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09 abril 2021

Mais um capítulo sobre algo chamado "Auguste Comte"

A postagem abaixo é uma versão modificada de cartas (mensagens eletrônicas, na verdade) que enviei previamente às organizadoras do volume e à autora do capítulo que comento abaixo. Os problemas que indicam são sérios o suficiente para eu tornar públicas minhas observações; em última análise, o que está em jogo é a correção intelectual a respeito de Augusto Comte e do Positivismo.

 

*  *  *

 

Comprei há alguns dias o volume Os sociólogos, publicado em 2018 pelas editoras Vozes e PUC-Rio e organizado pelas professoras da PUC-Rio Sarah Silva Telles e Solange L. Oliveira. A proposta do livro é bastante interessante, ao apresentar as idéias de vários sociólogos que escreveram desde a fundação da Sociologia por Augusto Comte, no século XIX, até os dias atuais; além disso, todos os capítulos seguem a mesma estrutura formal.

 

Na verdade, comprei o livro interessado no capítulo sobre Augusto Comte; li-o com atenção, mas, à medida que o fazia, ficava cada vez mais riste e estarrecido. A autora, a professora aposentada da Ufpel Maria Thereza Rosa Ribeiro, produziu um capítulo assustador, caracterizado pelo mais profundo espírito “crítico”, isto é, pelo mais profundo espírito destruidor e, em particular, em que “criticidade” equivale a falar mal.

 

Na verdade, as próprias referências bibliográficas que ela cita indicam esse desejo destruidor, baseado largamente em diversas versões do marxismo: T. Adorno e H. Marcuse, Florestan Fernandes e Anthony Giddens, W. Lepenies e Lelita Benoit, além de muitos livros da própria Profª Ribeiro. Apesar de a Profª Ribeiro afirmar que o Positivismo é “conservador” e até “mistificador”, os autores que indiquei acima é que mistificaram em inúmeras ocasiões alegre e violentamente o Positivismo, Comte e a compreensão que se tem dele. A Profª Ribeiro poderia, é claro, ter citado muitos outros autores, verdadeiramente conhecedores da obra de Comte, como Mike Gane, Laurent Fedi, Angèle Kremer-Marietti, Pierre Arnaud, Michel Bourdeau, Sérgio Tiski, Johan Heilbron, Frédéric Keck, Juliette Grange e até o Raymond Aron, além de mais obras de Annie Petit; ou, então, Miguel Lemos e Teixeira Mendes, fundadores da Igreja Positivista do Brasil e que têm, de cada um, apenas uma referência citada, embora eles tenham escrito mais de 500 títulos!

 

A escolha dos autores citados – que raramente eram especialistas em Comte – e a dos não citados – estes, sim, realmente “especialistas em Comte”[1] – evidencia o quanto foram infelizes as escolhas da Profª Ribeiro para tratar do fundador da Sociologia, da Sociologia das Ciências, do Positivismo e da Religião da Humanidade. Embora a Profª Ribeiro tenha repetido, no final do capítulo, a mistificação autocongratulatória de Giddens a respeito da “Sociologia reflexiva”[2], isto é, de uma Sociologia da Sociologia, eu devo admitir que esse capítulo é uma pequena pérola da “criticidade”, bem como profundamente reveladora dos hábitos intelectuais e institucionais que caracterizam as redes de sociólogos no Brasil.

 

As citações feitas de Comte em si mesmas são mais ou menos corretas, mas mais ou menos apenas repetem o mesmo que todos os manuais (re)publicados no Brasil citam dele há muito tempo, especialmente com a incorreta e indevida ênfase no Sistema de filosofia positiva (1830-1842), poucas referências ao Sistema de política positiva (1851-1854) e nenhuma citação da Síntese subjetiva (1856), além de muitas citações de obras menores (e mais “fáceis”) de Comte, em particular o Discurso sobre o espírito positivo (1847) e o Catecismo positivista (1853). Tanto nessas citações quanto nos comentários da Profª Ribeiro, o que importa de Comte, tanto para o próprio Comte quanto para a Sociologia, é desprezado; é claro que esse desprezo é motivado pela ideologia de quem escreve e porque é mais fácil repetir citações arquiconhecidas que explorar o extremamente denso pensamento comtiano. Devemos também levar em consideração que a ideologia dos autores realmente pesa muito aí; enquanto autores como – não por acaso – Marx são tratados com enorme respeito e suas mínimas letras são exploradas no esforço exegético, no caso de Comte essa generosidade e esse cuidado são rejeitados: como eu observei, isso está claro de maneira exemplar nos livros Adorno e Marcuse, nos de Florestan Fernandes e Giddens, chegando a cúmulos de veneno nos de Lepenies e Benoit. Dois pesos e duas medidas: “criticidade” demais contra Comte, respeito venerador a favor de Marx... sobra criticidade, falta “reflexividade”[3].

