29 junho 2018

Burrice acadêmica e materiais didáticos de Ciência Política


Para ver-se como o sistema de avaliação da produção científica brasileira pode ser profundamente BURRO:

Nos últimos anos eu tive a honra e a felicidade de redigir dois livros didáticos (para a editora Intersaberes):

- um deles, Introdução à Sociologia Política, é um volume enorme, com 412 páginas e o mais completo manual de introdução à Sociologia Política existente em língua portuguesa;

- o outro, Pensamento Social e Político Brasileiro, é um manual de introdução à teoria política elaborada no Brasil, organizando-a em três grandes “famílias” intelectuais (de acordo com a relação que os autores estudados indicam entre o Estado e a sociedade).

Tenho muito orgulho desses livros, não somente porque são realizações intelectuais importantes por si sós, mas porque são livros que sistematizam temas e discussões que, no Brasil, costumam ser muito dispersos. Assim, são convites, portas de entrada e guias para todos os interessados - e por “todos os interessados” quero dizer exatamente isso: público em geral, estudantes de graduação, estudantes de especialização, estudantes de mestrado, estudantes de doutorado, professores, gente de outras áreas.

Pois bem. A avaliação científica no Brasil ocorre sob a coordenação da Capes, que é um órgão vinculado ao MEC. A Capes tem em seu interior inúmeros comitês de área: Medicina tem pelo menos três comitês (devido à quantidade de especializações), as Engenharias têm também pelo menos três comitês e assim por diante.

Gozando de uma necessária e correta autonomia intelectual, cada comitê elabora e aplica os próprios critérios para avaliação da produção científica. Esses critérios referem-se a classificações gerais elaboradas pela Capes para avaliar revistas científicas e também livros. No caso dos livros, a hierarquia vai de L1 (livros ruins) até L4 (livros de excelência).

Entre os vários comitês, há o de Ciência Política e Relações Internacionais. Esse comitê decidiu que os livros didáticos de Ciência Política e Relações Internacionais, bem como os de áreas vinculadas, como Sociologia Política e Pensamento Político Brasileiro, devem todos eles ter notas L1 e L2.

O que isso quer dizer? Quer dizer que, para o comitê da área de Ciência Política e Relações Internacionais que avalia a produção nacional de Ciência Política e Relações Internacionais (e campos relacionados), a produção de material didático não é importante.

Em outras palavras, para o dito comitê, produzir livros que visem a educar a população brasileira, que visem a sistematizar o conhecimento da área (extremamente disperso e fragmentado, diga-se de passagem), que visem a auxiliar o grosso da população a entender um pouco o que é a política brasileira; enfim, produzir livros que tenham uma certa utilidade social mais ampla não é importante nem é relevante. Sendo mais direto: para o dito comitê, produzir livros didáticos é perda de tempo.

Para mim, isso é escandaloso. E, claro, mostra o quanto a avaliação da produção científica pode ser burra - mesmo a avaliação da produção científica daqueles que querem palpitar sobre as políticas públicas, incluindo aí as políticas (alheias) de produção científica.

No exterior (Estados Unidos e Europa), a produção de livros didáticos é imensa - mesmo que sob a forma de “enciclopédias” e de “manuais”: todas as principais editoras (comerciais e universitárias) têm suas próprias enciclopédias e seus manuais das mais diversas áreas do conhecimento.

Um exemplo banal da importância dos livros didáticos de Ciência Política, para além das salas de aula: a utilidade de livros didáticos sobre Sociologia Política, História Política, Idéias Políticas etc. em uma época que se caracteriza pelas fake news está, ou deveria estar, fora de questão.

Por fim, mas não menos importante, convém notar que, supostamente, ninguém deseja que a Sociologia saia do currículo do Ensino Médio nem, por extensão, dos vestibulares. Mas, ainda assim, a produção dos recursos didáticos adequados a esse ensino e que, de qualquer maneira, sistematize a fragmentação e a dispersão das Ciências Sociais - isso é visto como perda de tempo. Não é necessário ter o título de doutor para perceber que há alguma coisa muito errada aí.

Outros comitês de área avaliam a produção de materiais didáticos de outras formas. Felizmente há quem leve a sério a educação, a qualidade dos debates públicos e o futuro do país.

20 junho 2018

Ivan Lins: "Sobre o 'Ordem e Progresso', de Gilberto Freyre"

O sociólogo Gilberto Freyre, que adaptou para o Brasil algumas técnicas antropológicas dos EUA ao descrever em detalhes a intimidade da sociedade colonial brasileira, publicou no final dos anos 1950 um livro chamado Ordem e Progresso.

Embora G. Freyre reconhecesse que seus informantes podiam ter suas memórias alteradas pelo tempo e pela afetividade, em vários casos tomou as recordações alheias ao pé da letra, como se fossem a descrição da verdade - e sem se preocupar em verificar se as afirmações obtidas correspondiam ou não à verdade.

Assim, nesse livro ele reproduz, chamando de "interessantíssimo", o relato de um monarquista idoso e ressentido, que narra uma história que poderia detratar a ação política de Benjamin Constant, o fundador da República.

Pois bem: Ivan Lins - o historiador, não o cantor - publicou um artigo em que comenta criticamente a história publicada e o procedimento de Gilberto Freyre, notando o quão injuriosos e incorretos eles foram.

Graças à internet e à digitalização de documentos, é possível (re)ler essa notável réplica de Ivan Lins. Ela foi publicada na revista História, da Universidade de São Paulo, em seu v. 24, n. 49, de 1962, e pode ser lida aqui.