O belo trecho abaixo, escrito por Teixeira Mendes, está no início do capítulo quarto (“Novembro – abandono sem reserva”) do imponente O ano sem par, que é uma biografia escrita em 1900 sobre Augusto Comte e Clotilde de Vaux no período em que ambos relacionaram-se, ou seja, entre abril de 1845 e abril de 1846[1]. Em termos da vida conjunta de Augusto Comte e Clotilde, o trecho abaixo serve como introdução à fase dessa vida em que Clotilde passava a ter problemas crescentes com sua mãe mas, ao mesmo tempo e felizmente, já tinha grande confiança no respeito e no carinho do filósofo por si, de modo que, confiando nele, podia expandir-se afetivamente e buscar apoio nele para emergentes dificuldades familiares e antigas dificuldades domésticas.
Como de hábito nos textos positivistas, em particular nos de Augusto Comte e também nos de Teixeira Mendes, a riqueza dos comentários é impressionante, em que poucas linhas condensam reflexões das mais diversas ordens. Assim, a clareza e a beleza da exposição abaixo, bem como a rica concisão das idéias, motivaram-nos a reproduzir o trecho abaixo, para maior divulgação.
As reflexões abaixo lembram-nos das belezas e dos prazeres da vida doméstica, que, em situações normais (ou seja, em situações reguladas religiosamente), estimulam o altruísmo, comprimem o egoísmo e compensam as dissensões externas, a partir da intimidade, da confiança e do respeito mútuo do casal fundamental de cada família. O trecho abaixo também lembra que, inversamente, em épocas revolucionárias, em que essas intimidade e essa confiança são fragilizadas e criticadas, a vida doméstica deixa de ter ou tem menos a capacidade de proteger-nos e preparar-nos para a vida social mais ampla, além de compensá-la.
O texto abaixo aborda igualmente a ciência da moral, em vários sentidos. Por um lado, aborda-se o desenvolvimento da ciência da moral, em termos de conhecimento do ser humano mas também das exigências morais, intelectuais e práticas para que esse conhecimento (e a prática dele decorrente) seja elaborado. Por outro lado, o trecho expõe uma explicação sintética de uma das questões teóricas e práticas mais difíceis de serem entendidas – pelo menos no Ocidente, à luz do egoísmo materialista herdado tanto da teologia quanto do cientificismo –, a saber, a da primazia do altruísmo sobre o egoísmo e da relação entre ambos.
Contra o presentismo próprio à nossa época, que é aliás estimulado pelo cientificismo e pelo academicismo, todas essas considerações têm um valor permanente, ou seja, eram corretas em 1845 (quando Augusto Comte e Clotilde relacionaram-se), eram corretas em 1900 (quando Teixeira Mendes escreveu o texto abaixo) e são corretas em 2025 (quando escrevemos estes comentários). Mas, além disso, elas mantêm uma impressionante atualidade – como, de resto, o Positivismo e, claro, a Religião da Humanidade –, ao percebermos que elas abordam e resolvem questões tratadas como “atuais” nos dias de hoje.
Nesse sentido, a valorização da vida em família vai feliz e frontalmente contra os hábitos morais e políticos contemporâneos, na medida em que, em particular, grande parte do feminismo contemporâneo rejeita ou despreza a vida em família. Afirmando a necessidade de “tornar político o que é privado”, o feminismo estranhamente denuncia a família como um esquema criado pelos homens (o “patriarcado”) para oprimir as mulheres, resultando de uma única vez em que:
1) em nome de uma crítica necessária às concepções retrógradas da família, promovidas pela teologia e que consideram que o chefe da família é dono (e dono absoluto) dos demais membros da família, o feminismo “joga fora o bebê juntamente com a água do banho”;
2) a família é entendida unicamente como fonte de opressão e não como resguardo, local de intimidade, fonte de estímulo do altruísmo e fonte de aperfeiçoamentos efetivos;
3) a família é negada e desprezada, em vez de ser afirmada, valorizada, respeitada e orientada para uma realização digna e valorizadora de homens e mulheres e de seu relacionamento terno e mutuamente cuidadoso e respeitoso;
4) a família é “denunciada”, ou seja, é entendida sob as luzes da violência própria ao poder Temporal (“tornar político o que é privado”), em vez de mantê-la sob a delicadeza do poder Espiritual e de vincular de maneira efetiva e construtiva as existências privada e pública;
5) em nome de supostamente valorizar as mulheres, na verdade desqualifica-as ou despreza-as, tornando-as iguais, ou melhor, idênticas aos homens; ao mesmo tempo, de maneira muito confusa (resultando então em hipocrisia), alega querer defender as mulheres e, aí, afirma a diferença das mulheres em relação aos homens (embora com a desvalorização dos traços específicos às mulheres).
6) A partir do conjunto dos problemas indicados acima, torna-se mais evidente e mais chocante a afirmação corrente de que “falta amor no mundo atual”: com certeza o desprezo político da família não contribui para reverter essa falta de amor e, ao contrário, estimula muito a violência.
7) Vale notar que a virulência e a dureza do feminismo – virulência e dureza intencionais – contrastam fortemente com a delicadeza dos comentários abaixo. Não deixa mesmo de ser degradante contrastar as considerações abaixo com a agressiva rejeição política da família promovida pelo feminismo.
