História das idéias,
Ciências Naturais e Ciências Humanas:
sobre o livro Conceitos de força, de Max Jammer
Gustavo Biscaia de
Lacerda
1. DESCRIÇÃO E ASPECTOS
METODOLÓGICOS DO LIVRO
O livro de Max Jammer, Conceitos de força – estudo sobre os
fundamentos da dinâmica (São Paulo: Contraponto, 2011), é um estudo de
história das idéias científicas – no caso, da Física – exemplar e clássico. “Clássico”
porque, escrito em 1957, teve inúmeras edições em inglês e é reiteradamente
citado, tanto no Brasil quanto no exterior, em textos sobre história das idéias
da Física. Na verdade, o livro integra uma tetralogia escrita em diferentes
momentos ao longo das décadas, em que o autor tratou de conceitos fundamentais
da Física: força, espaço, simultaneidade e massa; no caso, a presente obra é a
segunda disponível em português, tendo sido precedida pelo volume dedicado ao
espaço (também pela editora Contraponto – cf. JAMMER, 2010). “Exemplar” porque
acompanha como uma idéia modificou-se ao longo do tempo, em que as concepções
anteriores recebiam novas camadas conceituais à medida que o tempo passava, ou
seja, que os contextos sociais, políticos e – principalmente, para o que nos
interessa – filosóficos e científicos modificavam-se. O livro por si só é
bastante erudito e, em cerca de 330 páginas, o autor expõe como as várias
tradições teóricas que confluíram para o Ocidente consideraram a idéia de “força”
desde a Antigüidade pré-homérica até meados do século XX, embora o texto concentre-se,
como é natural, nas discussões posteriores ao Renascimento.
Há algumas questões
metodológicas que valem a pena ser comentadas. Antes de mais nada, o autor
adotou a opção – correta – de seguir o conteúdo
em vez da palavra. Na verdade, isso
seria natural e até inevitável, não somente porque, por exemplo, os antigos
egípcios tinham uma notação hieroglífica específica para o que poderíamos
chamar de “força”, mas principalmente porque os debates científicos realizados
hoje, no século XXI, têm sua origem pelo menos na época do Renascimento, em que
o latim era a língua científica por excelência – e em que, por sinal, “força” é
“vis”. Em outras palavras, uma
investigação de caráter etimológico seria infrutífera.
Em segundo lugar, convém
insistir em que o autor realizou sua exposição considerando as várias camadas
teóricas que sucessivamente se acumularam ao longo do tempo a propósito da
idéia de “força”. Assim, sem poder dedicar-se muito às intenções de cada um dos
formuladores de cada proposição – exceção feita a algumas figuras-chave, como
Galileu, Newton, Leibniz e Boscovich –, Jammer soube articular a recepção que
cada idéia teve em momentos distintos e como foi reelaborada.
Por outro lado, sendo um livro
pequeno, de caráter panorâmico, não se deteve na caracterização de cada
contexto nem nos debates específicos havidos em cada grande momento. Preocupado
com a exposição dos conceitos científicos e filosóficos, Jammer simplesmente
não tratou das questões sociopolíticas: cada “contexto” foi definido em função
das principais idéias em voga, definidas de acordo com o pensamento de alguns
autores selecionados como representativos. Para os interessados em discussões
sociopolíticas, evidentemente essa escolha teórico-metodológica é motivo de
incômodo, o mesmo valendo para aqueles interessados em uma Sociologia da
Ciência que conceda menos autonomia à ciência e mais à sociedade – em outras
palavras, às sociologias da Ciência que procuram ver nas elaborações
científicas reflexos das disputas sociais. Por outro lado, impõe-se a questão
de se a abordagem mais “internalista” é válida, ou seja, se o diálogo
trans-histórico a respeito das interpretações filosóficas e científicas da
realidade, condensadas na idéia de “força”, é correta e aceitável. Os
sociólogos e historiadores têm o hábito de considerar que as idéias costumam
ser o reflexo das condições sociais – duas formas extremas desse modo de ver
são o ultracontextualismo do idealista britânico Robin Collingwood (“cada idéia
é uma resposta particular para questões particulares”) e, claro, o conceito
marxista de “ideologia” –, de modo que não reconhecem nelas validades
intrínsecas independentemente das sociedades que as produziram. Mais do que
isso: o texto não se aferra aos contextos sociais específicos, reconhecendo e
expondo o verdadeiro diálogo trans-histórico que os pensadores fazem a respeito
de determinadas questões. Como fica evidente no texto, isso não equivale a
dizer que as idéias não se modificam ao longo do tempo – muito longe disso, na
verdade –, mas, ao mesmo tempo, não se recai na verdadeira falácia
teórico-metodológica de algumas vertentes da História das Idéias segundo as
quais não faz sentido transpor idéias de um momento histórico determinado para
outro. Diferentes “macrocontextos”
dialogaram entre si: por exemplo, na passagem do platonismo para a Idade Média
cristã e destes dois para as idéias modernas; no interior de cada “macrocontexto”,
os diálogos mantiveram-se; as diferentes camadas interpretativas deveram muito,
em vários casos, às influências de tradições originárias dos macrocontextos
anteriores.
Ora, aceitando-se a validade do
que estamos chamando de “diálogo trans-histórico” – ou, por outra, recusando-se
o (ultra-relativismo do) ultracontextualismo – e considerando estritamente o
avanço das idéias científicas, em particular na passagem da Idade Média para o
Renascimento e daí para o período moderno, é possível depreender da exposição
de Jammer que foram condições necessárias para o desenvolvimento da ciência a
crítica paulatina às concepções antropocêntricas do mundo e a preocupação em
adequar os raciocínios à realidade empírica; na verdade, a ciência
desenvolveu-se em ritmo cada vez mais acelerado à medida que assumia – e
praticava, é claro – como concepção da realidade o materialismo e o naturalismo
(em oposição ao espiritualismo e ao sobrenaturalismo) e o empirismo (em
oposição às concepções estritamente aprioristas). Nada disso equivale a negar a
importância da filosofia, isto é, das concepções gerais sobre a realidade (sejam
elas cósmicas, sejam elas morais e políticas): o livro de Jammer expõe as
cerradas discussões filosóficas que subjazeram às formulações sobre o conceito
de força e que orientam as diversas teorias da Física.
