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27 abril 2024

Moral pública: não mentir e não trair

O trecho abaixo, escrito por Augusto Comte (1798-1857) no início da undécima conferência do Catecismo positivista (1852), é notável.

Nele, o fundador da Sociologia indica de que maneira deve-se entender o preceito republicano de que a política deve submeter-se à moral: por meio da realização da fórmula “Viver às claras” (“vivre au grand jour”, no original em francês). Essa máxima significa basicamente que todos devemos adotar parâmetros em nossas condutas (sejam privadas, sejam públicas) que possam ser “publicamente confessáveis”, isto é, que possam ser justificadas para o grande público (e, bem entendido, aceitas pelo grande público).

Mas, enquanto no âmbito privado o “público” do “viver às claras” de modo geral corresponde à família, aos amigos e, talvez, aos colegas de trabalho, no âmbito cívico o “público” corresponde ao conjunto da sociedade e à opinião pública. Isso, por sua vez, tem duas conseqüências. No que se refere aos líderes – ou seja, tanto no que se refere aos ocupantes de cargos públicos quanto aos líderes que atuam no chamado “setor privado” –, a sua vida privada deve estar sob escrutínio público; o sentido disso não é para fofocas, intrigas etc., mas para que a sociedade saiba se, como e em que grau os líderes são honestos, são corretos etc. Por outro lado, o “viver às claras” no âmbito público implica duas regras específicas: falar a verdade e cumprir as promessas. Ou, por outra, não mentir e não trair (ou não enganar).

Viver às claras, escrutínio público moral (mas não moralista) da vida privada dos líderes, não mentir, não trair: esses princípios resumem a moral pública. Esses princípios são tão simples e tão importantes quanto são desrespeitados (ou são distorcidos). Além disso, a relevância desse trecho dá-se na medida em que Augusto Comte põe-se frontalmente contra uma certa tradição de pensamento político ocidental, iniciada com Nicolau Maquiavel [1] e que continua desde o século XVI até os dias atuais: é a tradição segundo a qual é errado aplicar parâmetros morais à política, ou, dito de outra maneira, a política não deve se submeter à moral. Sob um rótulo de “cientificidade” que, não por acaso, aproxima-se do cinismo, a proposta de que a política deve ser amoral logo se converte, ou logo se revela, em práticas francamente imorais, justificando mentiras, traições e a famosa “política do poder”, que é a aplicação cada vez mais clara da violência na política (nacional ou internacional). Para quem considera correto separar a política da moral, não deve existir nenhum problema em escândalos de corrupção, assassinatos políticos, brutalidade policial, privilégios político-sociais, parcialidade judicial etc. Para o fundador do Positivismo, tudo isso é altamente problemático e vai contra a verdadeira política republicana, na medida em que nega, ou rejeita, a submissão da política à moral.

Alguns esclarecimentos preliminares antes de citar diretamente Augusto Comte. O trecho abaixo é do Catecismo positivista, que é uma exposição do Positivismo dirigida ao povo, isto é, aos proletários e às mulheres. Essa exposição apresenta-se na forma de um diálogo, ou seja, de uma conversa com aspecto didático, em que o coração sugere as questões e a inteligência responde a elas. (Considerando o aspecto de diálogo do livro, cada capítulo é intitulado como “conferência”, a partir do francês “entretien”; mas poderíamos também traduzir por “diálogo” ou “conversa”.) A tradução que usamos é a de Miguel Lemos, fundador da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil, em sua quarta edição, de 1934 (páginas 352 a 355) – edição divulgada na coleção “Os pensadores” –; as duas notas indicadas com asteriscos são da autoria de Miguel Lemos.

O “regime” a que se refere Comte é a parte da religião que trata das relações sociais e da vida concreta, assim como, antes, o “culto” é a parte da religião que sistematiza e estimula os sentimentos; o “dogma” é a parte que trata da inteligência.

Por fim, a “anarquia” a que se refere Augusto Comte no final do trecho corresponde à ausência de parâmetros sociais e morais amplamente compartilhados na sociedade. Para Comte, os grandes e graves conflitos sociais da atualidade têm origem, em última análise, nessa anarquia: as disputas entre revolucionários e retrógrados, as lutas de classe, as lutas de sexo, as lutas “raciais”, os conflitos internacionais. Daí a necessidade de parâmetros humanos, claros, compreensíveis, compartilhados; em outras palavras, daí a necessidade da Religião da Humanidade. 


