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10 dezembro 2024

Monitor Mercantil: "Cultura política, STF e laicidade"

No dia 9.12.2024 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou um artigo de nossa autoria intitulado "Cultura política, STF e laicidade".

O original da publicação está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/cultura-politica-stf-e-laicidade/.

O texto está reproduzido abaixo.

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Cultura política, STF e laicidade

É quase senso comum considerar que sem o apoio generalizado e difuso da sociedade, nenhum regime político pode manter-se. Isso se refere tanto ao apoio consciente ao regime quanto aos pequenos hábitos e comportamentos do dia a dia, incluindo aí as formas como agimos e as maneiras que rejeitamos para agir. Assim, todo regime apresenta um aspecto cultural; dito de outra maneira, toda cultura tem um aspecto político que se corporifica no regime político, que cria e que sustenta as instituições.

Vale notar que as instituições importam, e muito, mas seu funcionamento adequado depende do apoio social que o conjunto da sociedade fornece, da legitimidade que as instituições têm para agir da maneira adequada e, não menos importante, das convicções íntimas que os agentes públicos e os cidadãos têm para fazer valer as funções das instituições. Em outras palavras, sem a cultura política sustentando as instituições, estas não passam de cascas vazias e letras mortas.

A relevância dessas afirmações, aparentemente tão simples, pôde ser comprovada ao longo da última década, a partir de diferentes exemplos. O primeiro exemplo é o mais fácil de citar; trata-se da série crise de legitimidade com que as instituições políticas representativas têm-se defrontado faz tempo. Não se trata apenas de um sentimento difuso e difundido de que “os políticos não nos representam”. Isso por si só já seria bastante grave, mas em si gera mais apatia e cinismo que qualquer outra coisa: ora, a crise de legitimidade que temos visto desde pelo menos 2013 tem resultado em um ativo comportamento autoritário. Em vez de as instituições republicanas (nas equívocas formas “democrático-liberais”) perderem apoio por si sós, o que se tem visto é que essa perda tem sido trocada por um apoio a práticas e a propostas institucionais autoritárias, violentas, iliberais. O apelo democrático é o mesmo: é sempre a soberania popular que justifica essas propostas; como, supostamente, a vontade popular nunca erra (afinal, vox populi vox dei), muitos consideram que o misticismo saudosista do regime militar seria aceitável.

Essas concepções antirrepublicanas têm sido defendidas por muitos grupos sociais e políticos que tentam implementá-las por meio de duas estratégias complementares: (1) desgastando as instituições vigentes, corroendo sua autoridade e/ou mantendo-as inertes (ou melhor, omissas); (2) tentando a mudança total de uma única vez. A primeira estratégia come pelas beiradas, a segunda consiste em um ataque direto ao conjunto das instituições.

Ora, a partir de um sentimento social difuso e difundido, não necessariamente espontâneo, entre 2019 e 2022 o que se viu foi o seguinte: o poder Executivo buscou e apoiou o golpismo militarista, o poder Legislativo foi inicialmente um anteparo a isso (entre 2019 e 2020, com Rodrigo Maia à frente da Câmara dos Deputados) e depois foi um esteio dessas ambições (em 2021 e 2022, com Artur Lira como Presidente da Câmara) e a Procuradoria-Geral da República (PGR) exibiu uma omissão cúmplice: o grande anteparo dessa longa ofensiva foi o Supremo Tribunal Federal (STF), na figura de Alexandre de Moraes secundado pelos outros dez ministros.

Vimos, então, a cultura política em ação, seja no seu aspecto difuso, social, seja no seu aspecto concreto, institucional e individual; um intenso ativismo social apoiou e foi apoiado por um ativismo institucional contra o conjunto das instituições, parte das quais apresentou uma omissão conivente contra esse mesmo conjunto; uma instituição central em particular opôs-se a isso e evitou o triunfo da maré antirrepublicana.

Esse resultado é notável e torna-se ainda mais impressionante quando se o compara com o outro exemplo que queremos comentar. Os atores envolvidos são os mesmos (sociedade civil, os três poderes, PGR); a fundamentação filosófico-moral é a mesma (valores sociais compartilhados, caráter “democrático” das instituições), a tramitação é a mesma (propostas dos poderes Executivo e/ou Legislativo avaliadas pelo Judiciário); os casos que nos interessam agora também se referem a aspectos centrais e fundamentais da República: mas o resultado é inverso ao anterior. As questões são relativas à laicidade do Estado.

Desde 1890 o Estado brasileiro é laico. Isso deveria significar que o Estado não tem doutrina oficial nem que as doutrinas/igrejas não se valem do Estado para imporem-se sobre os cidadãos. O Estado mais ou menos não tem doutrina; mas as doutrinas/igrejas usam, sim, o Estado para imporem-se e querem, cada vez mais, que o Estado apóie ativamente esse uso. Nesse quadro, as instituições deveriam apoiar o que é uma disposição política e constitucional desde o início da República: mas o poder Legislativo tenta criar brechas o tempo todo; o Executivo é omisso ou partícipe ativo dessas iniciativas; o Ministério Público é igualmente omisso. Restaria o Judiciário, mas decisões tomadas nos últimos anos indicam que o STF também apóia o desprezo à laicidade. E, pior, esse desprezo manifesta-se pelo mesmo Ministro – infelizmente, Alexandre de Moraes.

Em 2017, Alexandre de Moraes pôs-se contra Roberto Barroso, foi favorável a que as escolas públicas tenham ensino religioso confessional e foi o autor do voto vencedor nessa questão. Para Moraes, é lícito ao Estado pagar sacerdotes para que eles imponham sobre os estudantes suas doutrinas, em caráter oficial (com a fantasiosa possibilidade de opção). Agora em 2024, o mesmo Moraes julgou que os crucifixos em órgãos públicos não ofendem a laicidade do Estado, ou seja, símbolos de uma doutrina específica podem ser exibidos em caráter oficial (e obrigatório) para todos os cidadãos, mesmo acima dos símbolos da República!