 

(Ainda assim, é notável o quanto o historiador marxista Mario Maestri elogia a atuação dos positivistas no Brasil... isso torna ainda mais estranhas as afirmações de que o Positivismo seria “conservador” e não “reflexivo”.)

 

Assim, embora eu mesmo tenha uma larga produção dedicada ao exame, à exposição e à aplicação das idéias comtianas e do Positivismo, tenho que me resignar com o fato de que não tenho uma série de predicados característicos da Profª Ribeiro, compartilhada por outros autores do livro em questão: não sou “crítico” (isto é, em particular, não sou marxista e ainda carrego – com orgulho, devo admitir – o que a academia brasileira considera um xingamento: sou “positivista”); não sou professor (sou apenas um sociólogo profissional da UFPR, com doutorado em Sociologia Política e meros dois pós-doutorados, em Teoria Política e Filosofia das Ciências); não iniciei minha carreira nos anos 1980 ou antes (comecei minha graduação em 1995 e terminei o doutorado em 2010).


Para concluir, três observações:

  1. Embora esteja na moda a Sociologia “decolonial”, no Brasil adotamos desde há uns 40 anos o infeliz hábito de não traduzir mais os nomes de línguas estrangeiras. Entretanto, Comte é chamado desde o século XIX de Augusto Comte, não Auguste Comte; os positivistas fomos alguns dos primeiros a devidamente aportuguesar o nome do fundador da Sociologia, em um uso que era corrente no país até pelo menos os anos 1960. É estranho ver que sociólogos “críticos” desprezam um hábito secular e revertem para uma prática contrária à nossa autonomia mental e política.
  2. Em um hábito que se iniciou igualmente já no século XIX, o adjetivo relativo a Comte é “comtiano”, não “comteano”, como empregado no capítulo que comentamos. Provavelmente o “comtiano” deve-se à pronúncia carioca dessa palavra, mas, enfim, não há problema nisso; já virou hábito consagrado e tornou-se o padrão.
  3. Já em 1848, no Discurso sobre o conjunto do Positivismo, Comte dizia que a obra anteriormente chamada de Curso de filosofia positiva deveria ser chamada doravante de Sistema de filosofia positiva: adotar “Sistema” e não “Curso” corresponde ao mesmo tempo a conhecer e a respeitar a obra do autor.



[1] Ponho entre aspas a expressão “especialistas em Comte” porque, como é evidente para qualquer conhecedor da obra do fundador da Sociologia, uma das principais funções da Sociologia é servir de fundamento para concepções gerais (e científicas) sobre a realidade, afastando-se portanto das especializações (acadêmicas) e dos particularismos (políticos). A idéia de “especialistas” no âmbito do Positivismo, portanto, apresenta uma ambiguidade (que de resto é proposital): por um lado eles são necessários para o avanço das pesquisas científicas, mas, por outro lado, devem necessariamente se submeter às vistas gerais – que se baseiam na Sociologia e que são ampliadas e sistematizadas precisamente pelo Positivismo, na forma de um novo poder Espiritual (humano, positivo, altruísta, histórico e relativo). Não por acaso, essa idéia não está presente no capítulo redigido pela Profª Ribeiro.

[2] O sociólogo inglês Anthony Giddens afirma desde há muitos anos que ele criou uma Sociologia “reflexiva”, claramente dando a entender que os sociólogos anteriores a ele e aqueles que não compartilham de suas reflexões não seriam “reflexivos”, isto é, não seriam capazes de refletir sobre a própria prática sociológica, suas origens, suas limitações, suas condições, suas possibilidades etc. Parece claro o quanto essa concepção de Giddens é extremamente arbitrária, histórica e teoricamente errada (e injusta!) e no fundo serve apenas para ele envaidecer-se bastante e ser mais citado.

Na verdade, como eu demonstrei em um artigo de 2009, a exposição que Giddens faz das idéias de Augusto Comte é extremamente preconceituosa, enviesada e errada; chega a ser assustador o quanto o que ele expõe da obra comtiana diverge radicalmente do que o próprio fundador da Sociologia escreveu.

[3] O problema não está na veneração a Marx nem no cuidado da exposição de seu pensamento, mas (1) no desrespeito sistemático e interessado contra Comte e (2) na prática hipócrita, cínica e desinformadora de aplicar-se dois pesos e duas medidas, conforme o gosto e a ideologia do autor de cada texto.