Da mesma forma, nossa afirmação não
equivale a dizer que o desenvolvimento e a aplicação paulatinos do método
científico decretaram a morte e enterraram a aplicação de concepções
não-científicas à prática científica: Kepler e, ainda mais, Newton são exemplos
clamorosos disso. Sendo mais preciso: Jammer indica largamente como, após a
publicação dos Principia Mathematica,
em 1684, inúmeros autores derivaram conseqüências teológicas e mesmo
“metafísicas” da obra de Newton. É importante notar que isso não significa
muito coisa por si mesmo, pois a maior parte desses autores derivados teve pouca
ou nenhuma importância científica; todavia, alguns cientistas foram
influenciados por eles, mesmo que indiretamente, resultando em que determinadas
perspectivas teológicas foram importantes para o prosseguimento da vida do
conceito de força – como no caso da obra de Boscovich.
A utilização de referências
teológicas na elaboração de teorias científicas não contradiz nossa afirmação
anterior, de que o desenvolvimento científico exige uma perspectiva naturalista
e, em um sentido específico, empirista; na verdade, não é a permanência de
motivos teológicos que deve ser enfatizada, mas o radical e crescente
ostracismo a que foram relegados. Em outras palavras, o desenvolvimento da
ciência exige a substituição de u’a mentalidade voltada e orientada para o
supramundano por uma outra, naturalista e “empirista”; as referências a deus
diminuem cada vez mais e, de qualquer forma, são cada vez mais postas à prova.
Na verdade, o que a permanência das referências teológicas indica não é a validade
(genérica) da teologia para a ciência, mas a permanente necessidade humana de
concepções gerais que orientem sua conduta e, de qualquer maneira, a contínua e
permanente necessidade de fontes de inspiração para a reflexão e para a proposição
de teorias. Nesse sentido, a teologia (“deus”) desempenha um papel (psicológico)
similar à música, à poesia ou a outras fontes de inspiração, sem que com isso
suas dificuldades intrínsecas sejam resolvidas ou superadas.
2. DUAS CRÍTICAS AO LIVRO
2.1. Excessiva brevidade
Não é a falta de contexto
sociopolítico o que pode dar azo a críticas ao livro; podemos considerar, sim,
outras limitações. Uma primeira dificuldade, que se vincula tanto ao tamanho
quanto ao escopo do livro, é a falta de esclarecimentos técnicos mais
sistemáticos; não sugerimos a presença de tais esclarecimentos no corpo do
texto – afinal de contas, trata-se de um livro escrito por um físico para
outros físicos –, mas pelo menos em notas de rodapé ou, o que seria mais
recomendável, em um apêndice. Como Jammer faleceu em 2010, aos 95 anos, isso é
presentemente impossível de ser feito por ele mesmo; todavia, novas edições
podem e devem incorporar essas explicações à margem. Na verdade, como nossa
formação específica é em Ciências Sociais, as explicações adicionais que me
interessam – e que, em parte, levaram-me a ler o livro – correspondem a
questões mais técnicas de Matemática e teoria física; mas, inversamente, o
interesse que os físicos têm no livro podem exigir notas de outro tipo: referências
históricas e filosóficas mais específicas. Como argumentaremos adiante, a
presente sugestão é mais que um desejo de informações a respeito de questões
que, pessoalmente, ignoramos: é uma necessidade cultural mais ampla que se
impõe.
2.2. Sérias imprecisões
filosóficas: “metafísica”, “positivismo”
Sendo o livro dedicado a
esclarecer o conteúdo do conceito de “força” – assim como os outros três
volumes da série escrita por Jammer dedicam-se aos conceitos de “espaço”, “simultaneidade”
e “massa” –, é notável que o segundo problema que podemos indicar consista em
uma séria falha de definição. A bem da verdade, o autor comete reiteradamente
uma imprecisão conceitual mas não está isolado nesse procedimento – não estava
quando redigiu o livro, em 1957, nem estaria hoje, em 2012 –: o problema
consiste na indefinição radical da palavra “metafísica” (e, associado a ela, “positivismo”).
Jammer adota o uso amplo,
corrente e altamente impreciso de “metafísica” como sendo “valores morais”, “filosofia”,
“concepção da realidade”; ao mesmo tempo, adota a perspectiva defendida por
algumas vertentes de positivismo, que assume a “metafísica” em um sentido mais
restrito e equivalente a “entidades”, “abstrações personificadas” e mesmo
agentes ocultos de propriedades da matéria. A amplitude do termo deve-se ao
fato de que inúmeros pensadores (incluindo aí, sem dúvida, cientistas)
distinguiram “filosofia” e “ciência”, entendendo a primeira como concepções
mais amplas da realidade, atribuições de valores, busca de causas etc.; já a
segunda seria a investigação objetiva e axiologicamente neutra da realidade
etc. Sem polemizar a respeito dessa descrição da prática científica, a
identificação estreita da filosofia com a metafísica é despropositada, ainda
que por demais difundida.
A “filosofia”
é uma atividade que apresenta as mais variadas definições, desde a análise dos
termos das frases até a justificação das decisões teóricas e práticas; uma noção
“clássica”, porém, considera que ela apresenta um caráter especulativo, em que,
embora presumivelmente tenha que manter alguma relação com a realidade
concreta, não precisa estar atrelada a ela; assim, a filosofia consistiria em
uma reflexão geral sobre a realidade humana e cósmica. Nesse sentido, muitos
vinculam a filosofia à metafísica definida epistemologicamente, isto é, a
filosofia seria por definição a reflexão “meta-física”, isto é, “que vai além do
físico”.