*          *          * 


A MULHER – Agora, meu pai, eu quisera saber se, além da relação geral entre o regime público e o regime privado, este não suscita disposições que possam nos preparar para o outro.

O SACERDOTE – [...]

Quanto às disposições da existência doméstica, esta suscitará sobretudo a melhor aprendizagem desta regra fundamental que cada um se deverá impor livremente, como base pessoal do regime público: Viver às claras. Para esconderem suas torpezas morais, nossos metafísicos fizeram prevalecer a vergonhosa legislação que ainda nos proíbe escrutar a vida privada dos homens públicos. Mas o Positivismo, sistematizando dignamente o instinto universal, invocará sempre a escrupulosa apreciação da existência pessoal e doméstica como a melhor garantia da conduta social. Como ninguém deve aspirar senão à estima daqueles a quem também estima, não somos obrigados a dar a todos, sem distinção, conta habitual de nossas ações quaisquer. Porém, por mais restrito que possa vir a ser, em certos casos, o número de nossos juízes, basta que sempre existam alguns para que a lei de viver às claras nunca perca sua eficácia moral, impelindo-nos constantemente a nada fazer que não seja confessável. Semelhante disposição prescreve logo o respeito contínuo da verdade e o cumprimento escrupuloso de todas as promessas. Este duplo dever geral, dignamente introduzido na Idade Média, resume toda a moral pública e faz-vos sentir a profunda realidade daquela admirável sentença em que Dante, representando o verdadeiro impulso cavalheiresco, designa para os traidores o mais horrível inferno*. No meio mesmo da anarquia moderna, o melhor cantor da cavalaria proclamava dignamente a principal máxima de nossos heróicos antepassados:

La fede unqua non deve esser corratta,

O data a un solo, o data insieme a mille;

.......................

Senza giurare, o segno altro più espresso,

Basta una volta Che s’abbia promesso.**

Estes pressentimentos crescentes dos costumes sociocráticos são irrevogavelmente sistematizados pela religião positiva, que representa a mentira e a traição como diretamente incompatíveis com toda cooperação humana.


*   *   * 


* Dante, Paraíso, canto último:

Senhora, tão grande és, e tão potente

Que mercês implorar sem teu auxílio

Equivale a querer voar sem asas.

Tua benignidade não sufraga

Somente a orações; mas, com freqüência,

Com generosos dons as antecipa

Em ti misericórdia, em ti piedade,

Em ti munificência se coadunam

E quanto tem mais nobre a criatura

(Tradução de Bonifácio de Abreu.)

 

** Ariosto, Orlando furioso, canto 21, 2ª estância:

A fé nunca deve ser quebrada,

Ou dada a um só ou dada a mil ao mesmo tempo

.......................

Sem jurar, ou sem qualquer outro sinal expresso,

Basta ter prometido uma vez.

 



[1] Vale a pena notar que o próprio Maquiavel (1469-1527) foi bastante ambígüo a respeito. Em O príncipe (1513) ele propôs uma política amoral ou mesmo imoral; a partir dessa obra surgiu a tradição a que nos referimos acima. Mas em Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (1517), ele adotou uma outra perspectiva, afastando-se do amoralismo/imoralismo de O príncipe, ao defender a busca do bem comum, o republicanismo como um regime político bom etc.

23 abril 2024

Ideal vs. real: como lidar?

No dia 2 de César de 170 (23.4.2024) realizamos a prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos a oposição entre o ideal e o real e como agir considerando a distância entre ambos.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/iKkQa) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/snJFS). O sermão começou aos 48 min 30 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *

O ideal vs. o real: como lidar? 

-        A questão desta semana é ao mesmo tempo bastante simples e extremamente importante: como lidar com a oposição entre o ideal e o real?

o   Esse tema foi sugerido pelo nosso amigo Hernani G. Costa, nos seguintes termos: “O equilíbrio entre o preenchimento do ideal e a frustração de quando não o realizamos. Como agir diante disso? Como conjugar a vida vivida em nome de um ideal, diante de uma realidade que por tantas vezes parece desmenti-lo?”

