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24 outubro 2023

Sobre o militarismo

No dia 17 de Descartes de 169 (24.10.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo Positivista. Nesse sentido, iniciamos a nona conferência, dedicada ao conjunto do regime positivo.

No sermão abordamos o tema do militarismo, examinado à luz da Religião da Humanidade.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/8GzSn) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/tD6iK). O sermão começou em 43' 45".

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Sobre o militarismo 

-        Um dos temas a respeito dos quais há enorme confusão é o militarismo

o   Essa confusão é resultado tanto de boa fé quanto de má-fé – o que, lamentavelmente, inclui mesmo pessoas que se dizem próximas ao Positivismo

o   Na verdade, bem vistas as coisas, exatamente devido às confusões que envolvem o Positivismo e os militares, o tema do militarismo é um ótimo parâmetro para avaliação do conhecimento, do entendimento e da adesão que se tem do Positivismo, da mesma forma que do viés dos comentários (boa ou má fé)

o   A confusão consiste em atribuir ao Positivismo a alcunha de militaristas e de militarismo – isso quando o Positivismo é radicalmente pacifista!

§  As pessoas de boa fé partem dos preconceitos correntes para atribuir ao Positivismo tal associação

§  As de má-fé repetem esse preconceito para degradar o Positivismo

§  Por fim, há indivíduos que, rondando o Positivismo, mesmo a despeito de terem noções da doutrina positivista, rejeitam o pacifismo e buscam justificar o militarismo por meio dos mais variados expedientes retóricos e sofísticos

-        Quais são as concepções de Augusto Comte a respeito do militarismo? A resposta a essa questão passa pelo que nosso mestre dizia a respeito da guerra e, de modo mais amplo, da violência

-        Consideremos, antes de mais nada, que há três leis dos três estados; a mais famosa é a lei intelectual, mas o que nos importa aqui é a lei prática

o   Essa lei estabelece que a atividade é primeiro militar conquistadora, depois militar defensiva e enfim pacífico-industrial

o   Evidentemente, ela estabelece um papel positivo para a guerra – mas não para qualquer guerra nem em qualquer momento

o   As guerras fetíchicas, dos povos nômades ou seminômades, em que a destruição dos inimigos é prática habitual, estão excluídas dessa regra

§  Elas têm uma “função social”, mas, como destroem os inimigos, Augusto Comte considera que elas não têm um papel construtivo

o   Em termos de grupos sociais, é importante notar que as teocracias iniciais eram mantidas estáveis pela preponderância dos sacerdotes sobre os guerreiros

§  Daí o recurso a guerras distantes, em que os sacerdotes afastavam os guerreiros

§  As teocracias iniciais, devido à estabilidade assim obtida, eram politeísmos conservadores

§  Quando os sacerdotes perdem afinal a preponderância sobre os guerreiros, as antigas teocracias tornam-se sociedades militaristas, na forma de politeísmos progressivos

o   As guerras incessantes entre grupos, incapazes de conduzir a coletividades maiores e estáveis, não são valorizadas por Augusto Comte

§  O maior exemplo disso são as lutas intestinas gregas (como a Guerra do Peloponeso)

§  Esparta poderia ter desempenhado o papel de núcleo de uma sociedade ampla; mas suas elites eram muito mesquinhas e voltadas para seus próprios problemas

o   As guerras de conquista que importam são aquelas que constituem coletividades amplas e duráveis

§  Internamente, constituem-se grandes áreas pacíficas, em que a indústria pode prosperar

§  O maior exemplo disso foi o império romano

·         Roma, além de ter tido a glória de ser o grande exemplo de sociedade militar conquistadora, apresentou inúmeras outras qualidades:

o   A subordinação da inteligência à atividade prática

o   A valorização das virtudes públicas e, a partir disso, regulação da vida privada

o   A grande emancipação mental das suas elites

o   O entendimento de que a guerra deve visar à paz

o   O desenvolvimento da indústria

§  Além do desenvolvimento da atividade pacífica, a grande comunidade criada por Roma permitiu que a cultura grega fosse disseminada e criou as condições para a renovação moral própria a São Paulo e ao catolicismo

·         Nesse sentido, a seqüência definida por Augusto Comte entre Grécia, Roma e Idade Média é uma seqüência necessária, no sentido de que somente ela poderia ter os frutos que apresentou