O argumento empregado nos dois casos pelo Ministro Moraes é o mesmo empregado pelo ex-Presidente que tentou dar um golpe militar durante quatro anos: trata-se de que, “se o Estado é laico, a população é cristã”. A laicidade tem que se dobrar a uma crença compartilhada e pode ser negada. Não se pode argumentar ignorância ou má fé do Ministro Moraes, nem mesmo tibieza ou medo: ele não é o tipo de pessoa que se dobra a pressões externas por medo. São convicções íntimas, compartilhadas pela maioria do STF em 2017 e novamente em 2024.

O problema, então, é de cultura política – e de filosofia política. Trata-se de considerar que as opiniões são secundárias e que a força, a violência do Estado é só o que importa. Um Estado autoritário é um grave problema e deve ser evitado, sem dúvida: essa é a opinião do STF e de metade da população brasileira. Mas um Estado que impõe doutrinas e símbolos – na verdade, de maneira ainda mais dura e agressiva que em um Estado autoritário –, isso não é problema, pois “a população é cristã” e é lícito que o Estado pague servidores públicos para pregação religiosa.

São opções filosóficas e morais incoerentes, na verdade incompatíveis. Essas opções revelam e conduzem a uma cultura política que é mais que incompatível: ela é suicida.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.

11 abril 2024

Monitor Mercantil: "Deltan Dallagnol sobre Elon Musk e laicidade do Estado"

O jornal Monitor Mercantil, do Rio de Janeiro, publicou um artigo de minha autoria intitulado "Deltan Dallagnol sobre Elon Musk e laicidade do Estado". 

O texto pode ser lido diretamente na página do jornal, aqui: https://monitormercantil.com.br/deltan-dallagnol-sobre-elon-musk-e-laicidade-do-estado/.

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Deltan Dallagnol sobre Elon Musk e laicidade do Estado 

Gustavo Biscaia de Lacerda

 

Em 7 de abril de 2024, o ex-procurador da República e ex-Deputado Federal Deltan Dallagnol palestrou no Massachussets Institute of Technology (MIT) (“Deltan dá razão a Musk em briga com STF e é vaiado nos EUA ao defender religião na política”, Folha S. Paulo, 7.4.2024). Os seus comentários suscitam muitas reflexões, que ultrapassam disputas episódicas e referem-se a elementos importantes da política nacional contemporânea.

Inicialmente, Dallagnol defendeu as críticas que o empresário Elon Musk fez contra Alexandre de Moraes, Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), sugerindo que o Ministro seria a favor da censura, que deveria sofrer impedimento e que ele, Musk, não respeitará as decisões da Justiça brasileira. Depois Dallagnol defendeu o emprego explícito de critérios teológicos na política e que a rejeição desses critérios seria um “preconceito secularizante” de origem “humanista”.

Deltan Dallagnol ficou famoso a partir de 2014, à frente da Operação Lava Jato. Ele e sua equipe evidenciaram que, muito além de buscarem identificar e processar judicialmente práticas de corrupção em empresas públicas, eram movidos por um desejo de fazer política (pública) atrás e por meio de instituições do Estado, ao mesmo tempo em que buscavam executar um anunciado plano de destruir as instituições públicas, vistas como corruptas em sua generalidade (com exceção dessa equipe iluminada). As investigações geraram merecido amplo apoio público; mas esse apoio era mantido com a “espetacularização” das investigações, realizadas com um agressivo espírito ultradraconiano e um objetivo de destruir (em um apocalipse?) as instituições públicas. Nisso, Dallagnol ocupou papel de destaque, embora não fosse o único líder, nem, talvez, o cérebro jurídico da equipe do fim do mundo. Ele também sempre deixou claros os seus valores político-teológicos evangélicos: na verdade, é possível conjecturar que suas crenças teológicas inspiram uma concepção teocrática que fundamenta sua orientação apocalíptica e ultradraconiana da política. 

Assim, o apoio de Dallagnol a Elon Musk é curioso, ou melhor, contraditório. Elon Musk é um bilionário sul-africano favorável a favor de golpes de Estado quando seus interesses comerciais são contrariados; é contra a regulação pública das Big Techs a respeito de discursos de ódio (ele é dono do Twitter); ele é contra os direitos trabalhistas; ele já se manifestou a favor de perspectivas políticas reacionárias; agora ele manifesta-se contra as legítimas instituições públicas brasileiras. Deveria ser evidente que se impõe ao ex-procurador da República Dallagnol manifestar-se pelo repúdio às declarações de Musk. O ex-Deputado Federal não atua como um defensor das leis, mas como integrante do establishment, em busca de apoio público e de votos – e também do apoio daqueles mesmos grupos e indivíduos que, quando liderava a equipe do fim do mundo, ele supostamente combatia. 

Passemos à defesa da teologia na política. Para Dallagnol, existiria um “preconceito” secularizante e “humanista” contra a afirmação política de valores teológicos; enquanto outras filosofias políticas teriam legitimidade para exprimir-se publicamente, a “religião” não a teria. Essas afirmações são todas altamente problemáticas. 

Comecemos pelo erro de confundir “religião” com teologia. A religião é a sistematização do conjunto da vida humana, para a harmonia coletiva e individual, a partir de alguma filosofia. Dessa forma, a religião é um conceito amplo, de que a teologia é apenas um tipo específico. O erro de Dallagnol é ainda maior porque ele compartilha o preconceito segundo o qual a “religião” (a teologia) é apenas o monoteísmo, em particular o monoteísmo cristão, e ainda mais em particular o monoteísmo cristão protestante – e ainda mais em particular o monoteísmo cristão protestante evangélico e de origem estadunidense. Mas se religião é sistematização da vida humana a partir de alguma filosofia, é correto considerar que há outras religiões (além da dos evangélicos dos EUA), incluindo os humanismos que Deltan Dallagnol critica. Assim, o que se nota em Dallagnol é uma visão de mundo estreita e particularista. 

Como ex-procurador da República, Dallagnol deveria conhecer o livro MinistérioPúblico: em defesa do Estado laico, publicado em 2014 pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Nesse livro – de que participo com um capítulo – há textos históricos e filosóficos; Dallagnol deveria conhecer as reflexões presentes nele; ainda assim, vale expô-las aqui. 