-        Essa questão apresenta muitos aspectos, vários deles à primeira vista insuspeitos:

o   Em um primeiro lugar, há o aspecto moral (“psicológico”), em relação a como lidar com a distância entre o que se deseja e o que se obtém

o   Mas o aspecto moral implica o conhecimento da realidade (científico)

o   Também há as questões relativas à idealização da realidade, ou seja, são aspectos artísticos

o   Há também a idealização no sentido do que é bom, ou seja, é um outro aspecto moral

o   Tudo isso se reúne nas leis da filosofia primeira, em particular na primeira lei, a chamada “lei-mãe”

-        Comecemos pela oposição entre o real e o ideal, isto é, a oposição entre a realidade vivida e o que gostaríamos que ocorresse

o   Duas ou três observações iniciais:

§  Trata-se verdadeiramente de uma oposição entre o real e o ideal

§  Os comentários abaixo concentrar-se-ão no comportamento individual de cada um de nós

§  Além disso, concentrar-nos-emos nas dificuldades enfrentadas e, ainda mais, nos fracassos que por vezes temos que enfrentar

o   Todos vivemos enfrentando os desafios da vida; esses desafios são “desafios” porque nos impõem dificuldades, que devem ser enfrentadas, ou seja, que têm que ser enfrentadas: todos temos contas para pagar, por isso todos temos que trabalhar; temos contas para pagar porque temos necessidades que têm que ser satisfeitas: alimentação, moradia, saúde, transporte, relacionamentos, previdência, divertimentos

o   Os desafios que indiquei acima são todos eles materiais; mas é claro que viver é muito mais que só se preocupar com questões materiais; como sabemos, sem negar a importância desses aspectos, viver significa acima de tudo ter ideais, planos, projetos; significa viver orientado por valores e concepções do que é bom e belo

§  É importante dizê-lo com todas as letras para termos clareza a respeito: a vida orientada por valores e idéias existe por si só, independentemente das preocupações materiais e, na verdade, com freqüência até em oposição a elas

§  Citamos inicialmente as preocupações materiais apenas porque elas são fáceis de entender e porque elas realmente se impõem a todos

§  Mas é claro que há toda uma série de outras dificuldades na vida: entendimento falho da realidade; necessidade de cooperação com outras pessoas; disposições pessoais; acidentes tecnológicos; desastres naturais etc.

o   O que se apresenta, então, é uma oposição entre o que nós, como seres humanos, desejamos e aquilo que, enfrentando os desafios e as dificuldades, conseguimos realizar: às vezes conseguimos, às vezes fracassamos

o   Como se diz, o sucesso tem muitos pais e mães, mas o fracasso é sempre órfão: ninguém gosta de fracassar, seja porque evidentemente o fracasso conduz a um sentimento muito desagradável, seja porque ninguém gosta de assumir a responsabilidade pelo fracasso

§  O fracasso é desagradável; com freqüência sentimos a sensação de derrota, de incompetência, de incapacidade, até mesmo de merecimento no fracasso

o   Para lidarmos com isso e, de qualquer maneira, para obtermos o sucesso, temos que nos preparar das mais diferentes maneiras:

§  Temos que lembrar que cada pessoa é uma pessoa, cada empreendimento é um empreendimento diferente, cada situação é uma situação específica

§  É necessário conhecer a realidade, (1) para sabermos se nosso projeto é realizável; em seguida, (2.1) para sabermos quais as condições e as possibilidades de sucesso; (2.2) inversamente, quais as condições e as possibilidades de fracasso)

§  Assim, a partir do conhecimento da realidade e, de qualquer maneira, é necessário estarmos preparados, antecipadamente, para maiores dificuldades ou mesmo para um eventual fracasso

·         Essa preparação é tanto material quanto emocional

§  Caso fracassemos, é sempre bom e sempre importante lembrarmos a ótima observação de Winston Churchill: “O sucesso nunca é definitivo e o fracasso nunca é fatal”; em outras palavras, devemos estar sempre preparados para reerguer-nos, ou seja, devemos ter a resiliência

§  Todos podemos, e até devemos, lamentar a derrota durante um certo período de tempo; quanto mais importante essa derrota, maior o tempo despendido; mas o luto não pode durar para sempre e, no final das contas, trata-se de uma questão de amadurecimento: quem é mais maduro passa mais rapidamente pelo luto

·         Na verdade, inversamente, em certo sentido o amadurecimento consiste na capacidade de cada um de lidar com as dificuldades e com os fracassos, não se deixando abalar em demasia com eles, sabendo olhar para os fracassos com serenidade (o que não equivale a olhá-los com satisfação), superando-os com maior facilidade e seguindo em frente

