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03 junho 2025

Diálogo sobre a morte como transformação


O diálogo abaixo ocorreu em um grupo do Whattsapp dedicado ao estudo e à difusão do Positivismo, isto é, da Religião da Humanidade, nos dias 2 e 3 de junho de 2025. Como se pode ver pela pergunta inicial, o tema era o conceito positivo de morte como “transformação”. Essa pergunta inicial, por inúmeros motivos, é interessante e pode ser elaborada por muitas pessoas: por esse motivo, consideramos que esse diálogo vale a pena ser divulgado.

Para manter a privacidade do inquiridor, suprimimos seu nome; além disso, acrescentamos vários comentários, para a resposta ser um pouco mais completa e didática; por fim, editamos um pouco a resposta para fins de divulgação. 

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Pergunta

O termo “transformação” para se referir à morte no Positivismo vem da famosa frase de Lavoisier: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”?

 

Gustavo

Essa é uma boa pergunta, que permite muitas reflexões.

Antes de mais nada, é necessário rejeitar vigorosamente o fisicalismo – ou seja, o materialismo físico-químico – implícito nessa pergunta. Já veremos o que isso quer dizer e como aplicar esse princípio geral.

Quando o Positivismo, ou melhor, a Religião da Humanidade afirma que a morte de um ser humano deve ser chamada de “transformação”, a idéia é que a morte não é um fim absoluto, como querem o materialismo e mesmo muitas versões do espiritualismo. Quando uma pessoa morre, encerra-se para essa pessoa o fenômeno biológico da vida; ou seja, as trocas contínuas entre o corpo e o ambiente, que mantêm o equilíbrio interno.

De maneira bem didática, a vida pode ser entendida como andar de bicicleta: só mantemos o equilíbrio enquanto estamos andando, enquanto estamos em movimento; o próprio movimento cria as condições para que a bicicleta mantenha-se equilibrada e em movimento. Quando a bicicleta está parada, não há condições de manter-se o equilíbrio, embora a própria bicicleta e o ambiente continuem existindo.

Quando uma pessoa morre, as trocas contínuas entre o organismo e o ambiente cessam e o equilíbrio interno deixa de existir. A bem da verdade, continuam ocorrendo trocas entre o corpo morto e o ambiente, mas não mais no sentido da manutenção de um equilíbrio interno, mas da decomposição do corpo.

Em termos biológicos, a vida pode ser entendida da forma acima. Mas em termos sociológicos e morais, a vida é algo diferente, que se baseia na realidade biológica mas que assume um aspecto bem diferente. A noção de trocas contínuas permanece, mas elas passam a ocorrer de maneira compartilhada e em termos objetivos e subjetivos. Na verdade, o compartilhamento das trocas objetivas e subjetivas é algo que se manifesta já nos animais superiores, ou seja, especialmente nas aves e nos mamíferos, e que se realiza em sua plenitude com o ser humano. (A Biologia, assim, é preparatória para a Sociologia e a Moral.)

No caso do ser humano, esse aspecto de vida objetiva-subjetiva compartilhada assume uma característica ainda mais marcada: não há propriamente indivíduos, apenas a Humanidade; embora a Humanidade só possa existir e agir por meio dos indivíduos, estes só se realizam por meio da Humanidade. Nos termos de nosso mestre, no fundo os indivíduos são uma abstração, ao mesmo tempo em que valem as palavras de Dante: a Humanidade é “filha de seu filho”.

Enquanto os indivíduos – que, para terem de fato orientação, sentido e dignidade na vida, devem ser vistos e devem entender-se como servidores da Humanidade – vivem e morrem, a Humanidade permanece e desenvolve-se com o passar tempo. Dessa forma, se a vida humana é compartilhada, é objetiva e subjetiva, se só somos o que somos, se só podemos ser o que somos na e pela Humanidade, tem de fato algum sentido dizer que a morte dos indivíduos é um encerramento absoluto?