Nesse
sentido estrito, sem dúvida alguma que toda filosofia é metafísica. Se
pensarmos que a teologia refere-se às divindades e que a ciência refere-se ao
estudo analítico da realidade, caberia a essa “metafísica” a reflexão geral
sobre o mundo, que poderia, quem sabe, passar da divindade à realidade
empírica.
Essa
definição, além de ser etimológica, corresponde a uma divisão do trabalho
intelectual e estabelece uma tautologia: a filosofia é sempre metafísica;
inversamente, a crítica à metafísica é a crítica à filosofia e ao filosofar.
Tal concepção é bastante restrita, mas, curiosamente, é bastante comum: mesmo o
Círculo de Viena, que era tão rigoroso a respeito dos enunciados, adotou-a em
larga medida. De qualquer forma, essa definição – tautológica – abarca as
concepções que indicamos anteriormente: existência (ou afirmação) de teorias
preliminares às investigações empíricas, atividade especulativa.
Cada
um pode definir as coisas mais ou menos como bem entender. As definições
relacionam-se à capacidade individual e coletiva de comunicação, em que uma
definição específica deve ser compartilhada a fim de que várias pessoas possam
entender-se a respeito de determinados assuntos; considerando essa imposição
prática, as definições podem ser ajustadas às necessidades particulares de cada
grupo ou, em determinados casos, de cada indivíduo. No caso da palavra “metafísica”,
a definição-padrão, que é a etimológica e, como vimos, é tautológica, cria mais
problemas que soluções; ela serve mais para confundir que para esclarecer – com
o agravante de que em inúmeros casos o que se deseja é precisamente confundir.
Antes
de mais nada: por que a definição etimológica confunde? Porque ela não
esclarece os vários sentidos a que se referem os pensadores. Ao tornar
equivalente a atividade filosófica e a metafísica, não se esclarece qual o
conteúdo específico da metafísica. Isso deixa de lado os modos e os conteúdos
das obras de pensadores que quiseram ser especificamente “metafísicos”, ao
mesmo tempo que elude que pensadores teológicos ou científicos são, também,
cultores da filosofia, mas não da metafísica. Em outras palavras, afirma
corretamente que toda laranja é fruta, mas finge que toda fruta é laranja,
deixando de lado o fato central de que maçãs e peras também são frutas.
Essa
confusão não é casual. É claro que pode ocorrer dificuldades conceituais; é
claro que uma distinção adequada entre filosofia e metafísica – quando a
metafísica criticava a teologia e afirmava como modalidade específica de
filosofar e, depois, quando a prática científica criticou a metafísica –
tornou-se durante um certo tempo difícil. Podemos pensar no passo decisivo para
o ser humano o reconhecimento socrático de que existe uma realidade autônoma
constituída pelo pensamento: antes disso, a conceituação do “real” e do “ideal”
era altamente problemática.
Esse
gênero específico de confusão, portanto, é “histórico” e, assim, datado; quem
incidia nele cometia um erro natural, involuntário e perfeitamente desculpável.
O que não é desculpável é a reincidência nele, em particular a intencional.
De
modo mais específico, a (re)afirmação da metafísica como filosofar o mais das
vezes serve para diminuir a importância da racionalidade científica, isto é,
para denunciar as limitações do pensamento científico. Ora, é evidente que o
pensamento científico é limitado: na verdade, de modo geral os próprios
cientistas admitem-no e percebem-no, ao reconhecerem que o afirmado hoje
poderá, e provavelmente será, negado amanhã. Além disso, a ciência é parcial,
isto é, trata abstratamente de questões específicas e não de toda a realidade
e, muito menos, de questões concretas. Por outro lado, essa visão parcial não
basta para o ser humano compreender a realidade, isto é, para que ela faça
sentido; além disso, a investigação científica requer teorias preliminares,
assim como determinadas concepções gerais sobre a realidade (a realidade deve
ser estudada em termos naturalísticos em vez de sobrenaturalísticos; deve-se
evitar tanto o materialismo quanto o espiritualismo etc.).
Afirmar
os limites da ciência e apontar seus pressupostos é uma necessidade; para
conhecermos a realidade temos que conhecer com clareza os instrumentos de que
dispomos e saber como operam e em quais condições. Todavia, determinar essas
características é uma coisa; afirmá-las em termos de “metafísica” já se torna
um recurso retórico cujo objetivo de diminuir o instrumento é bastante claro.
O
famoso livro de Edwin Burtt (1991), As bases metafísicas da ciência
moderna, constitui um exemplo claro dessa intenção. Seu objetivo é
esclarecer, isto é, pôr às claras os pressupostos filosóficos da ciência
moderna, estabelecidos por ele nos séculos XVI e XVII, com Galileu e Newton. Em
vez de dizer “bases metafísicas”, poderia perfeitamente dizer “bases
filosóficas” ou, quem sabe, “bases epistemológicas”. O que sua opção sugere,
todavia, é que a própria ciência é metafísica, ou pelo menos “contaminada”
(indelevelmente) pela metafísica. Poder-se-ia argumentar que essa afirmação
tenha sido feita de maneira polêmica, em contraposição às idéias mais “radicais”,
isto é, mais “cientificistas” do Círculo de Viena ou de pensadores
assemelhados: mesmo com um objetivo polêmico, o resultado é o de afirmação da
validade da metafísica por meio da negação da ciência ou de sua equiparação à
metafísica, isto é, aos pensadores que buscam o absoluto, que reificam as
abstrações e assim por diante. Em outras palavras, entre (por exemplo) Einstein
e Heidegger não haveria diferença profunda.
Mais:
se entre metafísica e ciência não há diferença (pois ambas têm seus “pressupostos”,
que são sempre “pressupostos metafísicos”), as características
específicas de tais pressupostos também são eludidas, por meio da sua
equivalência artificiosa. Se os pressupostos da atividade científica são
metafísicos, esses pressupostos compartilham as características da metafísica.