§  Quando acontece o fracasso, ele pode ter ocorrido devido a muitos motivos: falta de preparo intelectual, falta de preparo moral, falta de preparo técnico, falta de cooperação, eventos inesperados

§  É sempre importante avaliar cuidadosamente cada uma dessas possibilidades, para (1) determinar os diversos fatores que conduziram ao fracasso: com isso, (2) é possível determinar as responsabilidades; (3) em uma eventual nova tentativa, esses fatores têm que receber mais atenção; finalmente, (4) conseguir determinar as diversas responsabilidades integra o processo de luto e, daí, o de resiliência e amadurecimento

-        Em suma, do ponto de vista estritamente individual, na oposição entre o ideal e o real, o problema que nos conduz a considerar o “como lidar?” é como lidar com as dificuldades e, em particular, com o fracasso

o   A resposta para isso é tão simples de enunciar quanto difícil de executar: preparar-se o máximo possível com antecedência em termos morais (“psicológicos”), intelectuais e práticos e, no caso do fracasso, saber avaliar os fatores que conduziram ao fracasso

o   O entendimento intelectual ajuda na preparação moral prévia e, depois, no caso de fracasso, auxilia na resiliência

-        Como sugerimos no início, os comentários acima apresentam parte da questão; modestamente fizemos observações que seriam um começo de apoio: mas foi apenas um começo

o   Vejamos agora outros aspectos do tema – aspectos que são fundamentais de serem afirmados em conjunto com as observações acima, a fim de lidar-se de maneira adequada (digna, madura, eficiente) com as dificuldades e os fracassos na vida

o   Esses outros aspectos são: (1) aspectos intelectuais e científicos; (2) questões de moralidade; (3) aspectos artísticos

-        Qualquer projeto exige que conheçamos a realidade:

o   O conhecimento da realidade, seja abstrato, seja concreto, é condição fundamental para qualquer atividade e, bem vistas as coisas, para a vida

o   A realidade, nesse caso, consiste principalmente nas condições objetivas do mundo, ou seja, aquelas que não dependem da vontade humana (e que, com freqüência, opõem-se à vontade humana)

§  Para evitar confusões e mal-entendidos: as condições sociológicas gerais e também as morais integram, no presente caso, as condições objetivas

o   Como vimos antes, é necessário conhecer a realidade para podermos determinar as possibilidades de êxito de qualquer projeto e, inversamente, as suas possibilidades de fracasso; com isso, podemos preparar-nos em termos práticos (reunindo os elementos necessários para o sucesso do empreendimento) e em termos morais (ficando de sobreaviso para as dificuldades e, ainda mais, para um eventual fracasso – e, assim, criando uma espécie de “almofada” moral)

o   O conhecimento abstrato da realidade consiste nas leis naturais, isto é, das relações necessárias de sucessão ou coexistência dos fenômenos

§  O conhecimento da realidade (abstrato e concreto) conduz a uma idealização da realidade, basicamente em termos apenas intelectuais: o “ideal”, aí, é uma elaboração intelectual e simplificada da realidade

o   Esse conhecimento tem que estar ligado sempre a uma regra prática de sabedoria, que consiste em determinar o que podemos e o que não podemos fazer; ou, dito de outra forma, o que podemos e o que não podemos mudar

§  Na verdade, a determinação do que podemos e do que não podemos mudar antecede sempre a proposição de qualquer projeto

§  Em relação ao que podemos mudar, seguindo as leis naturais, é necessário avaliar se é moralmente correto; no que se refere ao que não podemos mudar, a única possibilidade é a digna resignação

·         Em outras palavras, a digna submissão (a digna aceitação) é sempre o único caminho possível tendo em vista as leis naturais, seja reconhecendo as possibilidades de atuação, seja reconhecimento a impossibilidade de ação

§  Inversamente, não faz sentido desejar algo que vai contra as leis naturais: desejar algo francamente impossível implica uma vontade caprichosa e o fracasso certo

·         A “resiliência” nesse caso consiste não em retomar o projeto, mas em abandoná-lo e retomar a vida com outros objetivos

·         A maturidade, nesse caso, consiste em reconhecer a inutilidade dos esforços e a necessidade de mudar de objetivos: não há dúvida de que isso pode exigir maiores esforços, que, por sua vez, aumentarão o “grau” de maturidade

-        Também há os vários aspectos relativos à moralidade dos ideais

o   Tudo o que comentamos acima pressupõe que os nossos objetivos são moralmente corretos

o   Mas é claro que a avaliação moral deve sempre ser feita – e, além disso, deve sempre ser feita antes de qualquer outra avaliação

o   A moralidade das ações é sempre dada pelo altruísmo: melhorará o bem-estar? Não prejudicará? Estimulará o altruísmo? Não estimulará o egoísmo?