04 abril 2017

25 outubro 2012

Historicidade da lógica positiva (objetividade+subjetividade)


A passagem abaixo evidencia o quanto a lógica positiva, que combina a objetividade com a subjetividade, é histórica. Mas “histórica” não no sentido de ser passageira, fugaz: histórica no sentido de que exigiu uma série de preparações intelectuais, morais e políticas para constituir-se. Por um lado, foi necessário que a objetividade das ciências naturais conhecesse o mundo e controlasse a subjetividade humana; por outro lado, a criação da Sociologia permite que a subjetividade torne-se relativa e incorpore a afetividade.
Assim, a historicidade da lógica positiva evidencia o quanto o “historicismo radical” contemporâneo, que afirma que há apenas rupturas históricas e que o ser humano é incapaz de acumular idéias e de transmitir valores, é falho.

Ao mesmo tempo, a lógica positiva afirma que os conhecimentos humanos devem ter um caráter sintético: não há “ciências históricas” (ou “ciências do espírito”) em contraposição às “ciências naturais”; há o conhecimento humano, que começa objetivo e analítico e, ao chegar à Sociologia (ou melhor, à Biologia), passa a ser sintético e também claramente subjetivo.

Em vez de “duas culturas” (científica versus humanística) ou “três culturas” (científica versus humanístico-literária versus sociológica), há apenas uma cultura: a síntese subjetiva.

*   *   *

“Malgré ces divers indices de son aptitude immédiate, la vraie logique religieuse, à la fois objective et subjetive, ne fait certainement que de la naître. Tout son essor caractéristique appartient au prochain avenir. Son élément rationnel, seul cultivé jusqu’ici, ne pouvait être dignement conçu, faute d’une connaissance réelle des lois intellectuelles, seulement appréciables dans l’évolution scientifique de l’humanité. Aussi cette élaboration méthaphysique n’a-t-elle jamais abouti qu’à des préceptes vagues et stériles, même quand elle ne se préoccupait plus de formalités puériles ou vicieuses. Mais la logique affective dut encore moins avancer, puisque les phénomènes correspondants furent toujours regardés comme soustraits à toute loi. Elle ne fut sérieusement cultivée que dans le moyen âge, sous l’impulsion catholique, dont le déclin en suscita encore d’admirables essais, chez les principaux mystiques. A ces premiers rudiments empiriques, le positivisme peut seul faire succéder un vaste essor systématique, puisqu’il s’établit surtout dans l’ancien domaine de la grâce, désormais ramenée à des lois appréciables, sources nécessaires de prévision et d’action. 

[...]

Cette double aptitude fondamental du régime final repose entièrement sur le caractère positif de la nouvelle méthode subjective. Par cela seul que l’ancienne était théologique, ou même métaphysique, elle restait inconciliable avec la méthode objective, qui dut toujours être positive, pour fournir des prévisions réelles, propres à guider une activité efficace. Tandis que la subjectivité poussait l’esprit à l’absolu, l’objectivité le ramenait au relatif. Ce tiraillement continu ne permettait aucun équilibre logique. La cohérence mentale éxigeait d’abord l’homogénéité des méthodes. Or, la pratique ne pouvant renoncer à la marche objective, il fallait bien que la théorie abondonnât la marche subjective, du moins tant que dura l’évolution préparatoire. Ce préambule, désormais complet, a conduit l’essor analytique jusqu’à fournir, par la fondation de la sociologie, la base d’une nouvelle synthèse. Dés lors, la méthode subjective, appuyée sur le sentiment direct du Grand-Être, devient aussi relative que la méthode objective, coordonée d’après la conception générale de l’ordre extérieur. Ainsi s’organise notre vrai régime intellectuel, en rapport avec notre véritable destinée sociale. La pleine harmonie mentale n’aurait pu surgir auparavant, que si la philosophie théologique était devenue réellement objective ; ce qui fut toujours impossible, même sous le polythéisme” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 451-452).

17 setembro 2012

Kuhn derruba as barreiras entre ciências e humanidades - mas Augusto Comte não?

Kuhn derruba as barreiras entre ciências e humanidades. Augusto Comte não?


Na edição 296 da revista Ciência Hoje foi publicada a matéria “A queda do muro entre ciências e humanidades”, referindo-se ao cinqüentenário da publicação original do livro A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn, em que se apresenta uma interpretação sociológica e histórica das ciências[1]. Segundo os autores, uma das maiores contribuições desse livro teria sido mostrar que as ciências naturais são tão sociais e históricas quanto as ciências humanas e, portanto, seriam possíveis análises (teórica, metodológica e epistemológica) das ciências naturais de maneira integrada às ciências humanas.

