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14 maio 2017

Ricardo Alves: "Fátima e a transformação do catolicismo português"

Reproduzo abaixo um texto pequeno mas extremamente informativo, escrito pelo republicano português Ricardo Alves, a propósito das supostas "aparições de Fátima", que completam um século neste ano. Embora escrito em 2008, a efeméride demonstra que o artigo abaixo é, infelizmente, atualíssimo.

Os dados apresentados por Alves são verdadeiramente chocantes. O mito de Fátima mistura, de modo proposital, profecias sobre o passado, verdades fabricadas, silêncio eterno, campanhas políticas contra a República (e, depois, contra o comunismo), campanhas políticas a favor do longo autoritarismo de Salazar, instrumentalização do Estado em beneficio da Igreja Católica e enriquecimento da Igreja. Ah, claro, também um profundo obscurantismo.

O original pode ser lido aqui.

*   *   *

Fátima e a transformação do catolicismo português


As «aparições» de Fátima, entre 13 de maio e 13 de outubro de 1917, nasceram em reacção ao laicismo da República e nas circunstâncias da 1ª guerra mundial, mas o culto e o santuário ali instalados adaptaram-se facilmente ao regime reacionário de Salazar, designadamente ao seu anticomunismo, e constituem hoje o coração do catolicismo português, que seria inimaginável sem Fátima e o seu capital simbólico e financeiro.
Fátima I: a manifestação anti-republicana
No dia 5 de outubro de 1910, triunfa em Portugal a República. A laicidade era um elemento matricial do programa republicano, e nas primeiras semanas do novo regime foram expulsas as ordens religiosas, laicizado o ensino e instituído o registo civil obrigatório. Seguiu-se em abril de 1911 a Lei de Separação da Igreja do Estado (inspirada na lei francesa de 1905), através da qual o catolicismo deixou de ser a religião de Estado, se suprimiram as despesas relativas ao culto católico e ao salário do clero, se expropriaram edifícios da Igreja católica, mas também se amenizou a transição cedendo os templos para uso gratuito da Igreja, e concedendo pensões aos sacerdotes em funções que não hostilizassem a lei e a República. Porém, a maioria do clero (incitada por Pio X, que denunciou de imediato o português «ódio à Igreja» na encíclica Jamdudum in Lusitania) não aceitou o novo regime. A Lei de Separação fazia também depender de autorização prévia o culto religioso fora dos templos, o que obstaculizou as procissões populares habituais nos meios rurais.
No dia 13 de maio de 1917, Lúcia dos Santos, Jacinta Marto e Francisco Marto (respectivamente com 10, 7 e 8 anos de idade) dizem à família e aos vizinhos que lhes aparecera, sobre uma azinheira da Cova da Iria, uma «senhora vestida de branco». Mais precisamente: Lúcia vira, ouvira e falara com a «senhora», Jacinta vira e ouvira, e Francisco olhara somente. A entidade ter-lhes-ia pedido para voltarem todos os meses até fazer seis, altura em que lhes revelaria o que pretendia. As três crianças, que naturalmente se aborreciam a guardar ovelhas e viviam submersas num ambiente de religiosidade intensa, são interrogadas pelo pároco da freguesia de Fátima no final do mês, e não mais deixarão de ser devidamente enquadradas, e apoiadas, pelo clero. De tal modo que se na segunda «aparição» estarão presentes cerca de 50 pessoas, na terceira já serão mil ou mais. Até então, a «mensagem» registada nos interrogatórios resume-se a promessas de «levar para o Céu» os três pastores, a encorajamentos para «rezar o terço» e a alusões vagas ao final da guerra (onde havia jovens da freguesia). Mas em julho, a imprensa começa a interessar-se pelo assunto: um jornal católico de Ourém alude, em tom sonhador, à hipótese de «a Rainha dos Anjos fazer desta freguesia uma segunda Lurdes». A polémica atinge rapidamente os jornais nacionais, e o administrador do concelho de Ourém reage levando as crianças para sua casa no dia 13 de agosto, pretendendo evitar uma manifestação que seria uma violação da interdição de concentrações religiosas públicas sem autorização prévia. Os pastores ficarão em casa do administrador durante dois dias, bem hospedados e brincando com os seus filhos, o que não impedirá Lúcia de inventar anos mais tarde (apenas uma das suas muitas invenções…), que teriam estado na prisão com criminosos de delito comum. Sem se atrapalhar com este contratempo, Lúcia «vê», no dia 