-        As guerras de conquista, ao criarem amplas comunidades estáveis e perduráveis, cedem lugar às guerras de defesa, em que o que importa não é a expansão territorial, mas a defesa e a preservação dos limites obtidos

o   No Ocidente, essa fase correspondeu caracteristicamente à Idade Média

o   As guerras de defesa são ilustradas pelas Cruzadas

o   A ação do sacerdócio e do papado como intermediários entre os governos temporais ilustra a passagem paulatina dos hábitos guerreiros para os hábitos pacíficos

o   Nessa fase ocorre a emancipação (também paulatina) dos antigos escravos para a condição de trabalhadores livres

-        A partir disso, paulatinamente as preocupações guerreiras são substituídas pelas preocupações industriais

o   Afirma-se cada vez mais o valor e a importância da vida humana

§  Matar e/ou morrer torna-se cada vez mais um ato ignóbil

o   A busca militarista da honra e da glória são substituídas pelas preocupações civis com o conforto e o bem-estar

o   Os meios violentos de solução de conflitos são paulatinamente substituídos pelos meios pacíficos de solução de conflitos

§  Mais do que isso: cada vez mais, os meios violentos são vistos como errados e aberrantes (chegando ao ponto de serem vistos como “foras da lei”)

·         Em outras palavras, há a mudança de perspectiva, em que a guerra deixa de ser algo triste mas habitual para tornar-se algo terrível, degradante e anormal

§  O repúdio à violência implica, necessariamente e de maneira correlata, a importância crescente do poder Espiritual em relação ao poder Temporal

o   O trabalho passa a ser valorizado e, daí, também os trabalhadores

§  Entretanto, apesar de os benefícios trazidos pela sociedade industrial serem muito maiores e mais permanentes que os das sociedades guerreiras, o fato é que a regularização da sociedade pacífica é mais complicada que as das sociedades militares

·         Literalmente ela é mais complicada e indireta

·         Além disso, as qualidades industriais não são tão evidentes quanto as qualidades militares

·         Adicionalmente, há o sério problema de que (pelo menos inicialmente) a sociedade industrial estimula o egoísmo e as vistas particulares

-        A lei prática dos três estados tem que ser complementada pelas outras duas leis:

o   A lei intelectual dos três estados indica a substituição progressiva das concepções absolutas e indiscutíveis pelas concepções relativas e discutíveis

o   A lei afetiva dos três estados indica que as sociabilidades mais restritas, baseadas nas famílias e nas pátrias, são substituídas por uma sociabilidade mais ampla, que considera de fato a Humanidade

-        Assim, no fundo a lei prática dos três estados estabelece o seguinte:

o   A guerra faz parte da história humana

o   Inversamente, no grande desenvolvimento da Humanidade, é necessário passar pela guerra para chegar-se à concepção da paz

§  Isso significa que a guerra fez sentido e foi justificável no passado, mas não o é mais no presente

o   A transformação da atividade de guerras para a paz ocorre ao longo do tempo, com a acumulação de reflexões, de práticas, de mudanças sociais correlatas

o   A afirmação da sociedade pacífica exige, necessariamente, o repúdio crescente da guerra e dos meios violentos de solução de conflitos

o   Deveria ser evidente, mas para muitas pessoas não é: esse processo é ao mesmo tempo objetivo e subjetivo

§  Isso quer dizer que se trata tanto de condições sociais quanto de condições intelectuais/morais

o   Como a guerra tornou-se cada vez mais imoral, o recurso a elas torna-se cada vez mais inaceitável

§  Conseqüentemente, os militares tornam-se cada vez mais inúteis e onerosos

·         Os países com grandes gastos militares e grandes exércitos não por acaso são vistos como agressores em potencial

·         Nos países distantes dos grandes cenários de conflitos, os exércitos com freqüência são focos de desestabilização política, como na América Latina, na África e na Ásia

§  É importante ter muita clareza: a função de qualquer exército e de qualquer militar é matar e destruir

·         Assim, eventuais utilidades secundárias dos militares (disciplina, senso de dever, honra) são justificativas banais que fazem questão de enganar, romantizar e distrair do que realmente importa

·         Para tentarem justificar os seus gastos e, assim, legitimarem-se, os militares cada vez mais assumem funções pacíficas, que fogem de suas missões precípuas: desenvolvimento econômico, técnico e científico; missões de paz; auxílio humanitário; trabalhos civis; logísticas diversas (eleições, correios etc.)