Ora, evidentemente, essa forma de raciocinar é especiosa e visa a erodir a
legitimidade da ciência e a afirmar alguma suposta validade da metafísica; o
que não se esclarece são as características específicas da metafísica e da
ciência.
Embora
seja um tanto cansativo, importa lembrarmos mais uma vez as respectivas
características: a metafísica é absoluta, reifica as abstrações, rejeita as
mudanças históricas (ou reifica essas mesmas mudanças, ou sugere que tais
mudanças obedecem às vontades das abstrações reificadas). Em contraposição, a
ciência é relativa e crítica e está sempre aberta à revisão de seus
procedimentos e resultados, alterando-se com o passar do tempo; a constituição
da ciência não resultou de um fiat, mas de mudanças sociais,
políticas, culturais ao longo do tempo, ou seja, a constituição da ciência e de
seus fundamentos é histórica e modificável, não sendo de maneira alguma
arbitrária ou absoluta. A conseqüência dessas características é que os próprios
“pressupostos teóricos” da ciência são... “científicos”, ao contrário da
metafísica. Assim, em definitivo qualificar de “metafísicos” os “pressupostos”
da ciência não é um ato descritivo ingênuo, mas uma ação deliberada de
desvalorizar a ciência em favor da metafísica e de produzir confusão conceitual
e intelectual.
Retornando à discussão sobre o
livro de Jammer, parece claro que o melhor seria, sem dúvida alguma, que o
autor – bem como a comunidade científica de modo geral – adotasse uma concepção
mais clara e restrita da “metafísica” – e, nesse caso, parece-nos que a
proposta por Augusto Comte é particularmente adequada.
Para
Comte, a “metafísica” é uma etapa de transição entre a teologia e a
positividade; é meio-caminho, que compartilha características de uma e de
outra; já busca compreender a dinâmica natural, mas adota procedimentos
próprios à teologia. Suas características mais marcantes talvez possam a
seguintes: absoluta; faz uso das entidades abstratas, ou abstrações
personificadas (ou ainda, em linguagem contemporânea, das abstrações reificadas);
além disso, em virtude da incapacidade de desprender-se dos raciocínios
teológicos, lança mão de jogos de palavras e de raciocínios circulares (“o éter
faz dormir porque possui propriedades soporíferas”, “a Natureza tem horror ao
vácuo”).
Convém
notar que a metafísica é mera transição; a ela não se concede a dignidade de
uma etapa estável e durável como são os casos da teologia e da positividade.
Para Comte, a degradação da teologia sempre assume a forma da metafísica, ou
seja, ela é teologia degradada. Ao longo da história isso facilitou as
transições entre fases orgânicas, como entre o politeísmo e o monoteísmo, em
que a filosofia grega – considerada metafísica por excelência – criou as
condições intelectuais para a nova fase, seja como dissolvente da fase
anterior, seja elaborando materiais preliminares. Aliás, é por esses motivos
que a metafísica é crítica, no sentido de destruidora da ordem prévia: incapaz
de construir sobre bases estáveis, destrói o que vê pela frente.
Nas
transições anteriores, as condições sociais permitiam que a passagem ocorresse
de uma fase orgânica para outra sem um interregno crítico muito demorado, pois
o sistema social novo já tinha elementos formados e a transição era gradativa.
Modernamente, todavia, a metafísica cumpriu seu papel dissolvente, mas os
elementos do novo sistema não estão – ou melhor, não estavam – totalmente
formados: somente em termos secundários a ciência constituiu-se, restando toda
a tarefa de constituição central dos fundamentos do sistema positivo. É
necessário notar-se, além disso, que a transição moderna é muito mais profunda
que as anteriores: das civilizações absolutas, belicistas e particularistas, a modernidade deve caracterizar-se pela
relatividade, pelo pacifismo e pelo universalismo.
A
caracterização desse duplo movimento – de destruição da antiga ordem social,
teológica e absoluta, e constituição de uma nova ordem, positiva e relativa –
ocupa vários capítulos das obras de Comte e está na origem das suas reflexões
sociológicas, como se vê nos vários artigos que compõem o seu Opúsculos
de filosofia social (COMTE, 1972), que são suas “obras de juventude”; desse modo, não vem ao caso insistirmos
nela.
O
que importa reter, por outro lado, é que a metafísica é um conceito mais ou
menos acessório para Comte; que ele caracteriza-se pelo absolutismo
filosófico, pela reificação das abstrações, pelo caráter dissolvente em termos
intelectuais e, daí, sociais. Em outras palavras, no Positivismo comtiano não
se confere a centralidade à metafísica que se atribui contemporaneamente (nem
aquela que se afirma que Comte atribuía).
Embora
de modo geral Anthony Giddens (1998) erre nas caracterizações que faz da obra
de Comte, ao indicar a definição comtiana de metafísica ele mais ou menos
acerta: para Giddens, a metafísica em Comte define-se em termos metodológicos; na verdade, sendo mais precisos,
poderíamos indicar: em termos teóricos, isto é, histórico-sociológicos.
Antecipando-nos
ao argumento, vê-se que Augusto Comte não percebe a metafísica como sinônima de
“filosofia”, “valores morais”, “especulação” ou “pressupostos teóricos e
epistemológicos”.
Nesse
sentido, aliás, valem algumas precisões: para Comte, a positividade e o
pensamento positivo não equivalem a cientificidade e a pensamento científico.
Conforme vê-se no Apelo aos conservadores (COMTE, 1899), a palavra
“positivo” define-se como sendo “real, útil, certa, precisa, relativa, orgânica
e simpática”. Deixando de lado a explicação de cada um desses termos, para o
que nos interessa cumpre notar que o espírito positivo tem uma visão global da
realidade e é motivado pelo altruísmo; já a ciência é parcial e não se move
necessariamente pelo altruísmo: nesses termos, o espírito positivo é superior à
ciência.
