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26 dezembro 2023

Elementos da teoria positiva da arte

No dia 24 de Bichat de 169 (26.12.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência, dedicada ao conjunto do regime positivo.

Na parte do sermão abordamos elementos da teoria positiva da arte.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/vyxnD) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/yKNay). O sermão começou em 53 min 50 s.

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Elementos da teoria positiva da arte 

-        O Positivismo afirma com todas as letras a importância da subjetividade

o   Por exemplo, bastante pensarmos na centralidade do “método subjetivo”

-        A subjetividade no Positivismo assume vários âmbitos:

o   Por um lado, ela tem uma possibilidade social (é basicamente nesse sentido que falamos da “síntese subjetiva” e que fundamenta a moralidade positiva) e uma possibilidade individual (que é estudada pela ciência da Moral e modificada pelo culto positivo e pelas técnicas associadas à Moral)

o   Por outro lado, a subjetividade pode ser entendida como a afetividade (ou sentimentos, ou amor, ou altruísmo) e/ou como a inteligência, cada uma das quais tem suas próprias leis

-        Da mesma forma, Augusto Comte concentra-se na sistematização e na regularização do que é verdadeiro, do que é bom e do que é belo

o   Todos esses âmbitos são ordenados e regularizados pela moral, que se mantém suprema sobre todos eles

o   Eis como esses âmbitos relacionam-se com as grandes produções humanas:

§  O verdadeiro é investigado pela filosofia, a partir das bases científicas

§  O que é bom é desenvolvido pela política e aplicado pela indústria

§  O que é belo é elaborado pela arte

o   Por “artes” entendemos as “belas-artes”

§  Essa observação é necessária para distinguir as “belas-artes” das chamadas “artes práticas”, cujo âmbito é o da indústria e que consiste em todas as aplicações práticas dos conhecimentos científicos

-        Os livros de Augusto Comte, bem como dos positivistas, desenvolvem longamente as questões relativas à verdade e ao bom, dedicando-se menos a respeito do belo, cuja importância, entretanto, não apenas não é negada como é todo momento exaltada

o   Há uma certa deficiência em relação ao belo e à poesia e, não por acaso, também em relação ao culto positivo e à liturgia positiva

-        Augusto Comte trata da arte em dois momentos principais:

o   No capítulo quatro do Discurso (preliminar) sobre o conjunto do Positivismo, intitulado “Aptidão estética do Positivismo”; esse livro foi originalmente publicado em 1848 e depois, em 1851, inserido com alterações tópicas como introdução geral ao volume primeiro do Sistema de política positiva; esse capítulo tem 46 páginas

o   No capítulo quarto do volume segundo do Sistema de política positiva, intitulado “Teoria positiva da linguagem humana” e publicado em 1852; a teoria da arte é reapresentada e desenvolvida em meio às reflexões sobre a linguagem; esse capítulo também tem 46 páginas

o   Além desses dois capítulos, há reflexões feitas de passagem sobre as artes, as produções artísticas e os gênios artísticos em todos os capítulos que Augusto Comte escreveu, em particular em sua fase religiosa e em particular quando aborda o culto positivo, em seus inúmeros aspectos

-        Neste sermão abordaremos apenas alguns aspectos da teoria positiva da arte

o   Nos dois capítulos indicados acima, como sempre acontece, as reflexões desenvolvidas por Augusto Comte são densas e conjugam aspectos artísticos, filosóficos, morais e sociológicos

§  Dessa forma, o que exporemos aqui é bastante elementar, mesmo quase superficial

o   Adicionalmente, devemos notar que, pessoalmente, nossa atenção sempre se voltou para questões políticas, sociológicas, filosóficas, científicas e epistemológicas

§  Em outras palavras, pessoal e lamentavelmente, ao longo de nossa carreira profissional não nos concentramos tanto nos aspectos mais diretamente artísticos do Positivismo

-        Três aspectos elementares sobre as artes:

o   Antes de mais nada, as artes (como as linguagens) atuam no sentido de passar para fora o que existe no interior do ser humano

§  Enquanto as linguagens realizam essa tarefa a respeito de tudo o que existe no interior do ser humano (isto é, da subjetividade individual), as artes externalizam em particular os sentimentos

o   Em segundo lugar, a arte integra a subjetividade, mas seu âmbito é diferente daqueles já apresentados (os sentimentos e a inteligência): trata-se da imaginação

§  O Positivismo regula a imaginação, da mesma forma que regula os sentimentos e a inteligência