19 de agosto e noutro local, aquela que agora designa por «Nossa Senhora». E a 13 de setembro comparece, com mais de 20 mil pessoas, na penúltima «aparição», considerada uma «desilusão» pelos presentes, mas na qual está, pela primeira vez e enviado pelo cardeal patriarca de Lisboa, o sacerdote que será o principal promotor do culto de Fátima: Manuel Nunes Formigão. Finalmente, a 13 de outubro a «Nossa Senhora» declara-se «muito ofendida» (presumivelmente pelo anticlericalismo) e anuncia (é Lúcia quem o garante perante várias testemunhas) que a guerra terminou naquele momento e que os soldados voltarão[1]. Nesse dia, nesta cova no cimo de uma serra, em condições atmosféricas instáveis típicas do início de Outono (movimento rápido das nuvens e alternância de Sol e chuva), certas pessoas acharão que o Sol «bailou», outras que «rodou» e outras ainda que quase se «precipitou» sobre a Terra. Individualidades tão diversas como o livre-pensador António Sérgio e o católico conservador Domingos Pinto Coelho, entre outras, assegurarão que nada de especial se passou, para além da variação natural da luz do Sol com a densidade das nuvens em movimento. E (se isso interessa…) milhões de pessoas em todo o mundo nada notaram de anormal, nesse mesmo dia e a essa mesma hora, no Sol que observavam, presumivelmente o mesmo da Cova da Iria[2].
Estes acontecimentos, originados possivelmente por fantasias de crianças ou por uma encenação, aconteceram num momento oportuno para a Igreja católica. O esforço de guerra desestabilizava a jovem República, com o aumento do custo de vida, o crescimento do desemprego e motins causados pela escassez de alimentos. Após a entrada oficial na guerra (fevereiro de 1916), os partidos republicanos uniram-se no apoio ao governo, e os monárquicos receberam ordem, do rei exilado em Londres, para se absterem de política enquanto a guerra durasse. A Igreja católica era portanto, nesse momento, a única oposição organizada ao regime que podia instrumentalizar a aversão à guerra (as pastorais dos bispos portugueses tiveram um tom tão político, em 1917, que seis bispos foram expulsos das suas dioceses). Todavia, as «aparições» poderiam ter caído no olvido como uma episódica manifestação de protesto[3], mas a Igreja católica fará deles o coração da sua «reconquista cristã» de Portugal, talvez porque Fátima, ao contrário de outros locais de «aparições» de «Nossa Senhora» seus contemporâneos[4], reunia condições geográficas excepcionais e o empenho do clero.
Geograficamente, o local é adequado para um santuário de sucesso. Por se situar no cimo de uma serra, a Cova da Iria garante, quando demandada a pé, algum do «sacrifício» que desde o início foi pedido pela «senhora», e conferia inicialmente o isolamento que não se conseguiria numa planície ou num centro urbano. E, embora sendo de difícil acesso quando o uso do automóvel não se generalizara, não se situa muito longe da linha Lisboa-Porto, e portanto ficará sempre na proximidade de quaisquer vias rodoviárias ou ferroviárias que liguem as duas principais cidades do país. Adicionalmente, por se situar numa zona litoral (mais populosa do que o interior) e a norte do Tejo (a sul do qual o catolicismo foi sempre mais fraco), Fátima garantia uma distância não excessiva para ser percorrida pela maioria dos devotos peregrinos das aldeias do Norte e Centro de Portugal.
Quanto ao clero, deve destacar-se o papel do sacerdote Nunes Formigão, que visitou a inspiradora Lurdes pela primeira vez em 1909 (voltará em 1914, em ambas as ocasiões por períodos de semanas ou meses) e ficou impressionado com as «curas assombrosas» e, especulemos, as possibilidades deste género de empresa religiosa, tendo-se comprometido a divulgar a «devoção mariana» em Portugal. Como dizem prosaicamente as biografias devotas, «Nossa Senhora aceitou o seu voto» – e Formigão aparece em Fátima em setembro de 1917. Será um dos primeiros sacerdotes a interrogar os videntes, figura determinante na aquisição dos terrenos da Cova da Iria, relator único da comissão canónica sobre os acontecimentos de 1917, e autor de vários livros e numerosos artigos promotores do santuário em jornais católicos e no boletim mensal Voz de Fátima. Pode arriscar-se dizer que, sem ele e sem o bispo Correia da Silva, os acontecimentos de 1917 não passariam hoje de uma curiosidade histórica.
Fátima II: o santuário do Estado Novo