A vida doméstica é um santuário cujos arcanos só podem ser desvendados pelos olhos daqueles que têm corações unidos por um profundo amor. Porque, a natureza humana sendo fatalmente constituída pelo concurso dos pendores pessoais ou egoístas e das propensões sociais ou altruístas, todos os nossos atos trazem o cunho do permanente conflito entre uns e outros, de que é teatro a nossa alma. As maiores Santas não podem evitar semelhante fatalidade, como o evidenciam as tentações que não cessão de perturbar os seus esforços de contínuo aperfeiçoamento. Mas o amor supera tanto mais dificilmente as sugestões do individualismo, quanto mais revolucionária é a situação social que se teve por sorte. Nessas épocas calamitosas, as regras da conduta se acham mais ou menos profundamente alteradas em todos, mesmo nos que se julgam fiéis às crenças religiosas mortalmente feridas. Em vez de normas ligadas por um sistema, cada um não possui então senão opiniões insuficientes ou preconceitos desconexos e expostos a todas as sugestões da personalidade. De sorte que nada é mais fácil então do que o extravio de um sincero altruísmo.
É esta situação social e moral, – inevitável enquanto não se restabelece a unidade religiosa, – que determina todas as lutas da vida humana, pública ou privada. A existência pública, quer cívica, quer internacional, exigindo uma participação superior da atividade e da inteligência, torna então os choques mais rudes, e a intervenção do altruísmo mais difícil para moderá-los. Na existência doméstica, porém, o predomínio do sentimento sendo imensamente maior, a simpatia pode evitar mais os atritos; e, quando eles se dão, atenuar e anular mesmo as suas reações. Com efeito, a certeza de uma afeição profunda e mútua bem como de uma sincera estima recíproca espontaneamente assegura a todos que cada um julga então proceder conforme as aspirações do mais puro amor de que é capaz. De sorte que só resta imputar a erros fatais de apreciação as injustiças e os descuidos de que porventura se é vítima.
A moral positiva nos patenteia hoje que os extravios do espírito são, mesmo em tais casos, devidos muitas vezes à inconsciente reação da personalidade[2]. O catolicismo já tinha apanhado semelhante verdade, embora através das ilusões teológicas relativas à nossa natureza moral. A Religião da Humanidade vem pois sistematizar cientificamente os hábitos de humildade instituídos pelo regime medievo, tornando-nos atentos às ciladas das nossas propensões egoístas. Mas, por outro lado, a mesma Religião consolida igualmente a tendência vulgar a interpretar simpaticamente o procedimento dos entes que nos são mais caros. Porque nos mostra a impossibilidade do altruísmo superar o egoísmo sem as luzes que só podem provir da evolução coletiva, e que se tornam extremamente vacilantes nas épocas de dissolução religiosa.
A Moral só conseguiu, porém, tornar-se uma ciência positiva, justamente depois que o nosso Mestre consumou o seu surto[3] altruísta, graças ao amor inspirado pela sublime grandeza de Clotilde. A concepção científica da nossa alma só atingiu a sua forma definitiva em 4 de janeiro de 1850; e, desde então, a verdadeira natureza dos pendores benévolos foi ficando cada vez mais bem caracterizada. Na Síntese Subjetiva, escrita em 1856, o nosso Mestre formulou esta conclusão: “Todos os sofismas do orgulho não podem impedir o espírito positivo de reconhecer que toda revolta emana dos impulsos pessoais” (Síntese Subjetiva, p. 16).
Semelhante verdade é tão incontestável como o princípio que toda estimulação a alimentar-se provém do instinto nutritivo. O altruísmo intervém em tais casos apenas para determinar o inteligência a julgar da conveniência ou inconveniência simpática da inspiração egoísta. Porque, à vista da nossa organização e da nossa situação, a existência humana exige o concurso permanente dos instintos individuais com as propensões benévolas. Donde resulta que a virtude não consiste na anulação dos pendores egoístas, e sim na sua conveniente subordinação contínua ao amor.
Portanto, na época que estamos considerando[4], as melhores almas[5] mesmo se viam na fatal contingência de sofrer inconscientemente as reações da personalidade em um grau que o conhecimento positivo da nossa natureza teria impedido. Essa circunstância serve sem dúvida para realçar ainda mais a grandeza moral das naturezas superiores e patentear o alcance espontâneo do altruísmo delas. Mas a apreciação de cada conduta se torna assim mais melindrosa, em conseqüência da dificuldade de reconhecer que o procedimento foi sempre o mais altruísta que as condições de cada um comportava. E, por outro lado, ficaram possíveis erros e equívocos tanto mais dolorosos, quanto o esclarecimento da situação, de modo a permitir o restabelecimento da concórdia anterior, exigia condições que só o tempo permitiria realizar e de que uma morte prematura[6] frustra tão comumente!
(Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 451-453).
[1] Na transcrição abaixo mantivemos a pontuação original, mas atualizamos a grafia.
[2] A “personalidade”, neste trecho (como também adiante), tem o sentido de individualismo ou egoísmo.
[3] “Surto”, aqui, significa “desenvolvimento”.
[4] A época em questão é a década de 1840 na França.
[5] A expressão empregada por Teixeira Mendes é um pouco abstrata, mas ele refere-se em particular a Augusto Comte e a Clotilde.
[6] A “morte prematura” é a de Augusto Comte, em 5 de setembro de 1857, em que ele não conseguiu dar continuidade a inúmeras reflexões sociais e morais anunciadas, em particular para os volumes 2 a 4 da sua Síntese subjetiva; mas, bem vistas as coisas, a morte prematura também pode ser entendida como a de Clotilde, que faleceu em 5 de abril de 1846.