A vida objetiva-subjetiva compartilhada significa que todos atuamos de maneira “concreta” (objetivamente) e, necessariamente, também de maneira “abstrata”, isto é, moral e intelectual (subjetivamente: afetiva, filosófica, artística). Quando alguém morre, sua atividade objetiva termina; mas sua influência permanece, seja a influência subjetiva, seja também a influência objetiva.

Então, quando alguém morre, a carne morre, mas a influência dessa pessoa não deixa de ocorrer. Se a memória permanece e se os entes que morreram continuam exercendo influência sobre nós, como é que se pode dizer que a morte é de fato um fim absoluto? O que há, portanto, é uma transformação, da vida objetiva-subjetiva para a vida plenamente subjetiva. É isso que queremos dizer com “transformação”.

Por outro lado, muitas concepções espiritualistas consideram que existe algo chamado “alma”, algo que de fato é indefinível e incompreensível; a alma seria um fantasma, ou uma fumaça, ou – como diversas teologias sugerem – um sopro, que por obra da divindade insere-se no corpo e dá-lhe vida e movimento[1]. Nessas concepções, o corpo é como que uma casca que é habitada por tal sopro, ou melhor, pela alma; é a alma que dá vida ao corpo.

Para as concepções teológicas, com a morte, isto é, com a morte da carne, a alma abandona o corpo, havendo plenamente uma dissociação. A morte aí é definitiva; a carne apodrece e nada mais resta da pessoa; o que seria a sua essência – a alma – abandona a carne e vai para algum lugar (o além) em uma existência que seria mais “verdadeira”. Há aí uma confusão entre o objetivo e o subjetivo; essa confusão é em parte ingênua, é em parte generosa (altruísta), mas em parte também é profundamente interessada (ou seja, egoísta): trata-se por um lado de desejar que os nossos entes queridos continuem existindo, ou vivendo, e, por outro lado, trata-se também do nosso próprio desejo de nunca morrermos. Qualquer que seja a motivação, a confusão entre o objetivo e o subjetivo consiste em atribuir realidade objetiva à concepção teológica e totalmente fictícia de alma; em conseqüência disso, trata-se também de atribuir existência objetiva ao “outro mundo” (cujas realidade e característica são total e necessariamente ignoradas). A concepção teológica de alma (bem como a de “além”) é totalmente subjetiva; mas atribui-se a ela uma realidade objetiva: a dificuldade toda está em desfazer essa confusão e entender o que é e como se relacionam entre si cada um desses elementos e desses âmbitos.

Vale notar que a noção teológica de alma, portanto, é a origem do famoso dualismo mente-corpo, que tantos problemas filosóficos, morais e práticos produz até os dias de hoje. Essa concepção, aliás, é atribuída a Descartes, pela qual ele é um tanto injustamente criticado: na verdade, ele só deu uma roupagem metafísica a uma concepção que na verdade é plenamente teológica.

A concepção positiva de alma rejeita a noção do sopro divino e, portanto, rejeita a dualidade corpo-alma: a concepção positiva de alma considera-a como sendo o próprio corpo, estando localizada no cérebro. Nos termos de Augusto Comte, a alma consiste no conjunto das funções cerebrais; se a alma pode ter alguma objetividade, é apenas essa.

Ainda assim, isso não encerra a questão. Se a alma é estritamente individual (e, na concepção teológica, ela é radicalmente individual), como indicamos antes a existência humana é compartilhada – e compartilhada em termos objetivos e subjetivos. Quando alguém morre, em termos positivos não se pode falar em “alma”, mas é correto e necessário falar em memória, recordação, influência... é a subjetividade atuando plenamente aí.