Em janeiro de 1918 dá-se um acontecimento fulcral para o aproveitamento clerical de Fátima: a diocese de Leiria (cidade a 25 km de Fátima) é restaurada, sendo nomeado bispo, em maio de 1920, José Alves Correia da Silva (1872-1957), que peregrinara já a Lurdes doze vezes e era tão devoto de «Nossa Senhora» que consagrou a diocese à Virgem Maria dez dias depois de tomar posse. Após um atentado à bomba contra a capela recentemente fundada na Cova da Iria, Correia da Silva nomeia, em maio de 1922 e a pedido de Formigão (que aponta explicitamente o exemplo de Lurdes) uma comissão eclesial para estudar o caso, declara catolicamente correcto o culto no local e manda fundar (outubro de 1922) o boletim mensal Voz de Fátima (que atingiria 366 mil exemplares em 1936, e no qual o incansável Formigão recenseará mais de mil «curas milagrosas»). Seguem-se os trabalhos de construção civil, coroados em 1929 pela inauguração da central eléctrica do santuário, em que estiveram presentes o Presidente da então Ditadura Militar (Óscar Carmona) e o ministro das Finanças, o católico conservador Oliveira Salazar[5]. A afluência de peregrinos aumentara ao longo da década, apesar da correcção eclesiástica aos aspectos mais «pagãos» que as romarias populares tinham tomado entre 1917 e 1922, mas auxiliada pelas visitas de quase todos os bispos portugueses e outras personalidades católicas. Fátima encontrara, entretanto, o regime político que lhe convinha. Nas palavras do cardeal Cerejeira[6]: «Desde que Nossa Senhora de Fátima apareceu em 1917 no céu de Portugal, uma especial bênção de Deus desceu sobre a terra portuguesa. Encerrou-se o ciclo violento da perseguição religiosa e começa uma época nova de pacificação das consciências e de restauração cristã».
Tendo reunido um total de duas vezes, a comissão diocesana conclui os seus trabalhos em 1930, e Correia da Silva publica seguidamente uma carta pastoral onde declara dignas de crédito as «visões» e autoriza o culto a «Nossa Senhora de Fátima». A mina estava aberta, bastava agora explorar o filão.
O que acontecera, entretanto, às três crianças? Francisco e Jacinta tinham adoecido um ano depois das «aparições», enfraquecidos pelos jejuns que a «senhora» recomendara e vitimados pela epidemia de pneumónica que grassava pela Europa. Morreram em abril de 1919 e em fevereiro de 1920, respectivamente. Quanto a Lúcia, foi levada em maio de 1921 para um internato religioso. Na véspera da sua partida, o bispo de Leiria chamou-a para a proibir de falar sobre as «aparições» com quem quer que fosse. Lúcia tinha 14 anos, e ficará reclusa em conventos e casas religiosas desde então até à sua morte, com 97 anos, em 2005. No final dos anos 30 escreveu as Memórias da Irmã Lúcia, ostensivamente em obediência à «vontade de Deus» tal como transmitida através do representante por ela reconhecido – o bispo de Leiria – e assumidamente acrescentadas e corrigidas pelo bispo e seus ajudantes. O livro pretende proceder à fixação da mitologia de Fátima, mas contradiz em vários aspectos relevantes a versão dos acontecimentos que ela e os primos tinham dado vinte anos antes. Interessa aqui referir que o conteúdo ideológico da «mensagem» se torna agora nacionalista (pela primeira vez, uma «visão» menor de 1916 é identificada como «o anjo da guarda de Portugal») e anticomunista. O «segredo» transmitido às crianças é revelado, dividido em três partes. A primeira, a célebre «visão do inferno», com fogo, animais e demónios aterradores, e que parece ser um resultado directo da catequese terrorista a que Lúcia fora sujeita na infância. A segunda, um pedido de «estabelecimento no mundo» da «devoção ao imaculado coração de Maria», meio que, teria garantido a «Nossa Senhora», evitaria que rebentasse a 2ª guerra mundial – o que não foi possível fazer, como é óbvio, por este pedido apenas ter sido revelado… em 1941 (a revelação de uma «profecia» em data posterior ao acontecimento profetizado não impede os católicos fatimistas, evidentemente, de verem ali uma prova da intervenção do «sobrenatural»[7]). Reveladoramente, a segunda parte do «segredo» insistia em que era necessário «consagrar a Rússia ao coração de Maria», sob risco de esta nação «[espalhar] os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à igreja». No entanto, em julho de 1917, data suposta desta preocupação celestial com a Rússia, Kerenski