction” (Comte, Systéme de politique positive, v. I, p. 425-430).