-        Vale a pena considerarmos as teorias habituais sobre a guerra: elas atribuem os conflitos armados à natureza humana, e/ou à ausência de poder superior e/ou à vontade humana de realizar conflitos

o   No caso de considerar-se a natureza humana como a fonte dos conflitos, essa natureza humana apresenta as seguintes características

§  É totalmente estática (ou seja, ela não se aperfeiçoa ao longo do tempo)

§  É apenas egoística

§  É agressiva

o   No caso da ausência de poder superior, a concepção é que não há uma instância capaz de regular as relações entre as unidades políticas e, caso necessário, impor a ordem

o   No que se refere à vontade de realizar conflitos, a concepção subjacente é que os atores relevantes consideram que as guerras são formas aceitáveis de relacionamento e de solução das diferenças entre os países

o   O Positivismo concorda com elementos de cada uma dessas concepções, embora discorde de alguns de seus aspectos:

§  A natureza humana não é só egoística nem agressiva, nem se mantém estática ao longo do tempo; ela é altruísta e passível de paz, mas isso exige um longo desenvolvimento prévio

§  A ausência de um poder superior a todas as nações não resolveria o problema, na medida em que, considerando a extensão territorial dessa unidade política e as gigantescas variações morais, intelectuais e práticas entre os países, a única forma de manter alguma paz seria por meio da tirania global

·         Órgãos de coordenação entre os países são importantes – daí o papel da diplomacia

·         Mas o que importa mesmo é a coordenação moral e intelectual entre os países, em particular no sentido do pacifismo e da rejeição do militarismo/belicismo

·         Pátrias pequenas facilitam a paz; inversamente, pátrias grandes estimulam (ou facilitam) a guerra

§  Considerando que a paz exige um longo período para seu desenvolvimento histórico, pelo menos desde o século XIX ela é um objetivo a ser perseguido e obtido com seriedade, em particular após 1945

-        A partir dos elementos acima, a rejeição geral da violência nas relações sociais é afirmada no Positivismo

o   Isso tem dois aspectos, um interno e outro externo

§  Internamente aos países, as relações sociais têm que ser estruturadas pelo convencimento mútuo e pela fraternidade universal

§  Externamente, as relações entre os países têm que se pautar pela paz e pela negociação (incluindo a arbitragem)

o   Em virtude disso, Augusto Comte afirmava a necessidade imperiosa de dissolução de todos os exércitos, com sua substituição por forças policiais

§  Convém lembrarmos que as polícias têm como função básica a manutenção da ordem, não a destruição e a morte

§  Além disso, Augusto Comte recomendava aos positivistas militares que mudassem de profissão ou que buscassem orientar suas atividades na caserna para objetivos construtivos

-        Sobre o militarismo e o Positivismo no Brasil:

o   A República foi proclamada em 1889 tendo à frente o positivista Tenente-Coronel Benjamin Constant

§  O fato de ter sido militar facilitou sua atuação em 15 de novembro, mas foi o seu positivismo que permitiu que Benjamin Constant imprimisse uma orientação civilista à sua prática docente e ao governo provisório

o   A orientação civilista e pacifista dos positivistas foi seguida com seriedade; o maior e melhor exemplo disso é o de Rondon, que tinha por mote “morrer se for preciso, matar nunca” e que, por suas atividades sertanistas e indigenistas, foi denominado “o Marechal da Paz” (e indicado ao Prêmio Nobel da Paz)

o   A orientação civilista e pacifista dos positivistas tornou-os alvos básicos e preferenciais dos militares militaristas, muitos dos quais depois aderiram ao fascismo e de que o grande representante foi o General Góes Monteiro

§  Assim, a associação usualmente feita entre Positivismo e militarismo é apenas uma coincidência histórica – e, mais do que isso, uma coincidência profundamente enganadora

o   Afastando-se do tema estrito das relações entre militares e Positivismo, vale lembrar que a República – não por acaso sob influência do Positivismo –, ao ser proclamada, adotou uma orientação pacifista, civilista e diplomática em suas relações internacionais, afastando-se radicalmente da orientação violenta, agressiva, imperialista e militarista do Império

§  A concepção de que o Império – tanto sob dom Pedro I quanto, em particular, dom Pedro II – foi uma época de bonança pacífica é uma completa e total mistificação, realizada pelos saudosos da monarquia, da escravidão e da sociedade de castas

§  Afastando-se do imperialismo imperial no Prata, a República adotou sistematicamente a prática da mediação e da arbitragem para solucionar seus problemas de fronteiras