§  Vale notar que a “bondade”, aí, consiste no altruísmo e que a “maldade” consiste no estímulo direto e único do egoísmo (incluindo o sadismo); não há que falar em “bondade” e “maldade” como se elas existissem por si sós, como abstrações personificadas (ou seja, metafísicas)

o   Os valores e as idéias que são moralmente corretos – ou seja, que estimulam e/ou realizam o altruísmo – podem tornar-se “ideais”, ou seja, concepções (1) abstratas da realidade que (2) indicam os bons caminhos a seguir

§  É importante insistir: não é porque algo é factível que também é moralmente desejável e que, portanto, deve ser feito

o   É igualmente importante lembrar que, no caso de projetos moralmente corretos, com freqüência um fracasso momentâneo não pode impedir a continuidade dos esforços: em outros termos, um fracasso momentâneo não nega nem invalida o ideal

§  Isso se aplica às dificuldades, aos desastres e também às injustiças da vida

§  A palavra “momentâneo” é central aqui: por vezes, um ideal factível não se realiza devido a dificuldades materiais, a dificuldades sociais amplas, a dificuldades políticas; mas cumpre perceber que, se em um determinado momento algo não é possível, em outro momento, e/ou com outros esforços, esse projeto pode vir a realizar-se

o   Ainda no que se refere a moral e à oposição entre o ideal e o real:

§  Como “agimos por afeição”, todas as nossas ações são moralmente motivadas – daí a necessidade de que essa motivação seja altruísta

§  Mas é claro que os sentimentos não dão apenas a partida nas ações: são os sentimentos que nos mantêm atuantes, mesmo (e até principalmente) em face das adversidades

·         Os bons sentimentos de nossos familiares e nossos amigos confortam-nos e apóiam-nos, seja durante as dificuldades, seja no fracasso

·         Assim, é importante lembrar: não existimos no vazio, ou melhor, não existem indivíduos, mas apenas agentes da Humanidade; todas as nossas ações são propostas, elaboradas e levadas a cabo na, pela e para a Humanidade

§  Além dos sentimentos e das idéias, a natureza humana atua por meio dos instintos práticos: a coragem, a prudência e a perseverança

·         A coragem leva-nos a agir; é o impulso para a frente

·         A prudência são os cuidados que tomamos, para evitar problemas (ou problemas excessivos, ou problemas desnecessários, ou problemas inesperados)

·         A perseverança é o que nos mantêm em atividade, ao longo do tempo e a despeito das dificuldades

o   Assim, a resiliência é uma forma de perseverança, em que temos que retomar nossas atividades quaisquer e, se for o caso, retomarmos os esforços das ações que anteriormente fracassaram

-        Há ainda outros aspectos a considerar na oposição entre o ideal e o real; todavia, esses outros aspectos serão somente citados aqui

o   As observações acima se concentram nos indivíduos, nas dificuldades morais que cada um enfrenta ao realizar seus projetos e, em particular, ao fracassar: mas, como Augusto Comte afirmava desde o início de sua carreira e como consagrou na Religião da Humanidade, de real só existe a Humanidade

§  Isso significa que todos os projetos só podem realizar-se pela Humanidade, devido aos inúmeros fatores envolvidos:

·         O altruísmo realiza diretamente a Humanidade

·         Os projetos construtivos (não violentos, não destruidores) desenvolveram-se ao longo da história

·         Da mesma forma, nossas concepções sobre a realidade também se desenvolveram ao longo da história

·         Qualquer projeto implica, sempre, a coletividade, seja nas idéias, seja nas palavras, seja na necessária colaboração de qualquer atividade

·         Por fim – e de maneira central para esta prédica –, no caso de maiores dificuldades e/ou de fracasso, o amparo é sempre dado pela Humanidade, seja com o afeto que nossos amigos e familiares dão, seja com as idéias e os valores que nos confortam

o   Como vimos e como todos sabemos, a palavra “ideal” apresenta uma importante ambigüidade:

§  Ela pode ser uma concepção abstrata da realidade e/ou pode ser u’a meta considerada correta

·         Temos aí as partes que cabem ao cérebro e ao coração

·         Vale lembrarmos a bela frase de Vauvenargues: “os grandes pensamentos provêm do coração”

§  Além disso, há o espaço para a imaginação e, portanto, para as artes

·         Não podemos esquecer que as artes idealizam a realidade, ou seja, descrevem um cenário que simplifica o mundo e que, ao mesmo tempo, é desejável

·         As artes, então, ajudam a inspirar-nos e a ter coragem; enquanto enfrentamos dificuldades, elas confortam-nos, de modo que apóiam a perseverança; por fim, no caso do fracasso, é fora de dúvida a importância que elas apresentam para o conforto moral, para a resiliência e para o nosso amadurecimento

o   O papel da idealização – considerando todos os aspectos indicados acima, incluindo suas relações com a realidade – é resumido, sintetizado e/ou pressuposto na primeira lei da filosofia primeira, cuja importância é tão grande que é chamada de “lei-mãe”: “Formar a hipótese mais simples e mais simpática que comporta o conjunto dos dados a representar”        

07 novembro 2023

Moral, moralidade, moralismo

No dia 3 de Frederico de 169 (7.11.2023) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência, dedicada ao conjunto do regime.

No sermão abordamos o tema da moral e da moralidade no Positivismo, bem como as críticas de "moralismo" que, por vezes, autores materialistas e imoralistas fazem contra a Religião da Humanidade.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nk.dev/sUpIN) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.dev/qNoT7). O sermão começou aos 47' 18".

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *

Sobre moral e moralismo 

-        Como sabemos, o tema da moral é um dos mais importantes da Religião da Humanidade

-        Falar da “moral” no âmbito do Positivismo é ao mesmo fácil e difícil

o   É fácil porque em toda a Religião da Humanidade esse tema aparece

o   Mas é difícil porque há vários sentidos que se sobrepõem e é necessário um pouco de jogo de cintura (e conhecimento) para entendê-los, diferenciá-los e saber aplicá-los

-        Por outro lado, muitos comentadores do Positivismo e alguns filósofos usam com freqüência a expressão “moralismo” para referirem-se a uma certa ênfase na moralidade

o   Assim, é necessário entender o que seria esse “moralismo” e como o Positivismo encara-o

-        Podemos determinar dois ou três sentidos gerais para a palavra “moral” na Religião da Humanidade:

1)      Sentido 1: parâmetro de avaliação da existência humana, no que se refere ao que é bom, correto e justo, afirmando o caráter coletivo do ser humano

2)      Sentido 2: parâmetro que afirma que a política deve, sempre e necessariamente, subordinar-se à moral

3)      Sentido 3: ciência e arte do ser humano individual

o   Os três sentidos acima mantêm estreitas relações entre si, evidentemente, mas são suficientemente diferentes para que possamos falar deles como distintos entre si

-        Os sentidos 1 e 3 são os mais diferentes entre si; já o sentido 2 pode ser entendido como uma aplicação específica do sentido 1

o   O sentido 1 estabelece que a moralidade positiva é necessariamente coletiva e não individual

§  O caráter coletivo da moralidade positiva é a maior diferença entre as moralidades teológicas e metafísicas, de caráter absoluto, que se baseiam nos indivíduos

§  Uma outra forma de afirmar o caráter coletivo da moral positiva (relativa) em oposição ao caráter individual da moralidade absoluta é ter em mente que o objetivo da moral positiva é afirmar com clareza o altruísmo – que, por definição, move-se na direção dos outros e partir das relações com os outros –, em vez de centrar-se no egoísmo

§  Além disso, esse sentido também afirma o caráter coletivo (e histórico) da realidade humana e dos conhecimentos humanos, em vez de afirmar o individualismo e o solipsismo

o   O sentido 3 centra-se no estudo e no aperfeiçoamento do ser humano individual

§  Após estudar o ser humano como um ser biológico e como um ser social, a Moral concentra-se no ser humano individual

·         A Sociologia estuda as idéias e as ações práticas do ser humano; a Moral estuda os sentimentos

§  Sendo a ciência suprema, a Moral concentra em si todos os resultados das ciências anteriores