No século XVI ocorreu o cisma protestante e surgiu um problema muito maior que uma disputa filosófica: havia um problema político. Considerava-se então que todo Estado deveria ter uma religião oficial para a ordem pública; essa religião seria a do governante (é a frase francesa: une foi, une loi, un roi – “uma fé, uma lei, um rei”). A disseminação do protestantismo e a reação católica converteram-se em guerras generalizadas e que duraram cerca de 150 anos (as “guerras religiosas”). Essas guerras só acabaram quando, ao término da Guerra dos 30 Anos (1618-1648), decidiu-se que a política internacional deveria basear-se em bases apenas políticas, deixando-se de lado os aspectos teológicos e com o respeito à autonomia de cada país. Não é que a religião tenha deixado de ser levada em consideração; mas os vários países tiveram que reconhecer que as disputas teológicas causavam danos políticos demais. Daí os países da Europa ocidental foram obrigados a instituir em diversos graus a tolerância religiosa, ou melhor, as liberdades de consciência, de expressão e de associação, resultando na separação entre o âmbito religioso e a vida política. Exatamente porque a manifestação pública das crenças teológicas conduziu às guerras que os países europeus decidiram que seria melhor que a “religião” deveria ser um assunto cada vez mais estritamente particular. Não se trata de “preconceito” contra a teologia, mas de um acordo tácito que buscou realizar a paz e evitar os conflitos: grosso modo, é a “laicidade do Estado”. 

Os seres humanos discordam pelos mais variados motivos, mas alguns motivos geram mais disputas que outros. O que pode ser discutido com liberdade e clareza produz menos conflito que aquilo que só pode ser aceito sem discussão, pela pura “fé”: as crenças absolutas (teológicas) são do último tipo. É claro que qualquer teológico pode discutir com liberdade suas crenças, mas a lógica interna das crenças teológicas rejeita essa liberdade – e essa lógica interna impõe-se aos indivíduos e tem efeitos concretos. Os crentes pessoalmente podem estimular a tolerância e a liberdade, mas por si mesmas as crenças rejeitam a discussão: quem não crê é um “infiel”, quem discorda é “herético”, “ateu”, “servo do demônio”. Assim, não foi por acaso que ocorreram as guerras religiosas: o absolutismo das crenças teológicos estimula a falta de tolerância, a imposição de crenças, a ausência de compromissos. Por outro lado, foi justamente a secularização da política (após e devido à Guerra dos 30 Anos) que passou a estimular a paz e a evitar os conflitos. A tendência secularizante da política, então, não é um preconceito contra a teologia; essa tendência é uma conseqüência da busca da paz e da rejeição da guerra. 

Retornemos a Dallagnol. Ao apoiar Musk, Dallagnol episodicamente referenda concepções e práticas que devemos chamar de golpistas. Isso por si só é muito preocupante. Por outro lado, em termos de mais longo prazo e mais profundos, é assustadora a idéia de que haveria um preconceito secularizante e humanista contra teologias políticas. Essa concepção, embora denuncie um suposto preconceito, é ela mesma preconceituosa e revela ignorância histórica, filosófica e política. Não sendo o ideal, é até aceitável que o comum dos cidadãos (e dos teológicos) não tenha conhecimentos históricos e filosóficos; mas o mesmo já não pode ser dito dos líderes políticos e espirituais, especialmente se eles são ex-procuradores da República.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política.


31 março 2023

Live AOP: Carlos Eduardo Oliva: Laicidade e constitucionalidade inconstitucional do ensino religioso

No dia 30 de março de 2023 realizamos uma Live AOP com o professor, sociólogo e jurista Carlos Eduardo Oliva (UERJ-Colégio Pedro II), sobre a laicidade do Estado e a constitucionalidade inconstitucional do ensino religioso no Brasil.

Foi uma palestra muito interessante e muito agradável, que durou cerca de duas horas. O evento foi transmitido no canal Positivismo; foi também gravado e o vídeo está disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=eLHq89UdwJw.



 

15 março 2023

Anotações sobre a laicidade

No dia 17 de Aristóteles de 169 (14 de março de 2023) fizemos nossa prédica positiva. Em um primeiro momento, demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua sexta conferência, dedicada ao conjunto do dogma; em particular, abordamos a lei estática do entendimento.

Em seguida, na parte do sermão positivo, apresentamos algumas reflexões sobre a laicidade do Estado: as anotações que serviram de base para essa exposição estão reproduzidas abaixo.

A prédica foi transmitida nos canais Apostolado Positivista (aqui: acesse.one/Laicidade1) e Positivismo (aqui: encr.pw/Laicidade2). O sermão sobre a laicidade pode ser visto a partir de 41' 50".

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Anotações sobre a “laicidade do Estado”

 

-        Um dos temas mais importantes de qualquer organização política moderna é a chamada “laicidade do Estado”

o   Vale notar que, apesar de sua importância literalmente fundamental, ela é rotineira e generalizadamente negligenciada, seja pela teoria política, seja pelos políticos práticos

o   Essa negligência não me parece casual, pois a laicidade impõe uma auto-restrição que quase ninguém está disposto a assumir (na teoria e/ou na prática)

-        O Positivismo desde o início bate-se pelo que se chama de “laicidade do Estado”

o   Para o Positivismo, o que se chama de “laicidade do Estado” é um dos princípios fundamentais de qualquer organização política – isso para não dizer que é o princípio fundamental

o   Entretanto, para o Positivismo, o que se chama vulgarmente de laicidade é entendido como uma aplicação específica do princípio da separação entre os dois poderes

-        Quais são, então, os dois poderes?

o   Poder Temporal: responsável pela manutenção da ordem material das sociedades; baseia-se na força física; modifica externamente (objetivamente) a conduta dos indivíduos

o   Poder Espiritual: responsável pela formação e manutenção das opiniões, das idéias e dos valores; baseia-se na confiança e no aconselhamento; modifica internamente (subjetivamente) a conduta dos indivíduos

-        Historicamente os dois poderes estiveram unidos, ainda que com a subordinação de um ao outro

o   Na Idade Média houve um primeiro esboço de separação entre os dois poderes, com a separação entre o Imperador e o Papa