governava. A viragem anticomunista da «mensagem de Fátima» pode dever-se tanto a razões internacionais (o desenvolvimento da URSS nos anos 30 e o crescente apelo do comunismo na Europa ocidental) como internas (à data da publicação das Memórias…, a principal força de oposição ao salazarismo eram já os comunistas e não os republicanos). Como diria lapidarmente o cardeal Cerejeira em 1953: «Fátima – Altar do Mundo – opõe-se a Moscovo – capital do reino do Anti-Cristo». A nova «mensagem de Fátima», no fundamental e sem esquecer a sua insistência no «sacrifício» e na «obediência», servia o presente e o futuro do Estado Novo. Lúcia, com a autoridade de quem falara com «Nossa Senhora», chegará mesmo a escrever que «Salazar é a pessoa por Ele [Deus] escolhida para continuar a governar a nossa Pátria».
Fátima III: manifestações de massas e consumismo na era da democracia
Quase um século depois, Fátima fornece ao catolicismo português um ponto de foco e uma fonte de receitas financeiras (através de donativos, hotéis, museus e outros negócios, religiosos e profanos, isentos de vários impostos). O número de visitantes anuais, segundo o santuário, encontra-se entre quatro e cinco milhões, o que rivaliza com Lurdes. As receitas são inestimáveis (poderão atingir vinte milhões de euros, apenas metade consumidos em despesas), e já possibilitaram a construção de uma faraónica catedral de 70 milhões de euros, inaugurada em 2007.
Quanto ao capital simbólico, o catolicismo popular português seria hoje inimaginável sem a «Nossa Senhora de Fátima», e a «Virgem Maria» tornou-se a figura central em tantas novas igrejas que parece quase mais importante do que Cristo. Porém, até alguns católicos (não fatimistas) notam que aquele culto contém aspectos pagãos. Realmente, «ir a Fátima» é, para os peregrinos, um negócio em que o sofrimento das caminhadas e das deslocações de joelhos ou de rastos à volta do recinto do santuário deve ser pago, pela deusa de Fátima, com o cumprimento de pedidos e promessas. O «pagamento», contraditoriamente com o «universalismo» católico, só pode ser feito naquele local do concelho de Ourém e em nenhum outro. Quando não têm pruridos com estes «desvios pagãos», as elites católicas lidam com Fátima através do mecanismo de transferência a que o filósofo Daniel Dennett chama «crer na crença»: o mais importante, dizem-nos, não é a veracidade das «aparições» ou a credibilidade da «mensagem», mas sim o facto de tanta gente ter fé nessas mesmas «aparições» e nessa mesma «mensagem». Assim, a generalidade dos intelectuais católicos, e muitos sacerdotes, evitam um debate em que as contradições do fatimismo e o simples bom senso lhes seriam desfavoráveis, e deixam o literalismo da crença para as multidões que enchem o santuário.
Faltam, evidentemente, os santos. Em maio de 2000, foram beatificados os dois pastorinhos já falecidos, invocando a «cura» de uma paralisia histérica, comprovada por três médicos «independentes» (pai, mãe e filha) e «imparciais» (todos membros da Servitas de Fátima). Nessa ocasião, foi lida a terceira parte do «segredo», onde um «bispo de branco» e os seus acompanhantes são dizimados por «tiros e setas» de um «grupo de soldados». Em 2000, Lúcia identificou esta cena com o atentado de Ali Agca, em 1981. E, no documento interpretativo do «segredo»[8], Angelo Sodano agradeceu à «Virgem Santíssima» a derrota do bloco comunista. Morta Lúcia em 2005, a santidade é uma questão de tempo.
Fátima entrou numa nova fase. No período democrático, as peregrinações ao santuário, entre maio e outubro de cada ano, conferem ao catolicismo português um aspecto de religião de massas que seria impossível conseguir anualmente de outra forma, e que permite à hierarquia amplificar as suas campanhas políticas, as mais recentes contra a despenalização do aborto e o casamento entre homossexuais (as novas «ofensas ao coração imaculado de Maria»). O catolicismo português, religião oficial do Estado até 1910, substituiu o apoio estatal pelo apoio na crença na visita a Portugal de uma figura celestial.[9]
Manuel Nunes Formigão, principal promotor de Fátima (Tomar, 1883 –  Fátima, 1958; doutorado em Teologia e Direito Canónico em Roma em 1909).
Manuel Nunes Formigão, principal promotor de Fátima (Tomar, 1883 – Fátima, 1958; doutorado em Teologia e Direito Canónico em Roma em 1909).
Ricardo Alves
Setembro de 2008