§  Mas, à parte a arrogância e a secura próprias à inteligência, o fato é que a imaginação exige ainda mais a regulação

o   Em terceiro lugar, o ser humano historicamente é antes artístico que filosófico ou industrial

§  Para Augusto Comte, a linguagem humana é inicialmente cantada, assim como as representações de objetos são todas elas artísticas

-        Para regularizar as artes – e também a imaginação –, Augusto Comte estabelece os seguintes princípios, metas e objetivos:

o   A função da arte é idealizar a realidade para realizar o aperfeiçoamento moral do ser humano

§  Sendo repetitivo, é necessário reiterar: o objetivo da arte é permitir o aperfeiçoamento humano, a partir das idealizações

·         Elaborações degradantes, meramente humilhantes, estimuladoras do ódio etc.: nada disso merece o título de “artísticas” e devem ser desprezadas

·         O objetivo da arte não é estimular os sentidos, nem meramente estimular quaisquer sentimentos, nem ser sistematicamente “crítica”

§  As idealizações artísticas devem estimular os bons sentimentos; mas isso não necessariamente significa retratar apenas os bons sentimentos:

·         Por exemplo, as peças de Shakespeare retratam a inveja, o ciúme, a burrice, a tristeza, a mesquinhez (Otelo; Ricardo III; Rei Lear; Macbeth; Hamlet) – e claramente aprendemos que tudo isso é ruim, errado ou, pelo menos, que deve ser evitado

·         Outro exemplo: as peças de Ésquilo e de Sófocles apresentam grandes valores humanos, a partir de dramas intensos, sacrifícios etc. (Prometeu acorrentado; Sete contra Tebas; Édipo-rei)

o   A idealização da realidade dá-se com base nos resultados indicados pela ciência e pela moral e por meio do aumento de alguns traços, positivos (com a concomitante supressão ou diminuição de outros traços, negativos)

§  Não por acaso, essa regra é a mesma empregada no culto íntimo, com as orações positivistas

§  Essas modificações evidenciam que a arte baseia-se necessariamente em procedimentos de abstração

o   Assim, a arte (e, de modo geral, a imaginação) deve respeitar a realidade – embora não de maneira servil

o   Além dessas indicações específicas para a imaginação e para a arte, há inúmeras outras orientações para a harmonia mental em toda a obra de Comte, em particular sumariadas nas 15 leis de filosofia primeira

o   Vale a pena lembrar que as elaborações científicas também consistem em idealizações: mas são idealizações da realidade, não dos sentimentos

-        Augusto Comte considera que há três passos na elaboração artística:

o   (1) a imitação, (2) a idealização, (3) a expressão

o   A imitação consiste em reproduzir o que já existe, seja em termos da realidade, seja em termos da produção artística já existente

§  Para Comte, embora o verdadeiro poeta seja sempre inovador, não se deve levar demasiadamente a sério as preocupações com a imitação, pois todos sempre imitam em algum grau

o   A idealização é a elaboração mental, ao mesmo tempo afetiva e intelectual; assim, ela é puramente interna, isto é, subjetiva

o   A expressão é o passo em que a obra de arte efetivamente toma corpo, a partir da idealização subjetiva; em outras palavras, é a parte objetiva da produção artística

-        A partir dos princípios de classificação (generalidade decrescente, particularidade crescente), Augusto Comte classifica as artes da seguinte maneira:

o   (1) Poesia, (2) Música, (3) Pintura, (4) Escultura, (5) Arquitetura

§  Como se vê, para Comte as artes fundamentais são cinco, que vão da mais geral para a mais técnica

§  A poesia é a arte mais geral, que fundamenta e orienta todas as demais

o   Essas artes são as artes fundamentais; outras modalidades de arte são derivações (ou extensões) ou combinações dessas cinco

§  Alguns exemplos:

·         O teatro é uma extensão da poesia

·         A ópera – que era uma preferência pessoal de Augusto Comte – é uma combinação da poesia e da música (e da pintura)

·         A dança é uma combinação da música e da escultura (e, antes, da poesia)

-        Como comentamos na prédica da semana passada (em que abordamos o progresso e a esperança em face do cinismo atual), atualmente é imperativo revalorizarmos as utopias

o   Para Augusto Comte, as utopias são uma verdadeira expressão poética moderna

o   As utopias devem orientar-se para o futuro, sem que, todavia, os artistas positivistas ignorem a idealização do passado (e mesmo do presente)

o   Para Comte, as utopias antecipam em cerca de dois séculos os programas políticos a serem aplicados