§  Essa separação foi proposta, no âmbito da teologia católica, por São João Crisóstomo (séc. IV)

§  O episódio da “ida a Canossa” (Henrique IV vs. Gregório VII, em 1077) indica tanto a separação entre os dois poderes quanto a subordinação moral do poder Temporal

o   As fés absolutas aproximam-se das ordens indiscutíveis; assim, o absoluto filosófico está próximo do autoritarismo político (e/ou do militarismo)

§  Inversamente, a fé relativa aceita e promove a ativa reflexão filosófica, social e política

§  Vale notar que países que têm retrocedido para o autoritarismo são países que, não por acaso, têm negado a laicidade (seus valores e suas práticas)

o   Na modernidade os dois poderes devem manter-se separados; a separação entre os dois poderes baseia-se em uma série de considerações morais, intelectuais e políticas inter-relacionadas entre si:

§  O fundamento de cada um dos poderes é diferente: o poder Temporal baseia-se na força física (ou seja, na violência), enquanto o poder Espiritual baseia-se na confiança e no convencimento

§  Cada indivíduo deve escolher suas crenças com liberdade e autonomia e não ser constrangido oficialmente para isso

§  Uma crença que usa o poder Temporal para estabelecer-se torna-se degradada, reconhecendo implicitamente que não tem forças para difundir-se sozinha

§  Um Estado que impõe uma crença determinada ao mesmo tempo indica que carece de legitimidade e estimula a hipocrisia pública

§  Os atributos próprios a cada um dos poderes são diferentes: o orgulho para o poder Temporal, a vaidade para o poder Espiritual

§  As perspectivas de cada um dos poderes são diferentes:

·         O poder Temporal visa a mudar materialmente a sociedade, concentrando-se no presente (solidariedade), em operações parciais e sendo objeto de disputas francamente egoísticas;

·         O poder Espiritual visa a mudar afetiva e intelectualmente a sociedade, afirmando a continuidade humana ao longo da história, estimulando as visões de conjunto e buscando estimular o altruísmo e regular o egoísmo

§  Com base na separação dos dois poderes, o Positivismo garante a legitimidade do Estado, a dignidade espiritual e rejeita que problemas morais sejam solucionados pela via temporal (somente pela via espiritual, ou seja, pelo aconselhamento e pela educação)

-        De um ponto de vista político, a separação dos dois poderes resulta em que os indivíduos têm a mais completa liberdade para formarem e/ou mudarem as suas próprias opiniões

o   Evidentemente, como já indicamos, qualquer opinião baseia-se sempre na confiança depositada pelo crente em um órgão espiritual qualquer

o   De maneira concreta, a separação entre os dois poderes realiza-se na forma da “laicidade do Estado” e é completada por três liberdades fundamentais: (1) de consciência, (2) de expressão e (3) de associação

-        Do exposto acima, torna-se claro que a laicidade do Estado não é:

o   Não é o estabelecimento de Estado ateu

o   Não é o estabelecimento de Estado pluriconfessional

o   Não é anticlericalismo

-        Há alguns detalhes adicionais sobre as diversas fases da transição derradeira, para Augusto Comte, em particular a ausência de qualquer financiamento teórico (igrejas teológicas, universidades metafísicas e mesmo a igreja positiva)

-        Na teoria política mais recente (não por acaso especificamente francesa), a laicidade do Estado é afirmada em termos de cidadania:

o   A atual teoria política francesa da laicidade baseia-se na obra de Condorcet, que, antes de Augusto Comte, foi o maior teórico francês do tema

o   A laicidade assegura que, para a cidadania, requer-se apenas o respeito às leis do país

o   Inversamente, com a laicidade não se requer a adesão a nenhuma doutrina específica (e, conseqüentemente, nem a filiação a nenhuma organização específica)

o   No que se refere ao serviço público, isso gera uma ética específica: tudo aquilo que tem a participação do Estado, direta ou indireta, tem que se manter neutro em termos doutrinários

-        Há diferenças entre laicidade e tolerância:

o   Para o que nos interessa, a tolerância é a aceitação, mais ou menos ampla, da parte dos governantes em relação às crenças dos cidadãos que não comungam da doutrina oficial de Estado (a liberdade de crença é uma concessão do Estado e/ou do governante e, como concessão, pode ser mantida ou suprimida)

o   A laicidade é a afirmação da cidadania apenas no respeito às leis e não depende da boa vontade do Estado e/ou do governante (a liberdade de crença é o fundamento das liberdades públicas e da cidadania)

-        Laicidade de princípio e laicidade de compromisso:

o   Laicidade de princípio: é estabelecida considerando que ela é o fundamento das liberdades e da cidadania; ela fundamenta efetivamente uma organização social e política

o   Laicidade de compromisso: estabelece-se a laicidade porque nenhuma seita específica tem poder suficiente para impor-se sobre o conjunto da população; é claro que ela é instável

-        No Brasil a laicidade foi estabelecida plenamente apenas em 1890 e até 1931

o   Não por acaso, a laicidade na I República foi estabelecida graças à ativa e difundida propaganda do Positivismo

o   Antes de 1890 e após 1931 o país viveu momentos de religião oficial (colônia, império), religião semioficial e Estado para-pluriconfessional (após 1931, até hoje)

-        No Brasil atual a “discussão” sobre laicidade apresenta-se da seguinte forma:

o   A direita é claramente contra a laicidade ou é cinicamente alheia a ela

o   A esquerda oscila entre a rejeição e o alheamento (como a direita) ou – no caso da esquerda identitária – adota uma visão pobre e instrumentalista da laicidade para justificar o anticlericalismo tópico

o   Há serviços públicos realmente universais e ligados apenas à cidadania (SUS), mas há serviços públicos que exigem a adesão explícita a um determinado credo oficial (vestibulares de IFES)

o   A Constituição Federal de 1988 é extremamente contraditória:

§  Afirma a ausência de apoio, subvenção ou embaraço público às religiões (Art. 19, I)