[1] Evidentemente, a guerra não apenas não terminara como continuou durante mais de um ano. O pior momento para as tropas portuguesas, aliás, aconteceria no dia 9 de abril de 1918, quando o Corpo Expedicionário Português foi destroçado na batalha de La Lys.
[2] Os «videntes» também não viram o «bailado do Sol», mas pode-se-lhes perdoar por se terem distraído a ver a «sagrada família» no próprio Sol.
[3] Em 1822, a «Virgem Maria» aparecera a dois pastorinhos de Carnide, aflita com a primeira Constituição do liberalismo, e conferindo assim a «autoridade divina» ao pretendente absolutista D. Miguel. Em dezembro de 1917, Sidónio Pais tomou o poder, e durante um ano esforçou-se por «acalmar» a questão religiosa.
[4] Nomeadamente, a «aparição» de uma «senhora de branco» na remota localidade do Barral, concelho de Ponte da Barca (maio de 1917) e em Pardilhó, concelho de Estarreja (junho de 1916).
[5] No dia 28 de maio de 1926, o exército, apoiado nos sectores conservadores e na Igreja católica, derrubara a República e instaurara uma ditadura da qual Salazar se tornou claramente a figura preponderante em 1932.
[6] Companheiro de quarto de Salazar em Coimbra, Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977) foi cardeal de Lisboa entre 1929 e 1971.
[7] O mesmo aconteceria com a terceira parte do «segredo», que seria também divulgada (2000), após o acontecimento que alegadamente profetizaria de forma muito alegórica, o atentado a Karol Wojtyla (1981).
[9] Uma versão em língua francesa deste texto foi publicada na revista L´Idée Libre nº283 (dezembro de 2008).