§  Evidentemente, para revalorizarmos as utopias, devemos revalorizar (pelo menos de maneira sincera e explícita) a noção de progresso e passar a desprezar sistematicamente as degradantes “distopias”, que são produções do século XX e particularmente apoiadas pela “indústria cultural”

§  A rejeição das distopias na verdade integra uma recomendação mais geral de Augusto Comte, no sentido de que, para bem apreciarmos as (boas) obras de arte, é necessário rejeitarmos as mediocridades artísticas

o   As utopias têm um aspecto suplementar inaudito em termos políticos e sociológicos:

§  Na medida em que as previsões sociológicas apresentam um caráter geral, os seus detalhes específicos ficam faltando – e é aí que as utopias desempenham um papel central, ao apresentar e completar os detalhes

§  Deveria ser evidente – mas o cinismo moral e a metafísica intelectual característicos de nossa época e de nossa civilização impedem que seja de fato evidente – que esse a complementação das previsões sociológicas pelas utopias deve ocorrer sempre estimulando o altruísmo e os bons sentimentos

o   Em certo sentido, podemos dizer que os artistas positivistas são sistematicamente utópicos

§  Assim, em termos literários, o Positivismo aproxima-se do romantismo e mesmo do classicismo

·         Todavia, “teóricos” e historiadores da literatura acham-se autorizados, a partir de uma certa coincidência temporal, meramente cronológica, a afirmar que o Positivismo seria representado ou afirmado nas escolas literárias realista e/ou naturalista, com o cinismo, o ceticismo, o pessimismo, o darwinismo social, a degradação moral e social etc. tão próprios a essas escolas

o   É claro que essa aproximação só é possível com base em procedimentos preguiçosos, molengas e preconceituosos

§  Muito longe de esgotar os nomes possíveis, podemos indicar como grandes poetas positivistas brasileiros[1]:

·         José Mariano da Silveira, Montenegro Cordeiro, José Martins Fontes, Edgar Proença Rosa, Branca Dulcina Bagueira Sampaio, Paulo de Tarso Monte Serrat

§  Muito longe de esgotar os nomes possíveis, podemos indicar como grandes pintores e escultores positivistas brasileiros:

·         Demétrio Ribeiro, Eduardo de Sá

-        Os sacerdotes da Humanidade devem todos ser bastante sensíveis às artes e, na medida do possível, também devem ser artistas

o   A apreciação artística tem um caráter passivo, evidentemente, ao contrário da produção artística

o   A sensibilidade artística dos sacerdotes da Humanidade – nos termos indicados aqui, é claro – tornar-nos-á plenamente superiores aos sacerdotes teológicos (em particular monoteístas)

-        Assim como os sacerdotes da Humanidade devem manter-se cuidadosamente afastados do poder Temporal (pois constituem o poder Espiritual), os artistas também devem ficar longe do poder

o   Os artistas são integrantes assessórios do poder Espiritual

o   Na verdade, a vedação de integrar o poder Temporal deve ser muito mais rígida no caso dos artistas, devido à sua relação mais frágil com a realidade e com os requisitos morais do poder Espiritual

o   Assim, os artistas subordinam-se moral e intelectual ao sacerdócio, ou seja, aos filósofos positivos



[1] Uma relação mais completa (mas, certamente, também incompleta) é sempre o livro de Ivan Lins, História do Positivismo no Brasil.

13 dezembro 2023

Napoleão avaliado pelo Positivismo

No dia 10 de Bichat de 169 (12.12.2023) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua nona conferência (dedicada ao conjunto do regime).

No sermão abordamos a avaliação feita por Augusto Comte sobre Napoleão Bonaparte, considerando o lançamento, no final de novembro de 2023, do filme homônimo dirigido por Ridley Scott.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (https://l1nq.com/pDP30) e Igreja Positivista Virtual (https://acesse.one/BHE41). Infelizmente, devido a problemas técnicos causados pela empresa NET-Claro, o sinal de internet pifou por volta de 28 min 57 s, interrompendo a transmissão no canal Positivismo. Como a empresa Meta-Facebook decidiu tirar do ar as transmissões após o prazo de 30 dias, a fim de manter a memória dessa prédica baixamos o respectivo vídeo do canal Igreja Positivista Virtual e carregamo-lo no canal Positivismo.

O sermão começa aos 51 min.

As anotações que serviram de base para a exposição oral estão reproduzidas abaixo.