§  Proclama a Constituição “em nome de deus” (Preâmbulo) e afirma a colaboração do Estado com igrejas em nome do interesse público (Art. 19, I)

o   Os doutrinadores jurídicos justificam essa aberração político-intelectual por meio das categorias (igualmente aberrantes) “Estado colaborador” ou “laicidade atenuada”

§  Vale notar que a laicidade não é uma questão de quantidade, mas de qualidade; ela seria uma categoria discreta (sim/não, presente/ausente) e não uma categoria contínua (mais/menos)

§  Assim, nenhuma dessas categorias jurídico-políticas a posteriori realmente faz sentido

08 abril 2022

TJ-SP defende a laicidade do Estado, mas com argumentos ruins e covardes

A notícia abaixo é extremamente ambígua

Não o texto em si, que é bastante claro; refiro-me aos argumentos empregados pelos desembargadores paulistas para rejeitar a tal lei municipal que forçava os alunos a lerem a Bíblia: os juízes, em vez de afirmarem com clareza a separação entre Igreja e Estado, reconhecendo, além disso, a violência a que estavam sujeitos os alunos e a instrumentalização asquerosa do Estado para beneficiar a fé cristã; enfim, em vez de serem claros a respeito dos princípios em questão, o que fizeram os juízes? Ativeram-se a tecnicidades completamente secundárias, mais ou menos irrelevantes, puramente conjunturais para rejeitar a lei em questão. Ou seja, os desembargadores foram covardes em suas decisões e em seus fundamentos. 

Mesmo que no final das contas o resultado tenha sido positivo, ainda assim não é um resultado plenamente positivo, pois essa decisão em particular constituirá jurisprudência, ou seja, servirá de exemplo e de modelo para futuras decisões: mas essas futuras decisões basear-se-ão em argumentos frágeis e covardes, o que é meio caminho andado para a rejeição da própria laicidade.

A covardia moral e filosófica demonstrada pelos desembargadores paulistas evidencia o quanto o Brasil, cada vez mais, é refém dos clericalismos cristãos - para evidente prejuízo de todos (incluindo os próprios cristãos) e, acima de tudo, da República. 

O original da notícia foi publicado no jornal eletrônico Consultor Jurídico e pode ser consultado aqui.

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TJ-SP anula lei municipal que obrigava estudo da Bíblia em escolas públicas

Por 

A Administração Pública não pode proibir ou impor comportamento algum a terceiro, salvo se estiver previamente embasada em determinada lei que lhe faculte proibir ou impor algo a quem quer que seja.

ReproduçãoLei de Barretos que obrigava estudo da Bíblia em escolas públicas foi anulada

O entendimento é do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei municipal de Barretos que instituía o estudo da Bíblia como componente curricular obrigatório para os alunos do nível fundamental da educação básica.

A decisão se deu em ação direta de inconstitucionalidade proposta pela seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB-SP alegou violação aos princípios da laicidade estatal, da impessoalidade, da legalidade, da igualdade, da finalidade e do interesse público.

O relator, desembargador Elcio Trujillo, julgou a ação procedente por ter verificado vício de iniciativa e afronta à separação de poderes. Ele disse que a lei interferiu indevidamente na base curricular do ensino público municipal ao incluir uma matéria na grade, além de fixar prazo à Secretaria de Educação para implantação da norma.

"Além disso, todo ato normativo do município deve observar, obrigatoriamente, o princípio federativo da repartição constitucional de competências. A Constituição Federal de 1988 instituiu a competência privativa da União para disciplinar normas sobre diretrizes e bases da educação nacional", completou ele.

O relator afirmou que, mesmo que a lei fosse oriunda do Executivo municipal, haveria vício material, uma vez que a inclusão de uma matéria como estudo da Bíblia não caracteriza qualquer particularidade local que configurasse alguma das hipóteses do artigo 30, incisos I e II, da Constituição Federal, e que autorizasse o município a alterar a base curricular do ensino público.

"Ademais, referida determinação também padece de legalidade, finalidade e de interesse público, violando o artigo 111 da Constituição Estadual, além de afrontar o artigo 237, incisos II e VII, também da Constituição Bandeirante", apontou o desembargador.

Para ele, a norma também padece de legalidade ao impor o estudo da Bíblia no currículo obrigatório, "que é originária de uma única crença, aos demais alunos que podem ser de famílias de outras crenças, ou ainda daquelas que não possuem crença alguma". A decisão foi unânime.

Clique aqui para ler o acórdão
2166706-41.2020.8.26.0000


03 dezembro 2021

Estado laico acima de tudo, Humanidade acima de todos

Após a aprovação (em 1.12.2021, na sabatina no Senado Federal) como novo ministro do Supremo Tribunal Federal de André Mendonça, cujo critério de seleção pelo Presidente da República consistiu em ser "terrivelmente evangélico", é necessário reafirmarmos o princípio abaixo.


Fonte e autoria: desconhecidas.

11 julho 2019

Agência Brasil: "Bolsonaro diz que indicará evangélico para STF"

O atual Presidente da República, como é amplamente sabido, é uma pessoa reacionária, grosseira, mesquinha e vingativa; entre as inúmeras demonstrações de sua incivilidade e de seu anti-republicanismo, podemos lembrar que nunca escondeu sua defesa da tortura como "política social".

Dito isso, a declaração indicada na matéria abaixo, em que o Presidente da República reitera uma observação feita diversas vezes antes, indica o quanto ele não entende (e não quer entender) os princípios da República e em particular o da laicidade, a despeito de ele presidir essa mesma República.

A República é laica e essa laicidade é a condição de todas as liberdades de que gozamos e de que queremos gozar. Não importa se um brasileiro em particular é candoblecista, satanista, católico, evangélico, ateu, muçulmano, agnóstico ou positivista: a laicidade há que ser preservada como um valor fundamental.

Além de cometer esse erro - esse crime, na verdade -, o Presidente da República evidencia que não entende (e não quer entender) que a obrigação fundamental dos ministros do Supremo Tribunal Federal é respeitar e aplicar a Constituição da República Federativa do Brasil atualmente em vigor, promulgada em 5 de outubro de 1988. A filiação religiosa dos ministros é completamente secundária nesse sentido; o respeito à Constituição obriga os ministros, como magistrados da República, a pôr em segundo plano suas convicções religiosas em benefício da Constituição caso haja conflito entre ambas.