06 outubro 2016

República de Portugal - busto comemorativo

A bela imagem abaixo representa a República de Portugal, implantada em 5 de outubro de 1910. A imagem tradicional da República - na forma de u'a mulher com cabelos soltos e longos e um colo um pouco exposto - é chamada, desde a Revolução Francesa (1789) e a I República Francesa (1792) de Marianne, ou Mariana.

Infelizmente, não tenho informações sobre o autor desse busto nem sobre a data de sua composição. De qualquer maneira, a imagem foi obtida por intermédio de Ricardo Alves e Luís M. Mateus, da Associação República e Laicidade, de Portugal, cujo nome é extremamente simpático e autoexplicativo.




28 abril 2011

Centenário da Lei de Separação entre Igreja e Estado de Portugal

Material produzido pela Associação República e Laicidade, de Portugal, em comemoração - e defesa - do centenário da lei portuguesa de separação entre a Igreja e o Estado (1911-2011):

http://www.laicidade.org/centenario-da-lei-de-separacao-da-igreja-do-estado/

CENTENÁRIO DA LEI DE SEPARAÇÃO DA IGREJA DO ESTADO

Artigo 1º

A República reconhece e garante a plena liberdade de consciência a todos os cidadãos portugueses e ainda aos estrangeiros que habitarem o território português.

Artigo 2º

A partir da publicação do presente decreto, com força de lei, a religião católica apostólica romana deixa de ser a religião do Estado e todas as igrejas ou confissões religiosas são igualmente autorizadas, como legítimas agremiações particulares, desde que não ofendam a moral pública nem os princípios do direito político português.

Artigo 3º

Dentro do território da República ninguém pode ser perseguido por motivos de religião, nem perguntado por autoridade alguma acerca da religião que professa.

Artigo 4º

A República não reconhece, não sustenta, nem subsidia culto algum; e por isso, a partir do dia 1 de Julho próximo futuro, serão suprimidas nos orçamentos do estado, dos corpos administrativos locais e de quaisquer estabelecimentos públicos todas as despesas relativas ao exercício dos cultos.

Bons amigos republicanos,

completa-se hoje um século sobre a «minha» Lei de Separação da Igreja do Estado [1].

Cem anos passados, isola-se com demasiada facilidade a Lei da Separação de outra legislação que partilhava o mesmo objectivo laicizador. A Lei do Registo Civil obrigatório [2] e a generalização do Ensino laico [3] são injustamente ignoradas. Pela laicização do Registo Civil, tornou-se possível a todos os cidadãos portugueses nascer, casar e morrer sem dar conta disso à Igreja. Não creio que os portugueses do século XXI imaginem o que era fazer depender cada um desses actos da presença de um padre, que guardava o seu registo em livros só dele. Parece-me evidente que hoje jamais o aceitariam. E com a generalização do ensino laico pretendíamos formar cidadãos nos valores republicanos, liberais e laicos. Os valores que a todos podem unir, para além das tutelas clericais, tantas vezes impostas desde a infância. Sei que não tivemos tempo para concluir essa parte da nossa obra. Mas atravessámos tempos difíceis, até uma guerra mundial.

Queria falar-vos da Lei de Separação. A Lei a que hoje ligam o meu nome, o que é de justiça, porque muito trabalho me deu. Mas eu não estava sozinho. Não era o único português a desejá-la e os republicanos portugueses não eram uma minoria de marcianos anti-religiosos infiltrados no bom povo português. Éramos muitos, embora principalmente nas cidades. Leiam o que dizia o meu amigo Fernão Botto Machado em defesa do Registo Civil obrigatório [4], ou o que dizia a minha amiga Beatriz Pinheiro contra a educação clerical e jesuítica [5], e compreenderão como os nossos argumentos eram lógicos, razoáveis e sensatos. E como ainda hoje muitos de vós concordariam com o que esses meus amigos da Associação do Registo Civil e da Liga Republicana das Mulheres Portuguesaspretendiam. Talvez os portugueses ainda venham a sentir necessidade de proferir palavras semelhantes, em pleno Século XXI. Quem sabe.