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Napoleão à luz do Positivismo
 

-        No final de novembro de 2023 estreou o filme Napoleão, dirigido por Ridley Scott e interpretado por Joaquim Phoenix

o   Ridley Scott já dirigiu grandes filmes históricos, como Cruzada (embora tenha feito algumas tolices, como a ficção espacial Alien e, em menor medida, Blade Runner)

-        O caso de Napoleão é exemplar da situação em que um “grande homem” não é a mesma coisa que alguém a ser celebrado e/ou valorizado

o   Outro caso, mais contemporâneo para nós, é o de Hitler

-        Aliás, o caso de Napoleão é interessante porque permite de uma única vez desfazer três mitos:

o   O mito de que existiria a chamada “história positivista” e que ela consistiria no “culto aos grandes homens”

§  A história positivista é, acima de tudo, uma sociologia que se desenvolve ao longo do tempo, ao mesmo tempo em termos intelectuais, políticos e morais

·         Mas, ao mesmo tempo, Augusto Comte tinha clareza de que muitas vezes os “acidentes históricos” são determinantes (assassinato de Júlio César; morte de Hoche e ascensão de Napoleão)

§  O culto aos grandes homens realmente existe no Positivismo, mas ele tem um caráter cultual, de valorização das ações construtivas dos seres humanos, e não propriamente intelectual, de explicação sociológica

o   O mito de que basta ser um “grande homem”, ou melhor, um “homem famoso”, ou um líder com grande poder, para que esse homem/líder mereça ser celebrado, no âmbito do culto público

o   O mito de que Napoleão, em particular, merece ser valorizado e/ou celebrado

§  Nesse sentido, é notável que muitas pessoas, que se dizem “críticas” reclamem que o filme em questão não seja elogioso e/ou um retrato mais fiel do tirano retrógrado

§  Na verdade, há gente que se diz “plural”, “aberta” e/ou “democrata” mas que consegue ao mesmo tempo criticar o militarismo no Brasil e, contraditoriamente, elogiar Napoleão como um “grande líder”!

-        No âmbito do Positivismo, além dos aspectos indicados acima, Napoleão integra várias outras reflexões:

o   Por um lado, ele integra plenamente a reflexão sobre a Revolução Francesa e, assim, a filosofia da história proposta por Augusto Comte – em particular, em termos de traição, degradação e corrupção dos altos, esperançosos e fraternos ideais e das práticas revolucionárias

§  Na edição da editora Akal (Augusto Comte, Física social, Madrid, Akal, 2012[1]), a avaliação de Napoleão por Augusto Comte estende-se pelo menos da página 1021 até a página 1034 e encontra-se presente na lição n. 57 do Sistema de filosofia positiva, dedicada principalmente ao exame sociológico da Revolução Francesa

o   Por outro lado, o culto retrógrado e militarista a Napoleão é substituído pelo culto republicano a Joana d’Arc

-        Dito isso, algumas datas mínimas, para termos clareza do que tratamos:

o   Nascimento em 1769, na Córsega (então recém-incorporada à França)

o   1789: início da Revolução Francesa

o   1792: início do governo da Convenção Nacional

o   1793: generalato, no comando do Exército da Itália

o   1794: proclamação da República, após a execução de Luís XVI

o   1798: campanha do Egito

o   1799: golpe civil-militar, com o estabelecimento do Consulado; torna-se o “Primeiro Cônsul”

o   1802: restabelecimento da escravidão no império francês, em particular no Haiti

o   1804: coroado “imperador dos franceses”

o   1812: derrota na campanha da Rússia

o   1813-1814: derrota perante a Sexta Coligação; invasão da França e ocupação de Paris; exílio em Elba (na costa da Itália)

o   1814: entronização de Luís XVIII

o   1815: retorno no período dos Cem Dias; derrota em Waterloo e exílio em Santa Helena (no meio do Atlântico Sul)

o   1816: retorno de Luís XVIII

o   Morte em 1821, no exílio, aos 51 anos

-        Quando a Revolução Francesa estava em seus momentos finais, a ditadura militar era cada vez mais o desfecho previsível e mesmo necessário

o   A ditadura militar tornou-se cada vez mais inevitável, na medida em que as guerras revolucionárias afastavam-se da defesa contra invasões externas, levavam os exércitos para solos e costumes estrangeiros, afastavam-nos dos assuntos internos, vinculavam-se menos com o patriotismo geral, identificavam-se mais com os líderes militares, deixavam de subordinar-se ao poder civil; por fim, as agitações metafísicas pareciam requerer, para sua compressão, a atuação militar

o   Lázaro Hoche (1768-1797) era o grande general que se divisava como provável líder progressista dessa ditadura militar, mas sua morte prematura deu lugar ao imerecido Napoleão

o   Eis o trecho em que Augusto Comte avalia o advento de Napoleão, no curso da Revolução Francesa:

Por tanto, era sin lugar a dudas imposible que el conjunto de tal situación no condujese enseguida a la instalación espontánea de una verdadera dictadura militar, cuya tendencia, retrógrada o progresiva, por lo demás, a pesar de la influencia natural de una reacción pasajera, tenía que depender en gran medida, y sin ninguna duda más que en ningún otro caso histórico, de la disposición personal de aquel que habría de honrarse de ello, entre tantos ilustres generales que la defensa revolucionaria había suscitado. Debido a una fatalidad eternamente deplorable, esta inevitable supremacía, a la que el gran Hoche parecía estar en un principio tan oportunamente destinado, le cayó en suerte a un hombre casi ajeno a Francia, surgido de una civilización retrasada, y especialmente animado, bajo el secreto impulso de una naturaleza supersticiosa, por una involuntaria admiración hacia la antigua jerarquía social, mientras que la inmensa ambición que le devoraba no se encontraba realmente en armonía, pese a su vasto charlatanismo característico, con ninguna eminente superioridad mental, salvo la relativa a un indiscutible talento para la guerra, mucho más ligado, sobre todo en nuestros días, a la energía moral que a la fuerza intelectual (Filosofia, lição 57, p. 1023)[2]

-        Vários aspectos da avaliação de Napoleão por Augusto Comte:

o   Napoleão não entendeu o espírito da época, preferindo (mesmo que secretamente, ou melhor, hipocritamente) o Antigo Regime e sentindo-se à vontade apenas nele; além disso, mesmo em meio à necessária ditadura militar que teria lugar na França, Napoleão poderia e deveria ter estimulado e orientado melhor os esforços nacionais para a reorganização social, no sentido da positividade, da paz, da fraternidade – como esteve muito claro para líderes que foram grandes chefes militares e grandes estadistas, anteriores a Napoleão, como Cromwell, Richelieu e Frederico II

o   Napoleão foi ativamente militarista, monarquista e traidor dos ideais da Revolução Francesa: ele realizou a “ressurreição oficial do catolicismo”; o “estimulo sem exemplo que então receberam todos os instintos egoístas não dispensou o espírito militar de fundar sua orgia final sobre um recrutamento forçado” (Catecismo, p. 444)[3]

o   A defesa nacional forçada pelas contínuas e generalizadas guerras de conquista provocadas por Napoleão foi o único meio de conjugar a glória nacional francesa com a preservação da memória desse líder degradante:

“La vergonzosa forma de este indispensable derrocamiento ha constituido desde ese momento la única base sobre la que se ha hecho posible establecer, con una especie de éxito pasajero, una aparente solidaridad entre nuestra propia gloria nacional y la memoria individual de aquel que, más nocivo para el conjunto de la humanidad que ningún otro personaje histórico, siempre fue especialmente el más peligroso enemigo de una revolución de la que una extraña aberración ha obligado a veces a proclamarlo el principal representante (Filosofia, lição 57, p. 1028-1029)[4]

o   Napoleão pretendeu criar uma nova dinastia, com a pretendida reconstituição – degradada e servil – do catolicismo oficial, sob a justificativa de conceder estabilidade ao regime

o   É necessário afirmar que o militarismo ativo era o meio empregado para que não se evidenciasse o ridículo da renovada monarquia napoleônica

o   Napoleão corrompeu a moral nacional francesa, estimulando a tirania e oferecendo a Europa de butim como contrapartida à degradação moral

§  O conjunto da política imperial levou a França a oscilar entre duas vergonhas: ou a violência de suas armas ou a traição de seus princípios

§  Ele pôs a França em perigo e estimulou a retrogradação na Europa, ao estimular a criação de coalizões retrógradas contra o imperialismo napoleônico

o   Contra as intenções militaristas, imperialistas, monarquistas e clericalistas de Napoleão, as “invasões imperiais” estimularam os anseios de liberdade e independência nos povos invadidos, o que, indiretamente, de fato favoreceu a difusão dos ideais revolucionários

-        O culto a Napoleão era considerado por Augusto Comte como irracional e imoral; além disso, o seu nacionalismo chauvinista era encarado como desprezível e indigno da França

o   O culto a Napoleão baseava-se no estímulo direto da vaidade nacional francesa, além de um estímulo geral aos vícios próprios a todos os seres humanos