A Religião da Humanidade concede um peso muito grande à influência subjetiva dos servidores da Humanidade; a noção de memória não ilustra bem esse peso, pois ela é meio passiva e meio fraca; já a influência subjetiva dos mortos pode ser dispersa, mas ela tem um aspecto bastante ativo e, portanto, bastante intenso. Na verdade, embora a Humanidade só possa existir concretamente por meio dos seres humanos vivos, a atuação da Humanidade ocorre cada vez mais, sempre e necessariamente, devido à influência, devido ao peso crescente que os mortos têm sobre os vivos (e também sobre os que ainda não nasceram); é por isso que o Positivismo faz questão de afirmar e realizar o culto aos mortos e é isso que significa a famosa e bela frase de nosso mestre, “Os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos”.

Considerando tudo isso, para nós – que rejeitamos tanto as ficções teológico-metafísicas quanto o materialismo cientificista –, quando alguém morre não há separação de diferentes tipos de matéria (ou de essências); o que ocorre é, objetivamente, o fim das trocas que chamamos de vida e, subjetivamente, a afirmação da influência do morto sobre nós. É por isso que, ao tratarmos da morte, falamos mais propriamente em “transformação”.

No final das contas, resta pouco, ou melhor, não resta nada da fórmula de Lavoisier no conceito positivo de morte como transformação. A associação da transformação com a fórmula de Lavoisier talvez seja sugerida por uma interpretação fisicalista, ou cientificista, do conceito de morte como “transformação”; se é esse o caso, isso acaba sendo um bom exemplo de como por vezes é difícil superarmos determinados hábitos mentais, em particular aqueles que oscilam entre o materialismo cientificista e o espiritualismo teológico-metafísico.




[1] Claro que o sopro é sugerido pelo fato de que os seres humanos (e os animais superiores) viventes respiram, ou seja, “sopram”. Para as teologias que adotam a noção de alma e, em particular, a noção de alma como sopro, a divindade assopra a alma nos seres vivos e assim concede tanto a alma quanto a vida.

13 abril 2023

Comentários sobre o espectro da morte

No dia 17 de Aristóteles de 169 (11.4.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua sexta conferência (dedicada ao conjunto do dogma).

Antes da leitura comentada do Catecismo positivista, fizemos um complemento da homenagem aos aniversários de nascimento e de transformação de Clotilde de Vaux, ocorridos na semana anterior. Esse complemento de homenagem consistiu em recitarmos o belo poemeto de Henrique Batista da Silva Oliveira, Ave Clotilde, e também em recitarmos as sete máximas de Clotilde.

Após a leitura comentada do Catecismo positivista, dedicamos nosso sermão a alguns comentários sobre o "espectro da morte", ou seja, a algumas reflexões sobre em que consiste a morte, em termos biológicos, sociológicos e morais. As anotações que serviram de guia para nossa exposição oral estão reproduzidas abaixo.

A prédica foi transmitida nos canais Apostolado Positivista (l1nk.dev/cUSqg) e Positivismo (encr.pw/F618g). O sermão sobre o espectro da morte inicia-se em 45' 55".

ATENÇÃO: devido a um problema técnico, a transmissão no canal Positivismo foi interrompida em 1h 15' 02".

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Comentário sobre o espectro da morte

 -        Poucos assuntos são tão importantes quanto a morte

o   A importância desse tema, evidentemente, está em que todos morreremos algum dia

o   Assim, não deixa de ser um tanto paradoxal – mas não muito – que a importância da morte está em definir os limites e, por extensão, o sentido da vida

o   Como dizia Clotilde de Vaux, “Não há nada de irrevogável na vida senão a morte”

o   Se a vida fosse eterna, sem dúvida que a morte apresentaria outro valor

-        Embora uma boa seqüência para tratar desse tema fosse a sugerida pela escala enciclopédica (em particular em termos biológicos, sociológicos e morais), seguiremos aqui uma outra seqüência, para podermos abordar antes os problemas filosóficos e morais que o espectro da morte suscita atualmente no Ocidente; depois, em um viés mais claramente positivo, abordaremos o tema da perspectiva biológica e então moral

-        Apesar da importância central que a morte apresenta para todos nós, pelo menos a partir do século XX a reflexão a respeito dela tornou-se muito confusa: ou seja, não se sabe o que fazer com ou a respeito da morte

o   Essa confusão ocidental traduz-se em um intenso infantilismo a respeito da morte, que, por sua vez, é sinal de uma grande imaturidade intelectual e moral

