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02 março 2022

Alguns comentários sobre a invasão russa contra a Ucrânia

A guerra da Rússia contra a Ucrânia começou na noite de 23 para 24 de fevereiro de 2022, após semanas de aumento de tensões e de ameaças russas contra a Ucrânia. Como não poderia deixar de ser – em particular nesta época de notícias e opiniões difundidas em tempo real –, isso deu azo às mais diversas perspectivas; como, por outro lado, a análise do conflito depende precisamente das perspectivas adotadas, convém tecermos algumas considerações a respeito de algumas delas.

À parte o antiamericanismo dos (cripto)comunistas, muitas pessoas razoáveis têm sido ambíguas a respeito da invasão da Ucrânia ao adotar o curioso realismo à la Henry Kissinger[1], dizendo que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) expandiu-se de maneira irresponsável entre os anos 1990 e 2020, irritando e “atemorizando” (!) cada vez mais a Rússia.

Ora, Letônia, Estônia, Lituânia, Hungria, Polônia[2]: todos esses países e diversos outros foram atrás da OTAN, em vez de terem sido buscadas pela organização. Esses países buscaram a OTAN não para “provocar” a Rússia, mas, muito ao contrário, por um medo histórico desse país – aliás, tão histórico quanto as alegadas relações umbilicais entre Rússia e Ucrânia.

A Ucrânia quer aderir à OTAN simplesmente porque tem medo – cada vez mais justificado – da Rússia. E a invasão da Criméia em 2014 parece que não ocorreu e que não foi um ato violentíssimo, praticado pela “irmã” Rússia. Se antes de 2014 o desejo ucraniano de ingresso na OTAN talvez pudesse ser condenado em termos do “realismo” de Kissinger, o fato é que após a tomada da Criméia essa condenação tornou-se mera figura de retórica e o medo ucraniano da prepotência russa (e não o contrário) tornou-se mais real do que nunca.

Da mesma forma, um dos argumentos para tentar-se justificar a invasão da Ucrânia – que, cada vez mais, evidencia que terminará por destruir o país em termos geográficos, políticos, econômicos e sociais – são os laços étnicos entre Rússia e Ucrânia. Isso não é desprezível, evidentemente. O problema é que esse argumento tem sido mobilizado para justificar a invasão (e a destruição) da Ucrânia pela Rússia; mais do que isso: o argumento da fraternidade étnica tem sido usado para negar aos ucranianos o direito soberano de decidirem coletivamente o que fazer de suas próprias vidas. Moldávia, Irlanda, Macedônia do Norte etc. etc. mais ou menos têm o direito à autodeterminação, a despeito de evidentes e seculares vínculos com outros países; mas à Ucrânia esse direito é negado.

Por fim, vale notar que, no caso da Polônia e da Hungria, por mais que desde há uns dez anos sejam países autoritários de extrema direita e próximos à Rússia, nem por isso abandonam a OTAN. O “realismo” pelo jeito vale para a Ucrânia e só para a Ucrânia – mas não para os outros.



[1] Cf.: Henry Kissinger, “How the Ukraine Crisis Ends” (The Washington Post, 6.3.2014) – https://www.henryakissinger.com/articles/how-the-ukraine-crisis-ends/.

[2] A relação dos estados-membros da OTAN e seus respectivos anos de ingresso na organização podem ser vistos aqui: https://es.wikipedia.org/wiki/OTAN#Estados_miembros.