(Apesar disso, é importante notar que tanto o Presidente da República quanto muitos dos seus mais fervorosos apoiadores evangélicos primam por desrespeitar essa regra elementar da cidadania republicana, isto é, da cidadania.)

A notícia abaixo foi originalmente publicada pela Agência Brasil em 10.7.2019 aqui; não reproduzi toda a notícia porque há trechos, especialmente no final, que não dizem respeito ao tema da laicidade.

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Bolsonaro diz que indicará evangélico para Supremo Tribunal Federal

Presidente participou de culto na Câmara dos Deputados


Publicado em 10/07/2019 - 10:32
Por Andreia Verdélio – Repórter da Agência Brasil  Brasília


O presidente Jair Bolsonaro afirmou que indicará um ministro evangélico para o Supremo Tribunal Federal (STF), pois, para ele, a busca pelo “resgate dos valores familiares” deve estar presente em todos os poderes do país. “Entre as duas vagas que terei para indicar para o Supremo um deles será terrivelmente evangélico”, disse, durante sua participação em um culto da bancada evangélica na Câmara dos Deputados, na manhã de hoje (10).
No mês passado, ao criticar a decisão do STF de criminalizar a homofobia como forma de racismo, Bolsonaro já havia sugerido a indicação de um evangélico para a Corte. Até 2022, o presidente da República poderá indicar nomes para pelo menos duas vagas, que serão aberta com a aposentadoria compulsória dos ministros Marco Aurélio e Celso de Mello.
Hoje, Bolsonaro elogiou a atuação dos parlamentares evangélicos nos últimos anos. “Vocês sabem o quanto a família sofreu nos últimos governos. Vocês foram decisivos na busca da inflexão do resgate dos valores familiares”, disse. “Quantos tentam nos deixar de lado dizendo que o Estado é laico. O Estado é laico mas nós somos cristãos. Ou para plagiar a minha querida Damares, nós somos terrivelmente cristãos”, disse, em referência à declaração da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves.
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04 maio 2018

Suspensão de reza obrigatória no Rio de Janeiro

Excelente notícia em favor da laicidade: um juiz de segunda instância decide contra a imposição da reza obrigatória nas escolas municipais do município de Barra Mansa, no estado do Rio de Janeiro.

Convém lembrar que esse estado há décadas é caracterizado pelo desrespeito sistemático da laicidade do Estado, praticada por políticos "religiosos" de direita ou de esquerda, católicos ou evangélicos.

A notícia abaixo é a reprodução de matéria publicada no portal Conjur; o seu original pode ser lido aqui.

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LIBERDADE RELIGIOSA

Desembargador suspende reza do Pai-Nosso em escolas de cidade fluminense

O magistrado considerou que a prática desrespeita a liberdade religiosa dos estudantes, que estão em desenvolvimento de aprendizagem. Ele fixou multa diária de R$ 10 mil por cada descumprimento da ordem.
De acordo com o Nascimento, a prova documental juntada ao processo aponta inexistência de perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão.
“O Estado não pode fomentar segregações religiosas, separatismos, discórdias, preconceitos, como se aquelas crianças que permanecerem no local e rezarem o Pai Nosso fizessem mais parte da escola, ou estivessem mais adaptados e aptos a ela, do que aqueles que optaram por não fazê-lo”, escreveu o relator ao destacar que as provas confirmam a versão apresentada pelo Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro. 
Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-RJ.
Processo 0068944-59.2017.8.19.0000

09 outubro 2017

Gazeta do Povo: "Ensino religioso confessional, uma catástrofe anunciada"

A Gazeta do Povo publicou no dia 8 de outubro um artigo de minha autoria sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal em favor do ensino religioso confessional nas escolas públicas. Em minha opinião, essa decisão é catastrófica - aliás, daí a clareza com que exponho idéias que, geralmente e de outra maneira, apresentaria de maneira mais branda.

Felizmente, como a Gazeta do Povo tornou-se um jornal principalmente eletrônico, agora é possível escrever textos um pouco mais longos, em que se pode expor com um pouco mais de calma os argumentos e as questões de interesse.

O original encontra-se disponível aqui.

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Ensino religioso confessional, uma catástrofe anunciada

O ideal seria simplesmente suprimir da Constituição (e, por extensão, da LDB) a exigência de ensino religioso nos currículos das escolas públicas

Gustavo Biscaia de Lacerda  
[08/10/2017]  [10h00]

A recente decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), segundo o qual é constitucional o ensino religioso confessional nas escolas públicas brasileiras, é desastrada – ou melhor, é catastrófica; não há como qualificá-la em termos mais brandos. Pura e simplesmente, a maioria da corte – composta, no caso, pela presidente do tribunal, a ministra Cármen Lúcia; pelo “filopetista” Ricardo Lewandowski; pelos petistas Edson Fachin e Dias Toffoli; e pelos paragovernistas Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes – errou e esse erro custará caro ao país, em diversos sentidos. Antes de prosseguirmos, convém notar que a maioria favorável ao ensino religioso confessional votou contrariamente ao parecer do relator, o ministro Luís Roberto Barroso (embora este tenha tido o apoio dos ministros Luiz Fux, Rosa Weber, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello).

Qual a polêmica? A possibilidade ou não de as aulas de Ensino Religioso nas escolas públicas terem um caráter laico ou confessional: no caso de serem laicas, seriam cursos que conjugariam história, filosofia e antropologia das religiões, com um caráter comparativo e científico; no caso de serem confessionais, seriam aulas ministradas por sacerdotes das várias religiões, mormente os cristianismos (católico, luterano e evangélicos de modo geral). Na opinião do Ministério Público Federal, que iniciou a ação em 2010, essa disciplina teria de ser laica, entendendo que a versão confessional feriria a laicidade do Estado e permitiria o proselitismo.

Qual a necessidade de inscrever na Constituição Federal a obrigatoriedade de lecionar uma disciplina qualquer?