·         Assim é que o Barão do Rio Branco deixou seus hábitos boêmios mantidos durante o Império e tornou-se, sob a República (e devido à República) um servidor público exemplar

-        Para concluir: o Positivismo é, sim, pacifista

o   Evidentemente, a nossa orientação geral é pacifista, mas, infelizmente, alguns conflitos acabam sendo necessários

o   Mas, de qualquer maneira, o que se evidencia – mais uma vez: o que se evidencia cada vez mais, desde pelo menos o século XIX e com força crescente após 1945 e após 1991 – é que as guerras atuais são iniciadas pela vontade de alguns líderes e/ou de algumas elites em fazer as guerras, devido à burrice e/ou à adesão a hábitos mentais violentos (falta de fraternidade universal, valores absolutos, paranóia etc.)


08 maio 2020

O Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direita brasileira

O artigo abaixo foi escrito como réplica a um outro texto, publicado alguns dias antes, no jornal Gazeta do Povo. Embora eu faça referência expressa a esse artigo inicial, lendo a minha réplica torna-se logo evidente que não faz muita diferença a leitura do primeiro texto; em outras palavras, a minha réplica sustenta-se por si mesma e apresenta informações e interpretações por si só.

A minha réplica foi publicada em 8.5.2020 e está disponível aqui. A versão abaixo é um pouco maior que a publicada na Gazeta do Povo.

O artigo também foi publicado - com acesso aberto - no jornal carioca Monitor Mercantil, na edição de 23 a 25 de maio de 2020; ele encontra-se disponível aqui. Lá embaixo porei também a versão JPG do artigo.

N. B.: A data de publicação do meu artigo não poderia ser mais emblemática: em 8 de maio de 1945 a Alemanha nazista rendeu-se de maneira incondicional aos Aliados, encerrando a luta contra o fascismo na Europa.


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O Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direita brasileira

O artigo “O que é o Positivismo, a filosofia política que faz a cabeça dos militares brasileiros”, escrita pelo jornalista Rafael Salvi e publicada na Gazeta do Povo em 4.5.2020, é uma coleção inacreditável de mitos, invenções arbitrárias e erros sobre o Positivismo, sobre seu criador, Augusto Comte, e sobre a atuação dos positivistas no Brasil; praticamente todas as suas informações estão erradas, o que é mesmo notável. Aliás, não por acaso, entre suas fontes – todas elas de segunda, terceira ou quarta mãos – estão Olavo de Carvalho e João Camilo de Oliveira Torres, dois intelectuais conservadores e produtores em série de mitos, invenções arbitrárias e erros. Na mesmíssima senda anda Rodrigo Constantino, celebrado “autor” – mas não “pesquisador” nem “historiador”, nem “filósofo” – da nova direita radical brasileira. Todos eles colecionam, como se fosse uma competição, tolices e erros sobre o Positivismo, em um esforço aparentemente coordenado contra essa doutrina nas últimas semanas. Em virtude disso, merece uma réplica que seja minimamente detalhada.

Comecemos pela obra do francês Augusto Comte (1798-1857), fundador da Sociologia, da História das Ciências, do Positivismo e da Religião da Humanidade. A sua principal obra foi o Sistema de política positiva (1851-1854), em que, repetindo várias considerações pacifistas presentes em sua obra preparatória do ponto de vista intelectual (o Sistema de filosofia positiva (1830-1842)), ele afirma com todas as letras que a política moderna tem que ser pacifista e civilista, que as forças armadas devem ser dissolvidas e que as forças policiais devem ter um caráter cidadão e de manutenção da ordem pública. De maneira correlata, a política moderna deve caracterizar-se pela “separação entre os dois poderes”, ou seja, pela separação entre os poderes temporal e espiritual, em que o Estado não tem religião oficial e as religiões não se beneficiam do poder do Estado – o que em termos gerais equivale à laicidade do Estado. Política pacifista, civilista e laica: as liberdades de pensamento, de expressão e de associação são a base da organização social e política e esta, por sua vez, fundamenta-se na fraternidade universal e no respeito mútuo. O resultado disso tudo é que a política moderna – republicana – é cada vez mais regulada pela moral, pelos valores, e, de maneira concomitante, cada vez menos regulada pela força física.