-        Antes de mais nada, é importante termos clareza de alguns aspectos elementares:

§  Todos morreremos algum dia, mais cedo ou mais tarde

§  Podemos, e devemos, buscar viver o máximo possível

·         É claro que esse “viver o máximo possível” pode ser entendido pelo menos de três formas, ou seja, em três âmbitos diferentes: (1) viver mais tempo; (2) viver de maneira mais proveitosa; (3) viver mais “intensamente”

§  Conforme aprendemos com o Positivismo e como Augusto Comte nunca se cansou de sublinhar e reafirmar, uma realidade que em certo sentido é tão plenamente individual (a vida de nossos corpos) também é, ao mesmo tempo e até mesmo mais, plenamente social e histórica

§  O sentido da morte e da vida, então, é algo ao mesmo tempo profundamente sócio-histórico e individual

-        É evidente que a morte é um acontecimento desagradável para os envolvidos: trata-se da perda de alguém que nos é caro em termos afetivos, intelectuais e/ou práticos

o   A brevidade da vida impõe a todos a necessidade de refletir sobre o que fazer com o tempo disponível e sobre o que significa “estar vivo”; isso implica estabelecer um sentido para a vida e, daí, também um sentido para a morte

o   Talvez poucas situações mostrem tão claramente os valores e as concepções profundas das filosofias e das religiões quanto as relativas à morte; inversamente, poucas situações geram tantas reflexões e concepções que têm tantas conseqüências para as filosofias e as religiões como a morte

o   A brevidade da vida e a tragédia da morte podem ser entendidas de diversas maneiras, evidentemente:

§  Uma certa tradição, resultante no Ocidente da confluência da teologia judaica com um certo sobrenaturalismo metafísico grego, estabelece que a morte é passagem para uma outra e “verdadeira” vida

§  Mas a concepção do “além vida” não foi a primeira nem é a última que a Humanidade elaborou sobre a vida e a morte: o fetichismo e o Positivismo propõem coisas muito diferentes – mais satisfatórias, mais generosas, mais suaves

·         Essas diferentes perspectivas que variam em função dos tempos e dos lugares sugerem que é possível e, daí, que é necessário mudarmos as atuais concepções imaturas prevalecentes no Ocidentes (concepções que, além de tudo, correspondem à diluição de concepções teológicas)

-        Comecemos por uma constatação sobre a atualidade: no Ocidente temos uma atitude ambivalente ante a morte:

o   Por um lado, teme-se o evento da morte e há uma repulsa por tudo aquilo que se refere à morte, visto como macabro e/ou próprio a um suposto culto da morte;

§  Muitas vezes se assume uma perspectiva metafísica, em que a morte é encarada como uma abstração personificada

o   Por outro lado, como não poderia deixar de ser, é a morte que dá sentido à vida e, considerando o cristianismo, a morte é o momento de passagem para o “além”

-        Em termos históricos, o temor da morte tem crescido à medida que a ocorrência da morte afasta-se cada vez mais de nós: em outras palavras, à medida que a expectativa de vida aumenta, que a taxa de mortalidade infantil cai, que as guerras diminuem em quantidade e em mortes, que a qualidade de vida aumenta

o   Em outras palavras, à medida que a morte afasta-se do nosso cotidiano, passamos a encará-la com horror, como se morrer fosse antinatural – isto é, como se, além de um desastre, ela fosse também plenamente evitável

o   Essa repulsa da morte vincula-se não apenas a um hedonismo individualista, mas também a uma repulsa ao envelhecimento (e aos idosos) e, assim, a uma concepção mistificada da “eterna juventude”

