O texto abaixo é a versão escrita e estendida de anotações que o meu querido amigo e correligionário Hernani Gomes da Costa leu no dia 1º de janeiro de 2022, como uma celebração da Festa Geral dos Mortos (ocorrida na véspera, no dia 31 de dezembro). Tal celebração ocorreu no lançamento da Rede Humanidade, iniciativa informal de Érlon Jacques de Oliveira.
As anotações abaixo servem de registro biográfico e também institucional de algumas das figuras mais belas e mais emblemáticas da Igreja Positivista do Brasil (IPB), entre as décadas de 1980 a 2000, e que revelam também o quanto o Positivismo pode ser, e de fato é, uma fonte de beleza, de ternura e de energia para o congraçamento e a melhoria da Humanidade.
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Figuras da Igreja Positivista do
Brasil com quem convivi
Celebração da Festa Geral dos Mortos
(1.1.2022)
Hernani Gomes da Costa
Quero dedicar este
momento de gratidão à celebração da memória de alguns dos amigos e amigas que
eu conheci do Templo da Humanidade, da Capela da Humanidade e do Centro
Positivista do Paraná. Embora não mais se achando objetivamente entre nós, eles
estão bem vivos em mim, na lembrança que tenho das imagens deles, nos doces
sentimentos que estas evocam e nos hábitos que eu preciso imitar se quiser ser
tão feliz como eles foram nessa existência tão rica quanto sóbria a que o Positivismo
nos convida ao mais completo e perfeito desfrute e que a morte mesma só faz
avivar.
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Stella da Cunha Santos: Aquela cuja fala pausada e calma fazia-me prestar uma atenção dupla a
cada vírgula do que me dizia (aliás nunca antes vírgulas puderam ser tão
audíveis...). É também aquela com quem eu busco obter a virtude dessa
serenidade que nada tem de fria e distante, assim como a aguda penetração
psicológica que só possuem aqueles que se inclinam a ouvir com respeito o que
uma outra alma tem a dizer, por mais tolo ou incompreensível que a princípio
nos pareça.
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Beatriz Torres Gonçalves, a Bia: jamais eu vi em outro rosto humano uma expressão tão gentil e que eu
diria mesmo parecer haver se fixado, de tão habituais tornaram-se nela os
exercícios dos músculos que à essa terna alegria correspondem. Dela eu busco
obter (no que me couber) a exuberância de uma vitalidade que parecia
transcender à fragilidade de um corpo de mais de 90 anos.
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Wally Leal Freire de Souza: a pequena, bem humorada e por vezes rascante professora de música,
cuja fala lembrava uma rápida sequência de minúsculas explosões, vindas de
alguma artilharia de brinquedo; é também aquela de quem eu espero poder obter
toda a inquebrantável altivez caso a vida me empurre a situação de ter de
enfrentar, como essa corajosa mulher o fez, algum mal corpóreo incurável que
não me permita senão um último ano de vida.
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Sofia Torres Gonçalves, a irmã da Bia. Ela era de uma vozinha quase inaudível, um sussurro
emanado de um corpo cuja severa e dolorosa escoliose eu logo me encarreguei de
livrá-la na construção da imagem interior que dela formei, mesmo antes de sua
transformação (e sem que a ausência desse estorvo oferecesse o menor prejuízo à
realidade de sua vida subjetiva). Se da Wally eu obtive a coragem frente ao
abalo de uma surpresa fatal, da Sofia eu obtive o exemplo complementar da
resignação, diante de um longo convívio com limites físicos que, sem provocarem
a morte ou encurtarem a vida, colocam-nos frente a única alternativa honrosa de
aprender a melhor nos adaptarmos a eles pelo único caminho do suportar.
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Tasso Bolívar Garcia Paula. O maior contador dos “causos” humorísticos e pitorescos de nossa Igreja,
aquele que vendo em mim uma esperança apostólica, me proveio de um subsídio
mensal tão logo eu comecei a realizar as prédicas dominicais. Um episódio
tocante permitirá mostrar como era o seu carinho pela obra e pela pessoa de
Comte. Certa vez ele declarou a mim que sempre foram muito difíceis os seus
estudos da doutrina, através das leituras da Filosofia e da Política
positiva, revelando-me também que certas passagens (e às vezes páginas
inteiras consecutivas) escapavam-lhe totalmente à compreensão. Ele porém dizia
que, mesmo assim, não se arrependia desse seu estudo, uma vez que também
podemos sentir toda a beleza do canto de um pássaro sem no entanto compreender
uma só palavra do que ele esteja querendo dizer.
-
Henrique Batista da Silva Oliveira, o
Almirante Henrique, a quem eu encontrava no Clube Positivista,
onde conversávamos longamente sobre a doutrina. Ele foi, ao que eu saiba, o
nosso último confrade a receber o sacramento da destinação paramentado como
aspirante ao apostolado da Humanidade. Foi a pessoa com quem eu mais me senti
seguro em tudo o que se refere à formação teórica do Positivismo. E aquele
portanto a quem, mesmo sem saber, eu gostava de me espelhar em todas as
ocasiões em que se faziam necessárias exposições sintéticas do conjunto da doutrina.
Sua personalidade dava-me uma sensação única de estar sobrepairando bem acima
dos problemas do tempo presente. Jamais me foi possível ver tão bem combinados
como em sua conversa o caráter solene de um assunto com o tom jovial de um
simples e despretensioso bate-papo informal. Havia mesmo nele um certo sorriso
de Gioconda e que o fazia parecer estar falando da glória a que está reservada
a Humanidade nos tempos futuros, não como um teórico, mas como se ele próprio
fosse um de seus habitantes, que nos houvesse voltado ao passado para nos dar
mais uma chance. Devo confessar que ainda estou bem longe de aprender como é
que se faz isso...