§  Assim, a Moral é a ciência mais complicada, a que exige maiores induções (ou seja, mais estudos empíricos), é a objetivamente mais específica mas é a subjetivamente mais geral

§  Da mesma forma, ao ser a ciência suprema, a Moral estabelece a transição natural e suave das ciências para as artes práticas

·         O domínio específico da arte da Moral é o do aconselhamento, o que, nos termos atuais, inclui por um lado a Pedagogia e, por outro lado, as chamadas psicoterapias

o   Assim, o critério de moralidade da Religião da Humanidade é um critério sociológico, isto é, baseado na realidade estudada pela Sociologia; mas a ciência suprema avança um degrau na escala das ciências, rumo à ciência da Moral

§  Se a moralidade positiva baseasse-se na ciência da Moral, o Positivismo manteria sua moralidade baseada no indivíduo: mesmo com a ênfase no altruísmo, centrar-se no indivíduo geraria confusões bastante difíceis de serem contornadas

§  No âmbito da Moral fala-se correntemente em “subjetividade”; mas podemos e devemos entender que a subjetividade é diferente quando se refere aos sentidos 1 e 2 (subjetividade coletiva ou sociológica) e ao sentido 3 (subjetividade individual)

·         Assim, por exemplo, quando Augusto Comte fala em “síntese subjetiva”, a subjetividade a que ele refere-se é a subjetividade humana em geral, isto é, coletiva – que, por sua vez, dependendo das necessidades intelectuais, se for o caso, pode desdobrar-se em subjetividade individual

o   O sentido 2 pode ser entendido como uma aplicação específica, mas importantíssima, do sentido 1

§  Entretanto, a sua importância prática é tão grande que este sentido deve ser indicado à parte

§  Este sentido, ao afirmar a subordinação da política à moral, move-se claramente contra uma tendência afirmada desde o Renascimento na ciência e na política prática, segundo a qual é correto entender a política de maneira separada da moral

§  A separação renascentista entre moral e política deveu-se à decadência do catolicismo: só isso já deveria bastar para indicar o aspecto transitório dessa separação

§  A expressão “política separada da moral”, no caso, significa “tratar a política como se não existisse a moral”

·         Isso sugeriria um entendimento amoral da política, no sentido de que é necessário ter um mínimo de clareza para distinguir-se entre aquilo que é e aquilo que gostaríamos que fosse

·         Entretanto, o entendimento amoral da política logo se converte em, e logo se revela, uma desculpa para o entendimento e a prática imoral da política

o   O amoralismo que se revela, necessariamente, como imoralismo celebra o egoísmo (não raro individualista, mas também nacionalista) como fim e a política de poder como meio (e/ou também como fim)

-        Definidos os sentidos da palavra “moral” na Religião da Humanidade, podemos lembrar quais são os parâmetros da moral no Positivismo:

o   Vale notar que os parâmetros que indicaremos abaixo reúnem e consolidam os três sentidos indicados acima

o   Além disso, os parâmetros que indicaremos podem ser complementados por outros; assim, o que apresentaremos são sugestões mínimas

o   Eis, então, os parâmetros que, pelo menos para o presente momento, podem ser considerados mínimos:

§  Antes de mais nada e acima de tudo, a afirmação do altruísmo e a subordinação do egoísmo a ele

§  A afirmação da vista de conjunto sobre as vistas particulares

§  A afirmação da sociabilidade sobre a personalidade

§  A (re)moralização geral da vida humana, em particular por meio da afirmação e da aplicação do método subjetivo após a conclusão do método objetivo

-        Mudando de questão, o que seria o “moralismo”?

o   Essa é uma expressão difícil, pois seu sentido é sempre negativo e é um adjetivo “crítico”, usado por alguém contra alguma perspectiva específica

§  Em outras palavras, a expressão “moralismo” não é definida com clareza, mas é sempre empregada contra alguma perspectiva específica

o   Os sentidos gerais (ou melhor, geralmente) atribuídos a “moralismo” incluem o seguinte:

§  Hipocrisia e/ou cinismo

·         O “moralismo” seria, neste caso, a falsidade no comportamento, em que os valores morais são usados como desculpas para ações opostas ao que se prega

§  Negação da política

·         Neste caso, o “moralismo” seria a rejeição da realidade da política, que é substituída por afirmações morais

·         A política, nesse caso, significa “disputas de poder”, “disputas de autoridade”

·         A substituição da política pela moral, nesse caso, consistiria em substituir o que é pelo que deve ser