-        A secularização do Ocidente tem afastado as pessoas das crenças cristãs de vida após a morte; mas, ao mesmo tempo, a secularização também tem estimulado (vinculado em parte a um certo ateísmo de fundo, em parte à ideologia estadunidense) o individualismo

o   Sem que se deixe formalmente de lado uma eventual crença na vida após a morte, a secularização individualista conduz a atitudes hedonistas e quase niilistas, em interpretações cada vez mais superficiais do carpe diem

o   Ainda assim, apesar do hedonismo individualista secularizado, a morte continua sendo o destino de todos nós e, portanto, a avaliação sobre o que fazer de nossas vidas e sobre qual o sentido da vida e da morte permanece como uma questão central para todos, mesmo que seja uma questão implícita

-        A ambigüidade atual do Ocidente em face da morte na verdade atualiza – e, portanto, mantém sob outros aspectos – uma ambigüidade estabelecida anteriormente pelo cristianismo

o   Embora o cristianismo considere que a morte é a passagem desta vida para uma suposta vida melhor e “mais verdadeira”, ao mesmo tempo ele considera a morte um momento absoluto de término

o   Essa concepção cristã de que a morte é um término e que, portanto, apresenta um certo caráter absoluto vincula-se ao raciocínio fundamental da teologia, segundo o qual a matéria é inerte e somente se torna ativa por obra e graça de uma força externa (no caso, a divindade, por meio do “sopro divino”, ou da “alma”)

§  Assim, para o cristão, quando uma pessoa morre, é o sopro divino, ou a alma, que sai do corpo: o corpo perde seu laço com a divindade e torna-se apenas um pedaço de carne cujo destino é o apodrecimento

o   Vale notar que, se fôssemos incapazes de perceber na atitude ocidental atual um espírito metafísico, esse caráter seria evidenciado pelo simples fato de que essa atitude atual é a versão corrompida de concepções teológicas

o   A teologia, ao pressupor uma “vida além da morte”, é vaga e arbitrária em suas concepções:

§  Ela é vaga porque, se houvesse uma tal vida, ninguém nunca voltou dela para esta vida e, portanto, ninguém pode dizer com clareza em que ela consistiria

§  Ela é arbitrária porque, não tendo nenhum parâmetro para defini-la, a vida após a morte é caracterizada segundo a imaginação da pessoa, do lugar e da época em questão

·         A tradição cultural atenua um pouco esses defeitos, mas o fato é que, no final das contas, o caráter puramente imaginativo das características mantém a vagueza e a arbitrariedade

§  Além disso, é digno de nota que mesmo os teológicos os mortos não com um apelo à sua situação na vida após a morte, mas efetivamente por meio da memória de suas atividades nesta vida: em outras palavras, mesmo apelando para uma suposta vida após a morte, os teológicos honram o caráter humano dos mortos e de suas vidas

-        O fetichismo e o Positivismo, em contraposição, estabelecem que a matéria é naturalmente ativa; assim, os corpos não necessitam de intervenções externas para serem ativos

o   Dessa forma, quando alguém morre, a atividade do corpo não cessa, mas ela modifica-se

o   Mas o que é a “morte”? A morte é a cessação dos fenômenos biológicos, ou seja, das constantes trocas (mutuamente modificadoras) entre o corpo e o ambiente

§  Mas, ainda assim, o corpo sem atividades biológicas continua em atividade em outros âmbitos

o   Dessa forma, a morte não é propriamente um fim: ela corresponde a uma transformação

o   O corpo que não abriga mais uma atividade biológica específica do próprio corpo mantém-se ativo em outros âmbitos; como o Positivismo e o fetichismo consideram que não há separação entre corpo e “alma”, o corpo sem vida não é apenas um pedaço de carne a apodrecer

·         No que se refere à “alma”, o Positivismo define-a como sendo o conjunto das funções cerebrais

§  Esse corpo é parte integrante fundamental da pessoa que morreu e cuja relação com o ambiente está modificada (em certo sentido, está diminuída; mas, em outro sentido, está aumentada)