Comemorar os 50 anos de publicação do livro de Thomas Kuhn é interessante; mas afirmar que ele é importante porque teria “rompido as barreiras entre as Ciências Humanas e Naturais” é um exagero despropositado – e, pior, ignorante e preconceituoso. (Deixando de lado, é claro, os inúmeros problemas e inconsistências teóricos da obra de Kuhn. Mas isso não vem ao caso.)

A integração entre Ciências Humanas e Naturais ocorreu precisamente ao mesmo tempo em que a Sociologia e a História das Ciências surgiram – ou seja, quando Augusto Comte, pai do Positivismo, criava a Sociologia de uma perspectiva histórica e concentrava grande atenção no desenvolvimento histórico das ciências, vistas como produto social.

A obra mais conhecida de Comte – e, no Brasil, mais ou menos a única que se conhece, embora reduzida aos dois primeiros capítulos[2] –, o Sistema de filosofia positiva (1830-1842) tratou de realizar uma avaliação geral dos principais resultados teóricos e metodológicos das várias ciências, a fim de elaborar as bases teóricas e metodológicas da Sociologia.

Já no Sistema de política positiva (1851-1854), especialmente em seus volumes I e III (respectivamente, de 1851 e 1853), Comte dedicou-se a insistir no caráter social e histórico das ciências (naturais e humanas), investigando como os ambientes sociais facilitaram (ou dificultaram) suas constituições. Aliás, muito mais do que isso, Comte nessa obra adotou uma perspectiva radicalmente relativa, humana e  histórica – em termos atuais: transdisciplinar – a fim de examinar como cada ciência contribui para o ser humano e para a sociedade. Essa perspectiva é o que ele chamava de “método subjetivo”.

Na verdade, o método subjetivo ia ainda mais fundo, afirmando que é necessário à ciência (e à política) reconhecer o valor lógico e teórico das artes (geralmente chamadas também de “humanidades”). Nesse sentido, por exemplo, Comte afirmava que se deve ampliar o conceito de “lógica”, deixando de restringi-lo à lógica matemática (a lógica dedutiva, chamada por ele de “lógica dos sinais”), para incorporar também a lógica das emoções e a lógica das imagens. “Lógica”, nesse sentido, significa formas gerais de o ser humano entender (i. e., observar, compreender e falar a respeito de) a realidade.

Entretanto, a filosofia criada por A. Comte chama-se “Positivismo”, cuja fortuna crítica posterior modificou radicalmente o sentido originalmente concedido pelo pensador francês. Além disso, o valor dessa palavra alterou-se bastante ao longo do tempo, passando de favorável a negativo. Os preconceitos contrários ao “Positivismo”, que abrangem a obra de Comte por pura metonímia, são amplamente compartilhados pelas Ciências Humanas desde há várias décadas, incluindo aí os profissionais da História das Ciências e da Filosofia das Ciências.

Historiadores da ciência que desconhecem a obra de Comte – que precedeu em muito mais de um século a obra de Kuhn – demonstram, portanto, não apenas ignorância da história da ciência, como preconceito: afinal, como é senso comum, “todos” “sabem” que o “Positivismo” é “cientificista”, anistórico e objetivista. Pena que ninguém lê A. Comte e todos repetem: “não li e não gostei”.





[1] “A queda do muro entre ciências e humanidades”, publicada em Ciência Hoje (São Paulo, v. 50, n. 296, p. 74-75, set.). Disponível em: http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2012/296/a-queda-do-muro-entre-ciencias-e-humanidades. Acesso em: 7.jan.2013.
[2] Convém notar que apenas 5% da obra de Comte estão traduzidos para o português, o que é altamente sintomático dos problemas indicados acima.

20 março 2008

Sobre o livro "Breve história da ciência moderna", v. 4

O texto abaixo corresponde a uma carta que escrevi aos autores da coleção "Breve história da ciência moderna", referente aos comentários que eles fizeram no volume 4 dessa coleção, intitulado "A belle-époque da ciência (século XIX)".

* * *
Caros Marco Braga, Andréia Guerra e José Cláudio Reis:

Li o seu recém-lançado livro sobre a história da ciência, volume 4, correspondente ao século XIX. O que me interessou nele foi a referência a Augusto Comte e ao Positivismo.

Considerando que a coleção que vocês escrevem é didática e de introdução à ciência e à história da ciência, não faz muito sentido dedicar páginas demais a cada escola ou corrente; além disso, o resumo que vocês fizeram da obra de Comte foi correto, embora bastante tradicional.