Por outro lado, Comte procurou definir com clareza a sua epistemologia, que
constituem em parte os seus “pressupostos”.
Sem
deixar de lado o que Augusto Comte escreveu, a importância contemporânea da
“metafísica” liga-se, até certo ponto, à crítica que o Círculo de Viena fez
dela. Caracterizando-a como impassível de verificação empírica, os vienenses
afirmavam que ela é sem sentido e, portanto, como desprezível. O pólo
conceitual oposto era a ciência, percebida como dotada de sentido; o sentido,
por sua vez, era definido como a capacidade de vincular cada afirmação a uma
observação empírica, em um processo de correspondência um-a-um. A teologia era
percebida também como sem sentido, mas, como ela caracteriza-se facilmente pelo
apelo às divindades, sua identificação era fácil e simples; além disso, como a ordem
natural rejeita a ação das divindades, não faria sentido misturar
ordinariamente teologia e ciência: por tais motivos, a teologia ocupa um lugar
bastante marginal nos escritos do Círculo de Viena.
Como
se sabe, o Círculo de Viena constituiu-se em parte com a preocupação de
conferir rigor às elaborações científicas, em termos de suas fundamentações
filosóficas; nesses termos, a distinção entre ciência e metafísica seria um
importante problema. A partir disso, propuseram-se vários “critérios de demarcação”,
como os de Carnap e de Popper e
que de modo geral separavam ciência e metafísica pela já indicada capacidade de
vincular as afirmações teóricas a observações empíricas da ciência e a
simétrica incapacidade da metafísica.
Além
disso, o Círculo de Viena tinha uma exigência adicional para caracterizar a
verdadeira ciência da metafísica: a elaboração de teorias explicativas
apenas após o exame dos fatos; o exame da realidade munido de
teorias prévias seria a formulação e a aplicação de metafísica à ciência.
Essas
idéias do Círculo de Viena até
certo ponto resumem bem as concepções que se tem sobre a metafísica: valores
prévios à pesquisa (bem entendido: valores morais e políticos que não se
referem à prática científica), especulação teórica.
3. O DIÁLOGO ENTRE AS CIÊNCIAS,
OU: QUAL O PÚBLICO LEITOR?
Um outro gênero de questões
surge quando consideramos o público leitor do livro. Evidentemente que, escrito
por um físico profissional sobre um conceito físico, o público básico são os
físicos – estudantes de graduação e pós-graduação, pesquisadores, historiadores
da Física. Todavia, como indicamos anteriormente, o livro também pode ser visto
como de história das idéias, de modo que ele transita, nesse sentido, entre o
âmbito das chamadas “Ciências Naturais” e o das chamadas “Ciências Humanas”.
Evidentemente, há uma perda nessa passagem; essa perda, como indicamos, deve-se
à relativa brevidade do livro, que se mostra curto para quem não domina, por um
lado, os conceitos físicos e, por outro lado, para quem não domina os conceitos
filosóficos.
O que queremos indicar é a
possibilidade de “diálogo” entre as ciências, isto é, a capacidade de os
cultores dos vários ramos da ciência conversarem entre si e compreenderem-se
razoavelmente bem uns aos outros. Um problema básico, sem dúvida, é que, em virtude
do alto grau de sofisticação teórica da ciência moderna, isto é, da ciência
desenvolvida ao longo de todo o século XX, sem um grande cabedal –
especialmente matemático – muitas vezes é difícil compreender inúmeras teorias
físicas. O mesmo já não ocorre com as Ciências Humanas, cujas produções são
redigidas em linguagem corrente que, mesmo quando formalizadas, podem ser
compreendidas com um dispêndio de tempo consideravelmente menor.
Afirmamos há pouco que o livro
de Jammer – ou melhor, os livros de Jammer publicados no Brasil, ou seja, tanto
o relativo ao espaço quanto o relativo à força – podem ser entendidos como
textos de história das idéias; nesse sentido, eles estão na intercessão entre
Ciências Naturais e Humanas. Essa perspectiva curiosamente é inusitada: dizemos
“curiosamente” porque não deveria ser
inusitada. Ciências Humanas e Ciências Naturais lidam com idéias, com a
reflexão do ser humano sobre a sua realidade, social e individual em um caso,
cósmica em outra: em qualquer das situações, trata-se do mesmo ser humano,
submetido aos mesmos constrangimentos físicos, ambientais, sociais e
psicológicos que pesquisa, investiga, imagina e teoriza. É bem verdade que a
aplicação prática das Ciências Naturais é distinta da das Ciências Humanas:
como argumentava Augusto Comte – bem ao contrário do que, aliás,
recriminaram-lhe um século depois os autores da Escola de Frankfurt –, as
Ciências Humanas (Sociologia e Moral) visam ao aconselhamento, seja político,
seja pedagógico; seja psicológico; já as Ciências Naturais resultam
propriamente nas diversas tecnologias, que são desenvolvidas e aplicadas nas
indústrias. Ainda assim, são idéias produzidas pelo ser humano para conhecer e
entender a realidade em que vive, para dar sentido à vastidão que o cerca: nesse
sentido, separar as “Ciências Humanas” das “Ciências Naturais” só é adequado
como recurso analítico, isto é, como procedimento metodológico para análise das
várias partes da realidade. O que valeria, o que deveria valer e importar, seria a concepção global da realidade,
que permitisse entender o ser humano no mundo. Assim, Ciências Humanas e
Ciências Naturais seriam momentos de investigação (científica) que deveriam
dialogar em uma etapa seguinte, ou superior, caracterizada pela síntese
(filosófica): a unidade do ser humano é mantida, o diálogo entre as concepções
também é mantido e é possível que entre as “humanidades” e os “naturalistas”
realizem-se profícuos diálogos.