-
Rubem Descartes de Garcia Paula, a única pessoa nascida no século XIX que eu conheci em minha idade
adulta; nós éramos unidos por uma ciência cultivada em comum – a Química – de
onde ambos obtivemos os mais diretos subsídios teóricos para alcançar o estado
positivo do entendimento. Seu livro Religião,
uma criação da Humanidade, que eu li antes mesmo de minha primeira visita
ao templo (livro que foi um dos pouquíssimos a manter o interesse do meu pai
além da página cinco), proporcionou-me uma impressão que só hoje, enquanto
escrevo essas linhas, pude notar como importou para o meu desejo de conhecer
mais a fundo o Positivismo. Seu
Descartes foi para mim o primeiro autor positivista contemporâneo a escrever
(com a leveza e o frescor de um escritor contemporâneo) sobre a nossa doutrina,
o que me permitiu num momento decisivo de minha formação reconhecer, já a
partir do estilo, antes mesmo que pelo conteúdo, toda a atualidade da Religião
da Humanidade, e que uma obra mais antiga talvez não me pudesse evidenciar.
-
Ruyter Demaria Boiteux, o médico com quem eu conversava sobre assuntos biológicos, foi o ser
mais próximo da santidade que eu tive a ventura de conhecer na Igreja.
Condecorado por heroísmo ao conseguir extrair um projétil explosivo da perna de
um soldado, poupando-o da amputação, ele dedicava como médico boa parte de suas
horas de trabalho a atendimentos gratuitos de quantos chegassem ao consultório.
Seu bom humor auxiliado por uma generosa expressividade mímica eram tão
envolventes e a medicina compunha de tal modo o seu ser que, ao conversar com
ele, tinha-se a sensação de um vigor salutar renovado, de se estar falando mais
rápido, respirando melhor e mesmo sacudindo partes do corpo que até então
manteríamos prudentemente quietas.
-
Mozart Pereira Soares. Financiado pelo Doutor Ruyter, eu viajei à Capela da Humanidade para
integrar aquele que seria o penúltimo encontro anual de positivistas; de que
ele, Ruyter, fôra sempre o seu esteio. E foi na casa do Professor Mozart que eu
e um outro confrade, Arthur Virmond de Lacerda, nos hospedamos por toda a
duração do encontro, que embora breve, bastou para que eu obtivesse da
amistosidade de seu caráter e de sua vasta erudição uma impressão perene junto
a todas as demais pessoas aqui retratadas e com quem eu convivi por tão mais
tempo. O meu carinho e respeito por ele tem um sabor todo especial, tendo o
Professor Mozart me convidado para assistir ao filme do Batman (aquele contra o
Pinguim), ocasião em que ele não perdeu nenhuma oportunidade de tecer
considerações éticas às principais situações de sua trama.
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Paulo de Tarso Monte Serrat, O psiquiatra paranaense que anualmente vinha nos brindar com suas
práticas calorosas, sempre de grande impacto emocional. Dono de uma voz
privilegiada, que conseguia a um tempo ser alta sem tornar-se agressiva e grave
sem tornar-se lúgubre; suas conferências eram a ocasião esperada em que se
podia experimentar todo o prazer das reverberações acústicas do Templo da
Humanidade e cuja eficiência parecem desafiar as leis da Física. Ele era a meu
ver o único confrade a fazer do otimismo diante da vida e das pessoas a sua
principal plataforma religiosa. Por vezes somos, como positivistas, seduzidos a
um perigo moral que consiste em acabarmos transformando o nosso amor à
Humanidade numa falsa justificativa com a qual chegamos ao paradoxal resultado
de gostar mais da Humanidade do que de gente. Contra esse perigo, as prédicas
do Doutor Paulo de Tarso funcionaram sempre, e antes de tudo, como um santo
remédio.
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Alfredo de Moraes Filho: foi, de todos os vultos aqui retratados nestas brevíssimas pinceladas,
aquele com quem eu convivi de mais perto e por mais tempo, juntamente com sua
esposa, Ondina de Moraes. Seu temperamento enérgico porém não era de molde a nos
permitir grandes aproximações. E se por um lado essa acolhida parcimoniosa e
mesmo permanentemente desconfiada pôde ter servido como um filtro que evitou
tanto quanto possível franquear-se a Igreja a todo tipo de pessoa, também
infelizmente acabou isolando-a do mundo atual, em oposição ao que mais
desejariam os apóstolos Miguel Lemos e Teixeira Mendes. Guardo dele, porém, a
imagem daquele que, depois dos dois apóstolos, foi, ao meu ver, quem mais se
dedicou e se sacrificou pela Igreja e pelo movimento positivista, inclusive em
tempos de repressão política; onde a campanha do “Petróleo é Nosso” irmanou
comunistas e positivistas num aspecto comum do trabalho de ambos em prol de um
mundo mais justo.
Faltam algumas
outras pessoas que o tempo de que disponho não me permite acrescentar aqui
senão os nomes, mas sobre as quais eu teria tanto a dizer quanto já o fiz: Ondina
de Moraes; Francisco Ribeiro Dantas; Ângelo Torres; Jorge Torres Gonçalves;
Júlio Costa e Tales de Muriaé Garcia Paula.