Uma outra consequência da “separação entre os dois poderes” é que o governo não pode ser constituído pelos “sábios” ou pelos técnicos. Evidentemente é necessário que o Estado tenha seus técnicos, assim como um corpo burocrático responsável pela realização das políticas públicas; todavia, há uma gigantesca diferença entre o Estado possuir um corpo técnico e esse mesmo Estado ser dirigido pelos técnicos. Augusto Comte dizia com todas as letras que os “sábios” não podem mandar no Estado; esse regime político era por ele chamado de “pedantocracia” (palavra criada por Stuart Mill) – “governo dos pedantes” – e, em termos atuais, ela poderia ser chamada de “tecnocracia”. Para Comte, o governo deve ser dirigido por cidadãos com espírito público, visão de conjunto, sensibilidade social, tolerância e fraternidade – e sempre atentos às opiniões e avaliações da opinião pública.

Vale notar que, justamente porque era movido por um espírito histórico, relativo e altruísta, Augusto Comte afirmava a necessidade de uma política moderna que fosse positiva, incluindo nessa política o respeito escrupuloso e cuidadoso pelas religiões antigas e por seus papéis históricos; sendo francês, Comte indicava aí nomeadamente o catolicismo. Essa regra foi cumprida pelos positivistas, mas, ao mesmo tempo, foi ridicularizada pela esquerda e “esquecida” pela direita católica; em qualquer caso, como a respeito de vários outros aspectos, ela foi objeto de desinformação.

A atuação dos positivistas no Brasil seguiu à risca essas orientações. O autor da bandeira nacional republicana, o vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil, Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), tinha em mente os valores indicados acima ao seguir a orientação comtiana e incluir o “Ordem e Progresso” na bandeira. Aliás, nas centenas de publicações da IPB, Teixeira Mendes e Miguel Lemos (1854-1917, Diretor da IPB) não se cansaram nunca de repetir esses valores e de refutar os sofismas daqueles que atribuem o militarismo ao Positivismo. (Aliás, exatamente para combater a desinformação antipositivista, uma dessas publicações está disponível para consulta pública e gratuita no portal Archive.org.)

O professor Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) – positivista por opção religiosa, filosófica e política, militar por necessidade, como se vê na monumental biografia que Teixeira Mendes escreveu sobre ele – era igualmente adepto dessas concepções. Assim, o ensino que ele realizava na Escola Militar e na Escola Politécnica era civilista, pregando o afastamento dos militares (como militares) da vida política nacional e ocidental. Exatamente por isso, Benjamin Constant e sua orientação foram objeto de ódio pelos militaristas, que pregavam a politização das forças armadas e a militarização da política. Entre esses militares, o mais famoso e importante foi o arquigolpista General Pedro Aurélio de Góis Monteiro (1889-1956), que, apoiando o golpe de 1930, apoiou também todos os militares golpistas dali por diante, em particular aqueles simpáticos ao integralismo (a versão nacional do fascismo) e que fizeram o golpe de 1964, como o antigo integralista Olímpio Mourão Filho (1900-1972). No regime autoritário de 1964, um dos seus apoiadores de primeira hora foi o economista “liberal” Roberto de Oliveira Campos (1917-2001); apesar de “liberal”, ele foi Ministro do Planejamento do governo autoritário e nunca deixou de chamar-se de “tecnocrata”.

Todas essas informações são públicas e disponíveis para consulta; só é necessário buscar as fontes originais, não as secundárias, terciárias, quaternárias... Uma informação mais difícil de obter, todavia, são as opiniões de Henrique Batista da Silva Oliveira e Alfredo de Morais Filho – como Benjamin Constant, positivistas por opção religiosa, filosófica e política, militares por necessidade – a respeito dos militares de 1964. A partir de conversas pessoais que mantive com eles e também de relatos de amigos meus, para eles quem deu o golpe de 1964 eram “fascistas”; não por acaso, chamavam Góes Monteiro de “Gás morteiro”, que enquanto viveu fez o possível para combater com agressividade os positivistas militares. Por outro lado, o tecnocrata autoritário Roberto Campos, que é objeto de admiração dos liberais e da nova direita brasileira – incluídos aí o Ministro da Economia Paulo Guedes, o astrólogo Olavo de Carvalho e o autor Rodrigo Constantino – era encarado como alguém sem patriotismo, um “entreguista”, que aliás até o fim de sua vida desejava vender o patrimônio brasileiro para os estrangeiros. A nova direita, embora afirme defender a “liberdade” e combater a “tecnocracia”, não vê problema nenhum em celebrar Góes Monteiro e Roberto Campos e em atribuir os defeitos de gente como eles ao “Positivismo”.