Nada me espanta mais do que a importância que dão a umas palavras que me atribuem, e que teria pronunciado no dia 21 de Março de 1911, no Grémio Lusitano. Eu teria dito que «em duas gerações, Portugal terá eliminado completamente o catolicismo». Ora, nesse mês, afirmei em várias conferências que «com o seu aspecto mercantil degradante, consequência da influência dos jesuítas, aspecto a que emprestaram o seu selo as congregações e a Companhia de Jesus, a continuar esta situação, em breve a religião católica se extinguiria». Talvez tenha sido essa frase, mal entendida ou desastradamente anotada, que provocou este centenário equívoco. Porque eu desmenti várias vezes que a tivesse pronunciado [6]: em Santarém, em Novembro de 1912, eu disse que «os reaccionários, à falta de argumentos insuspeitos, atribuíram-me a intenção de querer acabar, mediante essa lei, com o Catolicismo em Portugal em duas ou três gerações. A verdade é que a Lei não faz mal ao Catolicismo, mas que este vivia, antes dela, em Portugal, uma vida artificial (…) Em vez de ferir a religião, a Lei permite à Igreja Católica viver longe da agitação política, procurando ressurgir, pura e respeitável, pela fé e pela bondade dos seus sacerdotes»; e perante a Assembleia Nacional, em 10 de Março de 1914, afirmei que «tenho sido acusado de muitas coisas e, entre elas, a de extinguir o sentimento religioso em duas gerações. Esta calúnia é de tal natureza que merece o sorriso e o desdém que quase sempre merecem os caluniadores». Pelo contrário, a legislação que eu assinei, oficialmente, sentado à minha mesa e após longa ponderação, está publicada nos jornais oficiais, assumida e sem ambiguidades. Mas já nada posso fazer: a frase que eu teria proferido entre amigos, talvez para acordar os mais sonolentos, tornou-se mais importante do que centenas de artigos legais que escrevi e que não extinguiam coisa alguma, a não ser privilégios indevidos. Talvez haja aqui um claro sinal de que os portugueses preferem a superficialidade das frases tonitruantes à complexidade de textos legais que requerem estudo aturado. Querer tornar uma frase apócrifa (estou a ser simpático) no símbolo e no objectivo oculto de toda uma legislação, que eu aliás sempre afirmei que podia ser debatida e melhorada, é tornar verdade uma mentira mil vezes repetida. Mas se essa frase se tornou um dogma da fé católica portuguesa, admito que devo calar-me. Por respeito.

Voltemos à Lei de Separação. Com ela, a religião católica deixou de ser a religião do Estado. Só por si, esse singelo facto não exaltaria ninguém. Mas, do mesmo passo, os sacerdotes católicos deixaram de ser funcionários públicos e os generosos subsídios que a igreja recebia foram eliminados. Fui então acusado de «perseguir a igreja católica». Até a Lei do Divórcio [7] foi inserida como parte dessa «perseguição». Será que os portugueses de 2011 sabem que se considerou «perseguição» o tornar o divórcio legal? Eu sei que o podem compreender: ainda recentemente se considerou «perseguição ao catolicismo» legalizar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (questão, diga-se, que no meu tempo ninguém colocou).

Há quem diga que as comissões cultuais que a Lei criava pretendiam «controlar» ou «dominar» a igreja católica, e que eu (só eu, sempre o único responsável) as quereria formar com republicanos anticlericais. E no entanto, eu disse claramente que «a intenção da Lei era apenas a de criar uma corporação que recebesse os donativos com que se devia pagar ao padre e não cultuais com livres-pensadores (…) O que se não compreende é que tome conta do culto quem com o culto se não interessa» [8]. Acrescento que a Lei de Separação francesa, de 1905 [9], ainda hoje está em vigor, e sendo muito semelhante à portuguesa ninguém hoje considera que tenha «extinguido» o catolicismo ou que «persiga» os católicos, havendo até quem ache que os privilegia comparativamente com os muçulmanos!