§  Rejeição da realidade dos aspectos sociológicos do ser humano

·         O “moralismo”, neste caso, seria uma espécie de idealismo, ou de espiritualismo, em que os fenômenos morais são afirmados desconsiderando-se a sua base social

o   Esses três sentidos podem ser associados entre si (o que, de fato, geralmente ocorre), mas são suficientemente distintos para que os indiquemos à parte

-        Em diversos momentos já li atribuições ao Positivismo da crítica de “moralista” especialmente no sentido de negação da política, talvez se aproximando do sentido de espiritualismo moral

o   É, ou deveria ser, evidente que essa acusação é despropositada, para não dizer ridícula

o   Por um lado, a afirmação de que a Religião da Humanidade seria moralista porque desconsideraria a realidade da política baseia-se nas assunções de que (1) é possível, é correto e é necessário separar a política da moral e (2) a política consiste essencialmente em disputas de poder

§  Como vimos, separar a política da moral conduz muito rapidamente ao, quando não disfarça, o imoralismo dos raciocínios e das atividades

§  Considerar que a política é essencialmente disputa de poder é ter uma concepção medíocre e mesquinha do ser humano, ao eternizar a atual situação anárquica do Ocidente (em que não há um padrão comum a todas as sociedades e a todos os indivíduos), ao reduzir a realidade compartilhada pelos seres humanos a disputas incessantes (em vez de reconhecer e valorizar o ideal da harmonia humana) e, portanto, ao considerar que o objetivo da política é apenas a opressão de uma parte da sociedade por outra parte (em vez do efetivo compartilhamento de valores, perspectivas e projetos)

§  Além disso, é importante lembrar: considerar que a política é essencialmente disputa de poder é o mesmo que assumir que o ser humano é apenas egoísta e que toda disputa só se resolve por meio da opressão

o    Por outro lado, o Positivismo pura e simplesmente não “nega a realidade da política”

§  Bastaria a consideração do calendário positivista concreto para perceber esse fato, com a dedicação de três dos 13 meses à “política”: César (a civilização militar, ou seja, a política antiga), Carlos Magno (a civilização feudal, ou seja, a política medieval) e Frederico II (a política moderna)

§  Mas, além disso, a instituição da separação entre os poderes Temporal e Espiritual estabelece, com todas as letras, que o mando político deve ser separado do – e regulado pelo – aconselhamento espiritual e moral

·         O tempo todo Augusto Comte delimita a atividade política prática, indicando suas particularidades, especialmente em contraposição ao poder Espiritual: dura, âmbito do egoísmo, âmbito das visões particulares

·         Mas Augusto Comte não tem uma concepção mesquinha nem medíocre da política: ela não se limita às disputas; ela não é geral, necessária ou essencialmente disputa de poder, mas compartilhamento e composição

·         A exigência de submeter a política à moral é uma regra política e moral necessária para controlar, moderar e orientar a dureza das disputas políticas

o   Ao mesmo tempo em que a política deve ser moderada pela moral, o poder Espiritual submete-se ao poder Temporal: em outras palavras, assim como os políticos devem respeitar os parâmetros morais, as igrejas devem respeitar os ordenamentos jurídicos nacionais e, de qualquer maneira, todos os crentes têm suas responsabilidades cívicas de maneira mais ou menos independente das responsabilidades religiosas

§  Por fim, é importante lembrar que a concepção egoística e violenta da política despreza totalmente a noção sociológica fundamental de que o ser humano evolui ao longo do tempo

·         De maneira específica, despreza-se a segunda e a terceira lei dos três estados, que estabelecem (a) que a atividade pacífico-industrial sucede e surge a partir das sociedades militares, bem como (b) que a sociabilidade que considera toda a Humanidade sucede as sociabilidades mais restritas, vinculadas às famílias e às pátrias

-        Para concluir:

o   A Religião da Humanidade baseia sua moralidade no altruísmo, a partir de uma concepção sociológica do ser humano

o   A ciência da Moral é a ciência suprema, que estuda o ser humano individualmente e que estabelece uma transição natural das ciências para as artes práticas

o   A afirmação da moralidade implica necessariamente a subordinação da política à moral; mas isso não significa que a política seja negada: significa que – na hipótese alucinada e indefensável de que a política é apenas disputa de poder – as disputas políticas devem ser moderadas, aconselhadas e orientadas pela moral