A base para essa polêmica está na Constituição Federal de 1988, a que se segue, como consequência, a Lei 9.394/1996, a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional (LDB): ambas citam expressamente a disciplina de “Ensino Religioso”, a ser ministrada nas escolas públicas nos horários regulares, embora com caráter facultativo. O que se deve notar é que a Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 19 – como uma de suas cláusulas pétreas – a impossibilidade de o Estado professar, apoiar ou obstar qualquer fé ou doutrina religiosa, o que consiste precisamente na laicidade do Estado. Mas, ao mesmo tempo, a única disciplina expressamente citada na Constituição, no artigo 210, é a de Ensino Religioso: nem Português, nem Matemática, nem História, Geografia ou qualquer outra goza desse monstruoso privilégio. Deve-se notar que, se houvesse a necessidade de citar na Constituição alguma disciplina obrigatória, ela deveria ser a Língua Portuguesa, que, afinal de contas, é definida como a língua oficial da República (artigo 13).

E é mesmo um privilégio. Afinal de contas, qual a necessidade de inscrever na Constituição Federal a obrigatoriedade de lecionar uma disciplina qualquer? Será que havia, ou há, algum medo de que, sem a imposição da força do Estado, a “religião” perdesse influência social e política? Ora, ninguém tem medo de que a língua portuguesa vá “perder influência” social no Brasil; ou, por outra, ninguém teme que a matemática se torne um conhecimento obsoleto: por esses motivos, ninguém se deu ao trabalho estapafúrdio de torná-las disciplinas constitucionalmente obrigatórias.

Mas por que é “monstruoso” esse privilégio? Porque ele se utiliza da força do Estado para impor aos estudantes (jovens e adultos) as doutrinas teológicas, conforme ensinadas e propaladas pelos respectivos sacerdotes. Sem dúvida alguma os ministros do STF que defenderam o ensino religioso confessional observaram, todos, que esse ensino não pode ser proselitista; entretanto, a esse respeito, ou os ministros são ingênuos ou são ignorantes. Embora a decisão do STF seja federal, a disciplina de Ensino Religioso deve ser oferecida e regulamentada pelas redes municipais e estaduais de ensino; nesse sentido, há estados brasileiros que estabeleceram um Ensino Religioso claramente confessional, com sacerdotes fazendo concursos públicos para serem professores: é o caso do Rio de Janeiro, que, sabidamente, há décadas é governado por evangélicos (de direita ou de esquerda, tanto faz). É certo que também há estados que definiram o ensino religioso em bases laicas, como no caso exemplar de São Paulo. Entre esses dois extremos, as unidades da Federação definiram diretrizes “pluriconfessionais”, sempre com a restrição que veda o proselitismo; todavia, o mais das vezes essa limitação é pura letra morta, com padres e pastores (ou seus epígonos) fazendo pregação em sala de aula à custa do erário. Isso, é claro, para não falar dos crucifixos onipresentes nas escolas, nas orações (cristãs) antes das aulas etc. Nesses termos, a ressalva de que o ensino religioso não deve ser proselitista deve ser entendida meramente como uma forma de os ministros do STF terem um mínimo de paz de espírito enquanto violam claramente a laicidade do Estado.

Antes de prosseguirmos na argumentação mais teórica, convém notar que o caráter confessional do ensino religioso exigirá dos estados e municípios sacerdotes de todas as religiões professadas pelos alunos. Ora, isso é completamente impraticável: nenhuma escola poderá perder tempo procurando sacerdotes de cada uma das religiões dos seus alunos. Problemas arquiconhecidos, como o absenteísmo dos professores, as questões salariais, a violência nas escolas, as instalações precárias, o baixo aproveitamento dos alunos e muitos outros ocupam à exaustão o dia a dia das escolas: a procura de sacerdotes é um incômodo que diretores e pedagogos das escolas não quererão ter. A consequência disso, sem dúvida, é que buscarão apenas dois ou três sacerdotes, provavelmente um padre católico e um pastor de alguma seita evangélica: alunos de outras religiões (incluindo aí os que não têm religião) serão forçados a aceitar a solução imposta pelo menor esforço. Esses sacerdotes, além disso, a despeito de suas divergências teológicas, organizar-se-ão em associações de professores de Ensino Religioso e passarão a atuar como grupos de pressão no sentido de tornarem-se funcionários públicos, como ocorre no Rio de Janeiro.

Do ponto de vista pedagógico, mesmo que seja “facultativo” o ensino religioso, e mesmo que se diga que ele não deve ser proselitista, o fato é que ele criará uma distinção profundamente danosa para os alunos, geradora de exclusão e preconceito – exatamente o oposto do que se pretende para a escola, pública ou não. Por que terá esses efeitos? Porque, como a maioria dos alunos é (nominalmente) cristã, alunos que professam outras doutrinas não participarão das atividades da maioria: se a preocupação com a aceitação coletiva é grande entre os adultos, entre crianças e adolescentes é gigantesca. Quem não participar das atividades da maioria será e sentir-se-á excluído, percebido como alguém “de fora”, que não participa da coletividade que é a turma. Em vez de integrar, haverá exclusão; para evitar essa exclusão, muitos alunos fingirão professar uma fé que, na verdade, não professam: hipocrisia institucionalizada e incentivada pelo Estado. Isso não é uma simples hipótese: é prática corrente em escolas do país inteiro; notícias de discriminação religiosa realizada entre alunos – quando não estimulada francamente pelos professores – são lidas todos os dias nos meios de comunicação.

Voltemos à argumentação dos ministros do STF. Os defensores do ensino religioso confessional consideraram que o modelo laico não seria apropriado devido a duas ordens gerais de motivos sociológicos: em termos históricos, o catolicismo teria tido uma importância central na formação do país, devendo-se valorizar e respeitar esse legado; em termos atuais, a maioria dos brasileiros é cristã ou, de qualquer maneira, professa alguma religião. Esses dois fatos estão vinculados e, sem dúvida, são verdadeiros: o problema consiste em deduzir deles qualquer política pública. Alguns ministros do STF disseram que a laicidade não pode ser entendida como a proibição das manifestações públicas dos valores religiosos; daí a defesa do ensino religioso confessional.