Esse é um ideal de unidade do
conhecimento humano que, parece-nos, respeita as particularidades das Ciências
Humanas, das Ciências Naturais e – embora não tenhamos comentado nada a
respeito disso antes – preserva (ou confere) a dignidade à Filosofia e às
especulações filosóficas. Parece claro que as artes – entendidas como as
“belas-artes” – têm espaço nessas concepções. Esse ideal foi o defendido por
Augusto Comte; de certa maneira, pode-se dizer que a sua Religião da Humanidade
consiste em um esforço para realizar precisamente esse ideal, cujo conteúdo
humanista parece claro.
Uma concepção parecida
encontramos no livro do físico W. Heisenberg, A parte e o todo (2011), para quem as teorias físicas, acima de
tudo, são idéias que os seres humanos têm sobre a realidade. É claro que essas
idéias não são arbitrárias; elas estão intimamente relacionadas, por um lado,
com teorias que se desenvolveram ao longo do tempo – e que têm refinados
formalismos matemáticos para conferir-lhes rigor –, e, por outro lado, com
experimentos e realidades empíricas, além do bom e velho bom senso. Mas, ainda
assim, por trás dos aparatos experimentais e formalistas, existem idéias que os
seres humanos desenvolvem para compreender sua realidade, idéias que têm a
mesma constituição que as desenvolvidas por poetas, profetas, cientistas,
filoósofos de outras épocas e assim por diante.
Evidentemente, as concepções de
Heisenberg que expusemos sumariamente são bem menos sistemáticas que as de
Comte; mas a proximidade entre ambas parece clara. Os objetos das reflexões específicas em cada uma das ciências são
diferentes mas a reflexão que os seres humanos fazem sobre sua realidade é
comum.
Essas concepções são ao mesmo
tempo um apelo e um fundamento para que Ciências Humanas e Ciências Naturais (e
também Filosofia e Artes (“Belas-Artes”)) mantenham um contato estreito, um
diálogo contínuo. Todos saem ganhando: os livros da Jammer são demonstrações
disso.
Tais idéias talvez pareçam banais.
Não são. Disputas, suspeitas, rivalidades entre as áreas do conhecimento são
antigas e freqüentes. Cohen (2001) indicou como, apenas na Inglaterra, desde o
século XIX já houve pelo menos três “guerras das ciências”, opondo as
“Ciências” (Naturais) às “Humanidades” e/ou às “Ciências Humanas”. A própria
terminologia “Ciências Naturais” e “Ciências Humanas”, mais que meramente
descritiva – indicando as particularidades de objetos e métodos específicos –,
revela projetos epistemológicos e políticos mais profundos, em particular no
ambiente alemão, que opôs às “Ciências Naturais” (Matemática, Astronomia,
Física, Química, Biologia) as “Ciências do Espírito” (Literatura, Sociologia,
Psicologia, Jurisprudência – até mesmo Teologia!), ou seja, um agregado
compósito derivado da oposição entre Kultur
e Zivilitation; essa contraposição
caracterizar-se-ia, mais que pela diversidade de objetos, pela diversidade de
métodos, objetivos e epistemologias: as Ciências Naturais “explicariam” (ou
seja, estabeleceriam relações causais, por meio das leis naturais), ao passo
que as “Ciências do Espírito” “compreenderiam” (ou seja, estabeleceriam “nexos
causais”, relações de sentido subjetivo entre as ações particulares dos
indivíduos também particulares). Os alemães, dessa forma, foram radicais na
cisão: é certo que as Ciências Naturais são idéias, mas elas são fruto do
espírito como que devido a um grande e mero acaso, pois nem de longe elas
oferecem a mesma satisfação íntima que as “Ciências do Espírito”. A ordem
humana é absoluta e radicalmente
diferente da (e superior à) ordem cósmica.
No século XIX da Inglaterra e da
França, de qualquer forma, a oposição às Ciências Naturais não partiu de
supostas “Ciências do Espírito”, mas das “Humanidades”, especificamente da
Literatura. Da segunda metade para o
final do século XIX, com a afirmação institucional da Sociologia, surgiu o que
Lepenis (1996) chamou de “as três culturas”, em que à oposição entre Ciências
Naturais e Humanidades incluiu-se também a Sociologia, que seria ao mesmo tempo
uma intermediária e mais uma parte entre as outras duas.
Nas primeiras décadas do século
XX a busca de uma sistematização das Ciências Naturais, associada a um esforço
na formalização da Lógica e da Matemática, conduziu a uma filosofia que
afirmava radicalmente que o conhecimento é tão-somente e estritamente o que é obtido
de modo empírico; que as afirmações quaisquer têm que ser o mais claras
possíveis e que é necessário que haja correspondências termo a termo entre as
afirmações e as realidades empíricas. Essa filosofia foi a do Círculo de Viena
– logo também conhecida como “Neopositivismo”, “Positivismo Lógico” ou
“Empirismo Lógico” – e, como é fácil de perceber, defendia o primado das
Ciências Naturais sobre outras modalidades de conhecimento humano.
O impacto do neopositivismo foi
bastante grande, imediato e mais ou menos duradouro. Ao longo de todo o século
XX ele fez-se sentir, ainda que não sem contestação e não sem mal-entendidos.
Ainda assim, suas limitações conduziram a polêmicas e a fortes reações, muitas
delas tendendo a cair no extremo oposto. Dois exemplos desse “extremo oposto” –
ainda que exemplos de tipos diversos – são oferecidos pelas obras de Thomas
Kuhn e pelos pós-modernos.