-         As concepções acima explicam e justificam o culto aos mortos, tanto no Positivismo quanto, antes, no fetichismo

o   O culto aos mortos, portanto, não tem nada de macabro; não se trata de culto à morte, mas de lembrança sistemática e sistematizada de quem morreu

o   As concepções acima também justificam plenamente o nome do oitavo sacramento positivista: a “transformação

o   Vale lembrar que o culto aos mortos, no âmbito do cristianismo, é incoerente em relação ao seu dogma e dá-se devido à permanência de hábitos fetichistas e/ou à intuição do valor desse culto

-        De maneira mais específica, a transformação que ocorre com a morte, no Positivismo, consiste no seguinte:

o   Evidentemente, a mudança no estado geral de atividade do corpo, em que há uma diminuição nessa atividade (em termos biológicos)

o   Mas, por outro lado e de maneira mais importante, a vida objetiva cede lugar à vida subjetiva; a atividade concreta (especialmente cívica) cede lugar à atividade abstrata (diretamente afetivo-intelectual); a participação na solidariedade do presente cede lugar à continuidade na história

o   Dessa forma, o Positivismo considera não apenas que a morte corresponde a uma transformação, como também afirma que há, sim, uma vida após a morte: entretanto, a concepção positiva de “vida após a morte” estabelece que temos uma vida subjetiva após a morte

§  Em vez de aumentar a distância, a vida subjetiva após a morte aproxima de cada um de nós os entes queridos que sofreram a transformação

o   Vale a pena recordar e insistir: a concepção subjetiva de vida após a morte é clara e bem definida; em contraposição, a concepção objetiva, absoluta, teológico-metafísica de vida após a morte é imprecisa, extremamente vaga (não se sabe exatamente o que seria) e profundamente arbitrária (afinal, não tem nenhum parâmetro verdadeiro, exceto variações da presente vida)

-        Como se sabe, a vida subjetiva após a morte, realizada em particular no culto aos mortos, apresenta uma série de importantes conseqüências morais, intelectuais e práticas:

o   Define com clareza o sentido da vida de cada um de nós, sem cair nem no individualismo nem no hedonismo

o   Vincula cada um de nós ao conjunto dos seres humanos, ou seja, estabelece de maneira profunda o sentido de pertencimento

o   Torna a vida e a morte racionais e orientadas para um propósito moral e intelectualmente verdadeiro, bom e belo

o   Estabelece uma recompensa altruísta para os esforços contínuos de cada um de nós

§  Assim, estabelece parâmetros claros para a orientação e a avaliação da vida de cada um de nós

o   Diminui a dor da perda dos nossos entes queridos (e/ou importantes), quando de suas mortes

§  Assim, diminui o trauma de cada um de nós perante essas mortes e evita todo e qualquer desespero

o   Aproxima-nos do convívio com os mortos por meio da vida subjetiva, sem que isso se degrade em um culto macabro ou em um culto metafísico à “morte”

§  No caso das doações de órgãos, a vida do doador em certo sentido mantém-se por meio de quem recebe os órgãos: além de isso consistir em um forma objetiva e subjetiva de compartilhar a vida, também significa a única forma racional e possível de ocorrer o quimérico ideal teológico da ressurreição

§  Assim, diminui o trauma de cada um de nós perante essas mortes e evita todo e qualquer desespero

o   Estimula diretamente o altruísmo, desenvolve nossos pendores artísticos, aperfeiçoa nossa capacidade de idealização, desenvolve nossos pensamentos e, last but not the least, melhora nossos esforços práticos

§  Vale notar que todos esses esforços alteram – para melhor – a anátomo-fisiologia cerebral e, daí, de todo o nosso corpo

o   Deve ser claro para qualquer pessoa que esse conjunto de conseqüências estimula diretamente a harmonia coletiva e individual

§  Todavia, vale notar que essas concepções distanciam-se não apenas das concepções próprias à teologia, como também se distanciam das superficiais concepções vigentes atualmente no Ocidente, tão marcadas pelo individualismo, pelo hedonismo, pelo niilismo criptocristão – e pelo horror à morte