Ora, de fato, a laicidade não proíbe a manifestação pública dos valores e das práticas religiosas; bem ao contrário, é precisamente a laicidade que garante a liberdade às religiões quaisquer para manifestarem-se em público. A história do Brasil – que foi usada como esteio para a defesa canhestra do ensino religioso confessional – é a maior prova de que a laicidade é a garantia das liberdades: a primeira Constituição do Brasil foi a imperial, de 1824. Nela afirmava-se o catolicismo como a religião oficial, permitindo-se o exercício privado de outras religiões. O que significa o “exercício privado” de outras religiões? Os adeptos de outras crenças poderiam realizar seus cultos em suas casas; até poderiam ter seus próprios templos, desde que esses templos não tivessem o “aspecto exterior” de templos, ou seja, desde que não rivalizassem com as igrejas católicas. Além disso, os registros de nascimento, casamento e óbito, bem como a administração dos cemitérios, cabiam todos à Igreja Católica; apenas católicos podiam ser registrados como nascidos, casados e mortos, além de enterrados em cemitérios oficiais.

Valorizar a história não é o mesmo que a aceitar passivamente, como dão a entender os ministros da mais alta corte do país. Um exemplo banal, ainda que polêmico: em suas obras infantis, Monteiro Lobato expressou, por meio da Emília, ideias e valores que hoje chamamos de preconceituosas, denegrindo Dona Benta, que era negra. Embora haja diversos movimentos sociais favoráveis à exclusão desses belos livros das bibliotecas públicas, ou seja, a favor da censura, o mais correto é manter esses livros nas bibliotecas e nos currículos, ao mesmo tempo em que, nas salas de aula e nos textos que circulam pela sociedade, faz-se a contextualização das palavras da Emília, o reparo de que são palavras injuriosas etc. Aliás, o mesmo pode ser dito a respeito da Bíblia: nela há dezenas de passagens assustadoras, como apostas entre Deus e o diabo, o elogio da escravidão, do genocídio, da venda de filhos, do assassinato de primogênitos etc.; ou, então, com prescrições que hoje consideramos risíveis, como a impossibilidade de comer frutos do mar; mesmo as supostas mensagens de amor do essênio Jesus Cristo eram dirigidas aos seus irmãos judeus, tendo sido necessário que Paulo de Tarso (re)inventasse o mito de Cristo para que sua religião fosse propagada. Em suma: respeitar o papel histórico de Monteiro Lobato ou até da Bíblia e do catolicismo não equivale a aceitar suas observações como válidas perenemente.

O argumento demográfico é o mais perigoso e o mais especioso. Afirmar que a maioria da população brasileira é cristã, ou, de modo equivalente, que ela tem crenças “religiosas” é o primeiro passo para acabar com a laicidade, ou seja, para instituir a religião oficial de Estado: esse é o primeiro – na verdade, o único – argumento de quem é contrário à laicidade. Mas esse argumento estabelece que o mero peso numérico de uma determinada crença torna aceitável que ela seja imposta a todos os indivíduos em matérias de foro íntimo. Mais do que isso: esse raciocínio estabelece que o mero peso numérico de uma concepção estabelece a verdade, a realidade dessa concepção. Dessa forma, porque caso (digamos) 99% dos brasileiros acreditem que todas as maçãs são rosa-choque, o 1% restante também deverá necessariamente acreditar nisso. Em outras palavras, são as liberdades de pensamento e de expressão que estão em jogo aí: não é precisamente esse um dos argumentos do movimento “Escola sem Partido” (o fato contraditório de que esse movimento é favorável ao ensino religioso confessional diz bastante a seu respeito)? Afastando-nos um pouco do Brasil: não é exatamente esse o raciocínio dos líderes muçulmanos do Estado Islâmico, da Arábia Saudita e de outros lugares?

Valorizar a história não é o mesmo que a aceitar passivamente, como dão a entender os ministros da mais alta corte do país

 Assim, o que subjaz ao “argumento demográfico” é uma concepção profundamente equivocada do que significa o “governo pela opinião pública”. Essa concepção postula que a “opinião pública” é a mera soma aritmética dos humores individuais a respeito de algum assunto, em algum momento – e que tal soma tem valor normativo. Diga-se de passagem, esse mesmo raciocínio serviu de base para a recente e desastrada iniciativa de um ministro do Supremo Tribunal de Justiça para avaliar, na internet (!), o apoio popular a uma eventual intervenção militar na República.

Justamente ao contrário, o “governo pela opinião pública” consiste em que as ações dos governantes têm de se pautar pela moralidade humana e pela busca do bem comum, com políticas e valores universais, universalistas e includentes, assim como pelo diálogo com a sociedade. Sem dúvida que o escrutínio público contínuo das ações governamentais integra o “governo da opinião pública”, mas, como estamos vendo, a parte mais importante deste conceito consiste em que as diretrizes políticas dele decorrentes não ficam à mercê de humores momentâneos das disputas políticas, nem consistem em versões gigantescas do assembleísmo. A crítica à laicidade é feita justamente por intelectuais e grupos que, embora digam-se “populares” ou “progressistas”, na verdade são excludentes, particularistas e que buscam a obtenção do poder, para imporem seus valores.

Assim, a laicidade é um dos parâmetros fundamentais do “governo pela opinião pública”; como observamos antes, ela garante as liberdades de pensamento e de expressão e evita que questões de foro íntimo sejam impostas pelo Estado e/ou decididas pelo peso numérico dos demais concidadãos. Não é à toa que, integrando o artigo 19 da Constituição Federal de 1988, ela é uma cláusula pétrea da nossa pólis.

Face a isso, é claro que o ideal seria simplesmente suprimir da Constituição (e, por extensão, da LDB) a exigência de ensino religioso nos currículos das escolas públicas; mas, como isso é virtualmente impossível no Brasil atual, a solução menos daninha é, ou seria, implantar um ensino religioso laico. Como o STF decidiu em contrário, tendo à frente no clericalismo de Estado os ministros Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, as perspectivas sociais e políticas que se descortinam para o país são as piores possíveis: é um completo desastre que se anuncia.


Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Teoria Política e sociólogo da UFPR.