Eu sei, separar pode sempre ser figurado como antipático, violento até. Mas tomem em consideração que a igreja católica que eu enfrentei em 1911 era muito diferente da que hoje conhecem. Condenava a democracia e a laicidade (o Syllabus de Pio IX, sabem o que era?). Hoje, ao que sei, mesmo alguns bispos dizem defender a laicidade (mas condenam o laicismo; tal fineza de distinção dir-se-ia, no meu tempo …jesuítica). A igreja católica evoluiu, e há que reconhecê-lo. Mas há que reconhecer igualmente que essa evolução talvez se deva, em parte, aos republicanos portugueses, franceses, mexicanos e outros…

O nosso objectivo era a liberdade de consciência para todos: os católicos, os de outras religiões, os livres pensadores, os ateus. Acreditávamos que pela instrução e pela ciência o futuro de todos e de cada um seria melhor (e estou em crer que não nos vão contradizer neste desiderato?). Alguns souberam reconhecer que tínhamos razão. Como os protestantes de então[10], ou os judeus, comunidades religiosas que a Lei de Separação tirou da clandestinidade. De variadas formas explicámos os nossos objectivos, hoje tão mal compreendidos e distorcidos por historiadores clericais mais preocupados em atribuir-nos tenebrosas intenções. Leiam por exemplo o que disseram os meus correlegionários Magalhães Lima [11] ou Raúl Proença[12]. Atrevem-se a dizer que algum deles seria parte de uma obra de «extinção» ou «perseguição»? E no entanto, foi ao meu lado que estiveram, e não ao lado dos outros, os clericais… de que lado estava a liberdade, afinal?

Esta missiva já vai longa. Sei que no Portugal de 2011 o clericalismo continua a existir. Que há novamente sacerdotes pagos pelo Estado para exercer funções exclusivamente religiosas. Que há símbolos religiosos emescolas públicas (que se são templos, sê-lo-ão do saber laico). Que há professores nessas escolas que são as confissões religiosas que nomeiam, mas o Estado que salaria. Que existe uma Concordata, que é como que uma forma de tentar anular a Separação sem o dizer frontalmente. Que há mil e uma formas, subtis e dissimuladas, de subsidiar o culto e de contornar a Separação. Nem sei como têm dinheiro para tal.

Seja como for, meus amigos, eu estou morto há muito. Ficou o meu exemplo e os meus esforços, com os seus acertos e erros. Dei o meu melhor, pela liberdade de cada um contra a maioria e a tradição. Que a minha obra vos sirva de inspiração.

Saúde e fraternidade,

Afonso Costa

  1. Lei de Separação da Igreja do Estado (20 de Abril de 1911)
  2. Lei do Registo Civil (20 de Abril de 1911)
  3. Decreto sobre a Instrução (22 de Outubro de 1910)
  4. «A obrigatoriedade do Registo Civil» (Fernão Botto Machado, 1908)
  5. «A Educação Congreganista» (Beatriz Pinheiro, 1910)
  6. Afonso Costa nunca disse a frase que lhe atribuíram (Carlos Ferrão, «Desfazendo Mentiras e Calúnias», 1967)
  7. Lei do Divórcio (3 de Novembro de 1910)
  8. Discurso em Defesa da Lei de Separação (Afonso Costa, 1914)
  9. Lei (francesa) de Separação das Igrejas do Estado (1905)
  10. Memorial das Igrejas protestantes (1911)
  11. «O Espírito Laico e o Espírito Livre Pensador» (Magalhães Lima, 1911)
  12. «O Partido Republicano e as crenças religiosas» (Raúl Proença, 1910)