Todavia, tenho algumas observações sobre seus comentários no último parágrafo do capítulo dedicado ao Positivismo, em que vocês afirmam que o ideal de estudar cada ciência a partir dos mais recentes avanços é comtiano, desprezando, assim, a história da(s) ciência(s) em nome de alguma coisa como uma "pureza" científica e antimetafísica:

1. pura e simplesmente, Augusto Comte foi o fundador não somente da Sociologia (pelo que ele é mais conhecido), como, principalmente para o presente objetivo, da História das Ciências. TODA a obra de Comte é uma afirmação da inalienável importância do estudo da história das ciências para a compreensão de cada ciência em particular e das formas de pensamento humano em geral.

1.1. Na verdade, pode-se ler logo no início de uma das poucas obras comtianas vertidas para o português a afirmação segundo a qual "só se entende verdadeiramente um conceito se se conhece a história desse conceito".

1.2. Afirmando a importância da história das ciências, ele propôs ao governo francês, no início da década de 1830, a criação de tal disciplina na Sorbonne ou no Collège de France - proposta que foi rejeitada por Guizot, sob a justificativa de que seria inoportuno politicamente - isto é, poderia esclarecer o povo e causar transtornos.

1.3. O curso de História das Ciências só foi aceito e reconhecido na III República, proclamada em 1870.

1.3.1. A III República teve grande influência do Positivismo comtiano, como se pode perceber na ação de Léon Gambetta e de Jules Ferry, além dos republicanos dreyfusistas.

1.3.2. A cadeira de História das Ciências foi criada em 1892 e ocupada pelo discípulo direto de Comte, Pierre Laffitte, de acordo com o planejamento comtiano (cf. http://www.college-de-france.fr/media/lis_prf/UPL45507_LISTE_DES_PROFESSEURS.pdf).

1.4. Durante mais de 25 anos Comte ministrou um curso popular, gratuito, de Astronomia. Esse curso era sem dúvida teórico, mas fortemente histórico.

1.5. Na relação de livros que Augusto Comte recomendava aos positivistas do século XIX para terem uma instrução moral, política, científica e artística, ele incluía, por exemplo, a "História da Astronomia", de Adam Smith, como tendo um caráter exemplar para o estudo da humanidade.

2. Face ao exposto acima - facilmente comprovável em qualquer obra de Augusto Comte -, eu não sei de onde vocês tiraram uma tal afirmação.

2.1. Essa afirmação parece ser o tipo de repetição de outras fontes, que repetem outras fontes, que repetem outras fontes - e assim sucessivamente, sem que se determine a referência original. Nada menos científico; nada mais imbuído de preconceitos.

2.1.1. A referência primeira desse preconceito, evidentemente, estava ou está imbuída de má-fé; os seus repetidores, idem.

2.2. Comte afirmava com todas as letras que a melhor maneira de combater a metafísica - e, claro, antes disso, também a teologia - era precisamente estudar as ciências e suas histórias.

3. Os positivistas jamais foram favoráveis a "manuais", no sentido das atuais apostilas, para o ensino das ciências.

3.1. A proposta de ensino das ciências por meio de apostilas, como se isso fosse suficiente para entender a ciência, se foi devida a algum "positivismo", deve ser procurada nos adeptos do Círculo de Viena, não em Comte.

3.1.1. Como vocês são historiadores da ciência, não parece necessário reafirmar que não há relações entre Comte e o Círculo de Viena, exceto no que se refere à rejeição da metafísica.

3.2. É de esperar-se que não haverá nenhuma referência desse tipo no volume 5 da coleção.

4. O estudo histórico e teórico das ciências, para Comte, era uma forma de humanização do ser humano, no duplo sentido de 1) afastar-se tanto da teologia quanto da metafísica e aproximar-se da positividade e 2) de tornar-se mais "positivo", conforme definido no "Apelos aos conservadores" (real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático).

4.1. Em outras palavras, estudar a história das ciências integrava o projeto religioso de Comte.

5. Uma das coisas que mais espanta nessa afirmação é o fato de vocês serem cariocas.

5.1. No Rio de Janeiro há a Igreja Positivista do Brasil e numerosos positivistas, que poderiam elucidar, comentar e explicar o ponto em questão.

5.2. Vocês são professores do Colégio D. Pedro II. Pois bem: foi professor de Química nesse colégio, com orgulho e por muitas e muitas décadas, o sr. Rubem Descartes de Garcia Paula. O sr. Rubem Descartes era um dos mais ativos positivistas. O comentário em questão não faz justiça nem a ele nem à escola em que vocês lecionam.