Thomas Kuhn foi um físico que,
tendo que lecionar história da Física, começou a refletir sobre as concepções
físicas de Aristóteles e dos antigos. Habituado a pensar em termos das idéias
de Einstein, de Bohr e de Heisenberg – no máximo em termos newtonianos –, Kuhn
viu-se em maus lençóis quando estudou Aristóteles, pois percebeu que, embora
muito erudito e freqüentemente sensato, seu sistema tinha concepções que não
correspondiam à realidade empírica; mais do que isso, para passar do sistema
peripatético para o newtoniano eram necessárias mais que mudanças incrementais:
era necessária uma alteração radical, uma mudança global de perspectiva, uma
ruptura: uma “revolução”. Foi a partir desse entendimento que T. Kuhn elaborou
a idéia dos “paradigmas”, segundo a qual cada época na ciência (ou em uma
ciência) caracteriza-se por uma visão de mundo amplamente compartilhada, que
indica o que é a boa ciência, quais os bons e verdadeiros problemas, os bons e
verdadeiros métodos, as boas e verdadeiras soluções e assim por diante (da
mesma forma que seus opostos: os problemas, métodos, soluções etc. ruins). Uma teoria científica, portanto,
não é questão somente, ou principalmente, de correspondência de uma teoria e de
seus predicados a observações empíricas; trata-se de uma visão de mundo – em
que há sem dúvida há elementos valorativos e políticos, ou seja,
extracientíficos – que orienta os procedimentos e que estabelece essa
correspondência entre “teoria” e “fatos”. Publicado no início dos anos 1960, o
principal livro de Kuhn – A estrutura das
revoluções científicas – foi visto durante muito tempo como um, senão o
principal, desafio ao neopositivismo; a lógica da pesquisa científica não era
mais questão de lógica e de rigor e passara a ser sociológica.
O conceito de paradigma de Kuhn
é bastante ambíguo, entretanto. Em primeiro lugar, o autor estabelece por
decreto que os paradigmas são incomensuráveis entre si, ou seja, não são
propriamente comparáveis; logo, os resultados teóricos de um não pode ser
transmitidos para outro(s). Em conseqüência, o progresso teórico não existe; ou
melhor, ele ocorre apenas no interior
de um mesmo paradigma: entre os
paradigmas o que ocorre é ruptura, não continuidade; “revolução”, não “progresso”.
É bem verdade que a visão de mundo aristotélica é incompatível com a que
possuímos atualmente, em termos físicos e morais; mas poucas pessoas diriam
que, somente por esse motivo, não seria possível compará-las entre si, seja
para compreendê-las mutuamente, seja para obter mais dados ou interpretações.
De maneira mais clara, o mesmo pode ser dito a respeito das comparações entre
as teorias de Ptolomeu e Copérnico, Kepler e Tycho Brahe etc. Além disso, como
se sabe, embora os pressupostos teóricos e epistemológicos das teorias de
Einstein e de Newton sejam diferentes, tanto as comparações entre elas é
possível que se encara Newton como um caso particular de Einstein.
Em segundo lugar, Kuhn utiliza a
palavra “paradigma” em situações muito diversas. Em alguns casos, torna-a
equivalente a “visão ampla de mundo”, incluindo aí valores morais e políticos,
lado a lado com pressupostos teóricos e metodológicos científicos; em outros
casos, adota uma definição bem mais restrita, equivalente a “teoria científica”
(como visto em La révolution
coperniciènne (KUHN (1973)). Alguém já disse que, ao investigar os sentidos
empregados por Kuhn em seus textos, determinou cerca de 100 acepções
diferentes: é evidente essa variedade prejudica – demais – sua tese.
O que as pesquisas de Kuhn têm a
ver com as relações entre as Ciências Naturais e Sociais? Ora, como
argumentamos antes, sua obra, publicada no início dos anos 1960, apareceu em um
momento em que foi vista como uma refutação ou pelo menos um combate ao neopositivismo;
dessa forma, foi uma afirmação do “discurso” sobre a “lógica” e sobre os
“fatos”.
Ainda assim, bem ou mal, Thomas
Kuhn era um físico que se ocupava das Ciências Naturais e que respeitava a
particularidade das Ciências Naturais. Interpretação diversa, devida a uma
“apropriação” diversa, é feita pelos pós-modernos, conforme exposto pela dupla
de físicos Alan Sokal e Jean Bricmont (2001) no livro Imposturas intelectuais.
É difícil resumir em poucas
palavras as propostas dos pós-modernos. Não porque sejam em si difíceis – na
verdade, o problema com suas teses consiste muitas vezes em que seus
vocabulários tendem a ser bastante rebuscados, beirando o incompreensível –,
mas porque são várias perspectivas mais ou menos paralelas que em comum têm a negação
da ciência e variadas formas de irracionalismo. Assim, exporemos em linhas muito
breves algumas das perspectivas criticadas por Sokal e Bricmont e que têm
importância para o nosso argumento.
Alguns autores de Ciências
Humanas seguem a trilha de Michel Foucault, para quem não há “conhecimento”,
mas apenas “discurso”; além disso, todo “discurso” reflete uma forma de poder.
Dessa forma, Foucault radicaliza a idéia inicial de Francis Bacon – segundo a
qual “saber é poder” – e inverte a fórmula de Clausewitz, afirmando que “a
política é a continuação da guerra”. Dessa forma, a ciência – seja ela a
Ciência Natural, seja ela, principalmente, a Ciência Humana – é simplesmente um
discurso criada para legitimar formas de dominação; in extremis, sempre que abrimos a boca para falar, dominamos
alguém. Não existe conhecimento da realidade; a lei da gravitação de Newton, as
teorias das relatividade de Einstein, as formulações da mecânica quântica de
Planck, Bohr e Heisenberg são modalidades diversas para a dominação –
possivelmente, dos estratos sociais inferiores e, depois, dos povos colonizados
e submetidos ao imperialismo capitalista.