Todos os erros teóricos e históricos indicados acima provêm da (nova?) direita conservadora (neste caso, “católica” e “liberal”): não é por acaso que citam em profusão J. C. Oliveira Torres. Entretanto, é motivo de assombro, ou de ridículo, que repitam os mesmíssimos erros que a esquerda sempre gostou de imputar ao Positivismo e aos positivistas. Embora seja possível incluir aí Marilena Chauí e Michel Löwy, um autor menos espalhafatoso foi o historiador paulista Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982), fundador do Partido dos Trabalhadores. Como já tive oportunidade de indicar e refutar, Sérgio Buarque repetiu todas as desinformações indicadas acima, com a espantosa inovação de pretender entender a obra de Augusto Comte melhor que o próprio Teixeira Mendes!

Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino e agora Rafael Salvi, entre outros, têm-se dedicado a imputar ao Positivismo os seus próprios erros: politização dos militares, aumento da violência na política, desprezo pelos aspectos morais e afetivos na vida sociopolítica, desprezo pela fraternidade e pela tolerância, instrumentalização do Estado por ideologias político-religiosas etc. Eles atribuem ao Positivismo a militarização da política, mas ao mesmo tempo apoiam um governo que se caracteriza exatamente por essa militarização e por um esforço de tecnocratização do Estado; aliás, fazem eco ao voto de extermínio dos positivistas proferido em 9.3.2020 por um dos filhos do Presidente da República.

Infelizmente, tudo isso é apenas distração e desinformação. Desde há alguns anos vivemos um novo tenentismo, com crescentes grupos paramilitares bastante agressivos, de origem castrense e civil; esse novo tenentismo não tem sido reprimido pelas Forças Armadas, que o tolera como se não fosse profundamente perturbador, tanto da ordem político-social quanto da própria disciplina militar.

Nesses termos, os golpes dirigidos contra o Positivismo e os positivistas servem apenas para (tentar) disfarçar a própria política antirrepublicana e anticívica seguida atualmente pela direita nacional. De modo mais específico, a difusão renovada dessa desinformação integra uma campanha promovida pela direita histérico-política desde há algumas semanas no sentido de incentivar os militares – que cada vez mais integram o governo, movidos, sem dúvida, por um sincero embora equivocado senso de dever e de patriotismo – a abandonarem o comportamento constitucional e republicano de obediência às regras e de limitação da atividade propriamente política (felizmente interpretados pela direita como sinais de Positivismo) e a adotarem um renovado comportamento político ativista, intervencionista e autoritário.

A crítica ao Positivismo, assim, é uma nuvem de fumaça e um código da direita para um eventual golpe militar fascista.

Gustavo Biscaia de Lacerda é positivista ortodoxo e Doutor em Sociologia Política.

Fonte: https://monitormercantil.com.br/positivismo-como-cortina-de-fumaca-para-os-erros-da-direita-brasileira

01 abril 2018

Gazeta do Povo: "Conservadores à deriva no Brasil"

Artigo publicado em 1º de abril de 2018 na Gazeta do Povo, de Curitiba. O original pode ser lido aqui.

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Conservadores à deriva no Brasil

Os conservadores brasileiros estão à deriva, ou assim parece; a falta de rumo que eles apresentam é tão grande que em muitos casos eles não deveriam ser chamados de “conservadores”, porém, sim, de “reacionários” ou de “retrógrados”. Cada vez mais se ouvem notícias ao mesmo tempo chocantes e tristes de pessoas que comemoram aniversários de adolescentes valorizando as relações sociais características da escravidão negra extinta em 1888; ou que chicoteiam manifestantes que expõem idéias contrárias; ou que se rejubilam com o assassinato de políticos esquerdistas... o ápice dessa perspectiva consiste em apoiar um Capitão reformado do Exército que, embora afirme apoiar as ações das Forças Armadas, começou sua carreira política na década de 1980 por meio de motins e da instalação de uma bomba em um quartel – e que, desde então, pauta suas atividades parlamentares pelo radicalismo, pela violência, pelo combate às liberdades públicas e pela negligência em relação aos temas vinculados às Forças Armadas.

Entrementes, deixarei para comentar esse militar demagogo mais adiante; neste momento é necessário concentrar-me no conservadorismo em geral e no conservadorismo brasileiro em particular.