§  Como indicamos antes, o culto a Napoleão exigia o militarismo ativo, a fim de distrair a atenção para o ridículo da coisa

o   No lugar do culto a Napoleão, Augusto Comte afirmava a necessidade de substituição pelo culto a Joana d’Arc, que conduziu a França à vitória final – em particular, garantindo a independência do reino – no final da Guerra dos Cem Anos (1337-1453)

§  Como indicamos antes, o culto positivista a Joana d’Arc, realizado pelo menos até a I Guerra Mundial, era plenamente republicano e secular

§  A afirmação pública do culto a Joana d’Arc em substituição ao de Napoleão foi feita por Augusto Comte na conclusão de um de seus cursos de história da Humanidade, sendo efusivamente aplaudido

o   Adicionalmente, vale notar que Augusto Comte, ao começar a projetar o culto público e o calendário positivista concreto em 1847, considerou que o último dia do ano deveria ser consagrado à reprovação pública de alguns tipos

§  Considerações posteriores indicaram que um tal tipo de prática pública seria antipositiva e contrária ao altruísmo, ao estimular o ódio e, no final das contas, ao também celebrar personagens que devem ser desprezadas

§  De qualquer maneira, Augusto Comte considerou inicialmente três nomes, depois reduzidos para dois: o imperador Juliano, o apóstata; Felipe II (depois excluído dessa consagração às avessas) – e, acima de todos, Napoleão

-        É perfeitamente válida a aproximação da figura de Napoleão da de Hitler

o   Aspectos de aproximação:

§  Ambos foram militaristas e imperialistas

§  Ambos ansiaram dominar toda a Europa

§  Ambos foram, portanto, profunda e violentamente retrógrados

o   Aspectos de distanciamento:

§  O projeto hitleriano envolvia necessariamente o genocídio racista dos judeus e de outros grupos sociais; além disso, as ações de Hitler resultaram na destruição e posterior divisão da Alemanha: os alemães não se esquecem do segundo elemento e o mundo não perdoa o primeiro elemento

§  Napoleão não destruiu a França; mas é claro que suas ações institucionais permitiram a substituição orgânica do seu império pela monarquia que tinha sido gloriosamente extinta cerca de 20 anos antes

§  Sendo bem franco: é o chauvinismo francês mantém o mito napoleônico – estimulado desde o início pelo próprio Napoleão!

·         Inversamente, o genocídio praticado por Hitler, o seu sistemático antissemitismo, a destruição total que ele causou à Alemanha e a reação universal contra o nazismo tornaram (não por acaso e com justiça) inaceitável qualquer menção a ele

o   Por certo que Augusto Comte viveu quase um século antes de Hitler; mas podemos sugerir o seguinte:

§  Sem desculpar nada das ações de Hitler, o fato é que ele consistiu claramente em um “ponto fora da curva” e, portanto, apresenta um caráter excepcional

§   Napoleão, por outro lado, atuou inserido no processo histórico da Revolução Francesa; podendo liderar esse processo, ele conscientemente escolheu trair e corromper os ideais desse processo

·         Assim, Napoleão não foi um “ponto fora da curva”, mas ele escolheu levar a curva para a direção errada



[1] Vale notar que essa edição é bastante ambígüa. Por um lado, é uma tradução bem feita, do francês para o espanhol, de muitos capítulos do Sistema de filosofia positiva, em particular as lições 46 a 57, ou seja, os volumes 4, 5 e metade do 6. Injustificadamente o organizador decidiu deixar de lado as lições 58 a 60, que concluem a referida obra. Todos esses capítulos – do 46 ao 60 – correspondem à fundação da Sociologia de Augusto Comte, errada mas propositalmente chamada de “Física Social”. Por fim, o tradutor – Juán R. Goberna Falque – redigiu uma longa introdução, bem como inseriu muitas notas explicativas; refletindo a ofensiva ambigüidade do emprego da expressão “Física Social”, tanto a introdução quanto muitas das notas são aviltantes e desmerecem profundamente, a partir do mais banal cientificismo academicista, a obra de Augusto Comte. Em suma, resta apenas a tradução (incompleta) da primeira Sociologia de Augusto Comte.

[2] Augusto Comte, Física social, Madrid, Akal, 2012.

[3] Augusto Comte, Catecismo positivista, 4ª ed., Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1934.

[4] Augusto Comte, Física social, Madrid, Akal, 2012.