Outros pensadores, como Jacques
Lacan – ao menos na fase final de sua carreira –, têm um comportamento mais
conspícuo. Sendo autores das Ciências Humanas, impressionam-se com o sucesso do
formalismo das Ciências Naturais e procuram-se aproximar-se destas, trazendo um
pouco delas para as suas próprias áreas; com isso, desenvolvem grandes
formalizações, propõem muitas simbologias – várias delas realmente impressionantes (ou seja, expostas com o
objetivo de impressionar). O problema é que tais simbologias, lidas em termos
matemáticos, ou físicos, ou químicos (ou das Ciências Naturais de origem), não
têm sentido: um sentido literal não pode ser afirmado para elas; mas, por outro
lado, os autores que as propõem não sugerem nenhum sentido figurado. Ou melhor,
até sugerem o sentido figurado, mas sem explicar qual ele seria e apenas de
maneira ad hoc, a fim de furtar-se da
responsabilidade de explicar de que maneira o sentido literal seria adequado.
Desse modo, o diálogo entre as ciências é frustrado, pela inveja, pela cópia e
pela fraude.
Uma outra possibilidade criticada
por Sokal e Bricmont é aquela em que se afirma que entre Ciências Humanas e
Ciências Naturais não há diferenças, pois todas são meros “sistemas de
interpretações”. Podemos pensar no sociólogo Bruno Latour, mas também nos
filósofos Richard Rorty e Jean-François Lyotard. Grosso modo, para eles as ciências são produtos da interação
humana, em que os homens dialogam e trocam idéias
e, como tais, são meramente palavras apostas em folhas de papel ou sons
proferidos no ar. A postura extrema é a de Derrida, para quem “não existe nada
fora do texto”: a realidade social é um texto, minha vida é um texto, o HIV que
infesta um doente com SIDA é um texto, as palafitas dos miseráveis que habitam
cidades ribeirinhas do Brasil e do mundo afora são textos. Ora, o texto, por
definição, é subjetivo, pode ser discutido de infinitas formas, não tem “certo”
nem “errado”, não é passível de intervenção objetiva. O texto simplesmente é.
As idéias de Latour, Rorty e
Lyotard têm uma ponta de verdade: as ciências são práticas humanas e, nesse sentido,
são subjetivas, pois mobilizam subjetividades: idéias, palavras, imaginações,
concepções, visões de mundo, paixões e por aí vai. Contudo, tais subjetividades
são a todo momento controladas: os “fatos” não
são “mitos”, por mais que os chamados “pós-positivistas” digam o contrário; todas as vezes que eu lançar uma pedra
no ar e não houver um anteparo embaixo dela, ela cairá, independentemente das
interpretações em jogo. O formalismo matemático, embora em inúmeras ocasiões
seja confundido como sinônimo de cientificidade, permite um controle lógico que
evita desvãos subjetivos. Por outro lado, um elemento basilar da ciência é a
sua publicidade: a crítica pública, aberta, franca, vinda de diversas
perspectivas é o critério mais seguro de controle da subjetividade. Ninguém aí
está afirmando o banimento da subjetividade: o que se afirma é o seu controle,
isto é, sua delimitação, sua circunscrição, sua devida orientação.
Sokal e Bricmont denunciam ainda
outros autores das Ciências Humanas que palpitam nas Ciências Naturais.
Gostaríamos apenas de indicar Henri Bergson: esse influente filósofo, cujo
pensamento deixou marcas mesmo sobre a obra de Lévi-Strauss, pretendeu manter
um diálogo, mesmo um debate, com Einstein a propósito da teoria da
relatividade, em particular a respeito dos conceitos de tempo e espaço. O
problema é que Bergson era apenas e tão-somente filósofo, sem conhecimentos de
Física, ao passo que Einstein era físico e tinha conhecimentos de Filosofia: o
trágico é que as contra-intuitivas idéias de Einstein são – e eram muito mais –
difíceis de entender que as concepções filosóficas de Bergson, a cujas palestras
acorriam dezenas ou centenas de pessoas.
4. COMENTÁRIOS FINAIS
O objetivo deste artigo foi
comentar um livro recém-publicado – Conceitos
de força – estudo sobre os fundamentos da dinâmica. Como indicamos, ele
parece inicialmente se direcionar para leitores interessados nas Ciências
Naturais, mas com um pouco de esforço – bem, talvez com um esforço um pouco
maior que somente “um pouco” – ele é proveitoso para leitores interessados nas
Ciências Humanas e nas coisas humanas em geral. Nesse sentido, é uma publicação
de excelente qualidade, feita em excelente momento.
Ao longo deste artigo comentamos
algumas questões suscitadas pelo livro; algumas disseram diretamente respeito
ao texto, outras foram sugeridas por sua leitura. A brevidade das observações
históricas e teóricas é um problema de acesso para quem não conhece,
respectivamente, Ciências Humanas e Ciências Naturais: se corrigir essas limitações
estivessem além das possibilidades do autor – cuja obra, em si, já foi vultosa
–, a editora poderia fazer apêndices informativos. Já a imprecisão
terminológica da palavra “metafísica” é inteiramente de responsabilidade do
autor: na verdade, não deixa de ser notável que em um livro dedicado à
exploração teórica, conceitual, terminológica e etimológica da “força”, o autor
permita-se uma imprecisão tão grande com uma palavra que suscite tantas e tão
grandes polêmicas e mal-entendidos.
Por outro lado, os historiadores
das Ciências Naturais estão em contato direto e natural com as Ciências
Humanas, mesmo que estas e/ou aqueles não o reconheçam. Ainda assim, são
diálogos possíveis e necessários. Como argumentamos antes, esses ramos
científicos integram um galho maior da Ciência, que, por sua vez, integra a
árvore do conhecimento humano: a idéia de unidade deve presidir tudo.
Assim como devemos ser capazes
de ter vistas gerais da natureza – e, para isso, o livro de Jammer presta um
grande serviço –, também devemos ser capazes de ter vistas gerais da sociedade.
Assim como devemos conhecer o mundo, devemos conhecer a sociedade. Assim como
devemos conhecer ciência, devemos conhecer artes. Se as ciências têm alguma
utilidade além da mera acumulação de “fatos”, “dados” e teorias, é contribuir
para o melhoramento humano: esse desiderato só é alcançável com a integração
das perspectivas.
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