Historicamente, os conservadores começaram a definir-se dessa forma no final do século XVIII, na Inglaterra, em reação à Revolução Francesa. O expoente inicial do conservadorismo foi o político e pensador irlandês Edmund Burke, que, no livro Reflexões sobre a revolução em França (1790), rejeitou as mudanças rápidas e violentas introduzidas na França, propondo, ao contrário, o respeito pelo passado e mudanças incrementais nas instituições. Dessa forma, a concepção histórica de Burke não era estática, reconhecendo que as sociedades e as instituições mudam ao longo do tempo; em sua concepção, as instituições são frágeis e, de qualquer maneira, são cristalizações da experiência histórica, de modo que convém respeitá-las e fazer modificações pequenas, ao longo do tempo, a fim de testar a eficácia das alterações propostas. Além disso, para Burke e para a tradição conservadora que ele iniciou, as instituições devem ser respeitadas não apenas devido a um respeito quase místico pelo “passado” – o que é o mero tradicionalismo –, mas também porque se considera que elas asseguram as liberdades públicas e as garantias jurídicas dessas liberdades (habeas corpus, devido processo legal, direito à ampla defesa; liberdades de pensamento, expressão e associação etc.).

Como se vê, o conservadorismo filosófico combina a resistência às mudanças sociais – em particular, às mudanças provocadas, conscientes – com a aceitação de que as coisas mudam. Não há dúvida de que essa fórmula varia de autor para autor, no sentido de que alguns concentram-se mais na resistência que na aceitação, ou vice-versa; assim, em geral, embora o conservadorismo não tenha uma concepção estática da história, para ele a história tem um ritmo bastante lento; por outro lado, de modo geral essa forma de pensar (ou esse “temperamento”) vincula-se à defesa das liberdades. Evidentemente, refiro-me aqui a algo chamado “conservadorismo político-filosófico”, em sua vertente inglesa, ou seja, a uma tradição intelectual que surgiu em conjunto com e mesmo em reação à modernidade ocidental, após 1789. Um comentário desse tipo é importante para enfatizar a deriva em que se encontra o “conservadorismo” brasileiro – que, como indicado acima, tem dado mostras de que não “resiste” aos avanços, mas que os rejeita, e que não defende as liberdades e a solução pacífica de disputas, mas celebra a violência, a truculência, a opressão e – o que, sem dúvida, é o mais chocante, também a escravidão.

De qualquer maneira, a relação com os movimentos da história (rejeição ou aceitação) e o sentido aplicado a essa relação (proteção da liberdade ou estímulo ao progresso) permite caracterizar também a chamada “esquerda”, para além dos conservadores. Cabe notar que é de propósito que não estou assumindo como equivalentes “conservadores” e “direita”, por um lado, e “progressistas” e “esquerda”, por outro lado. Em um livro dos anos 1990 que se tornou famoso (Direita e esquerda – razões e significados de uma distinção política), o italiano Norberto Bobbio estabeleceu que o conteúdo específico da “direita” seria a defesa da liberdade, ao passo que o conteúdo da “esquerda” seria a promoção da igualdade. Bobbio reconhecia que essa proposta seria polêmica e sujeita a uma infinidade de objeções; da minha parte, considero que, embora seja extremamente didático e simpático, de fato esse livro difunde um sério equívoco político. Qual equívoco? Associar a “esquerda” à “igualdade” não é em si problemático (nem, da mesma forma, associar a “direita” à “liberdade”): o problema surge quando se vincula a esquerda ao progresso, isto é, à concepção de que a história (1) tem uma direção, considerando o conjunto dos séculos, e (2) que é possível acelerar a marcha histórica para que se percorra mais rapidamente esse caminho. Ora, nos termos de Bobbio, se a esquerda é o campo do progresso, esse progresso está vinculado à igualdade; inversamente, a direita seria o campo do “não progresso”, isto é, o campo da “ordem” e/ou do “conservadorismo” e/ou do reacionarismo.

Assim, o problema que Bobbio não quis perceber, ou reconhecer, ou enfrentar, é que o progresso exige a liberdade e, na medida em que ele consiste no desenvolvimento das capacidades humanas, o progresso estimula a diferenciação social e individual, ou seja, atua na direção contrária à igualdade; inversamente, face ao progresso, a igualdade só pode ser promovida por meio da limitação das habilidades humanas, via compressão das liberdades. Em suma: o progresso exige a liberdade e estimula as diferenças (ou as desigualdades), ao passo que a igualdade exige a restrição ou a supressão das liberdades: isso é sabido pelo menos desde o início do século XIX.

A concepção de que a esquerda seria “boa” porque seria “progressista” reside, portanto, em um profundo mal-entendido sobre em que consiste o progresso; a chancela moral positiva vinculada ao progressivismo conduziu a esquerda a erros monumentais por todo o mundo desde o início do século XX, incluindo aí o Brasil: a intentona comunista de 1935, os arroubos populistas nos anos 1950 e 1960, as guerrilhas urbanas e rurais durante o regime militar – e, mais recentemente, o ódio social promovido por Lula em seus mandatos e a falência econômica do Brasil nos mandatos de Dilma Rousseff. Não há necessidade de estender-me sobre as mancadas práticas da esquerda (no Brasil ou no mundo), nem sobre os seus defeitos intelectuais – tudo isso é público e notório.

O problema que se verifica no Brasil, entretanto, é que a reação recente à esquerda consiste tão-somente nisso: em uma reação. São idéias e atos que se definem apenas pela negação do outro, não pela proposição de idéias alternativas que visem a melhorar a sociedade e as instituições. Por certo que há exceções a esse diagnóstico, mas elas consistem em exceções, não na regra. O que os “conservadores” brasileiros fazem frente à esquerda e ao seu igualitarismo? Afirmam a liberdade e o mérito; todavia, tanto a liberdade quanto o mérito afirmados são abstratos – e abstratos demais –; no que se refere à fórmula da Revolução Francesa “Igualdade, liberdade, fraternidade”, afirmam apenas a liberdade, rejeitam totalmente a igualdade e desprezam a fraternidade.

Se a liberdade é a condição para o progresso social e se o progresso desenvolve as potencialidades humanas, tanto a liberdade quanto o progresso caminham na direção oposta da igualdade. Todavia, ao longo do século XX evidenciou-se que há alguns tipos de “igualdade” que precisam ser valorizadas, especialmente em termos “formais”, ou institucionais; essas modalidades constituem alguns dos fundamentos das sociedades livres contemporâneas: a isonomia (a igualdade de todos perante a lei), a igualdade de educação (como fundamento intelectual, cívico e técnico do progresso) e condições mínimas de vida para todos, a fim de acabar com a miséria e garantir a dignidade humana. Esses elementos são as condições do progresso social e, nesse sentido, constituem elementos da “ordem social”; mas, além disso, eles exigem que à liberdade seja adicionada um aspecto central, a fraternidade – ou a generosidade, o altruísmo. Deixando de lado os termos ariscos, polêmicos e problemáticos que são “direita” e “esquerda”, as relações sociológicas, políticas e morais entre ordem e progresso foram estabelecidas no século XIX por Augusto Comte: “O progresso é o desenvolvimento da ordem; a ordem são as condições do progresso” e “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”.

Em nome da igualdade social, a esquerda sacrifica a liberdade mas, ainda que nominalmente, aceita a fraternidade; já a direita, ou os conservadores, supostamente celebra a liberdade, mas ignora elementos da igualdade “formal” e despreza a fraternidade. Tanto em um caso como no outro, o que há são simulacros de progresso e de ordem: é um progresso que não desenvolve as potencialidades humanas e uma ordem que não permite esse desenvolvimento. Novamente Augusto Comte tem a palavra: ordem sem progresso e progresso sem ordem resultam em oscilação terrível entre uma ordem autoritária e um progresso anárquico.

Voltemos ao tema do conservadorismo. Como vimos, os conservadores – pelo menos aqueles influenciados pela tradição britânica – em princípio aceitam o progresso, ainda que a contragosto; eles também valorizam as liberdades e respeitam a experiência histórica: esses fatores permitem que esses conservadores possam dar uma contribuição efetiva para a sociedade. O que os assim chamados “conservadores” brasileiros têm feito afasta-se desse programa, em particular no sentido de rejeitarem a experiência histórica e de desvalorizarem as liberdades e o sistema de garantias institucionais das liberdades. O elogio da escravidão – encoberto por festas de aniversário de crianças (!!!) ou pelo chicotear manifestantes –; a afirmação do racismo; o desprezo pelas mulheres e por suas contribuições à sociedade; o elogio desbragado do autoritarismo militar, da “solução” violenta de conflitos e das torturas: nada disso corresponde a um programa de liberdades, não se aproxima do conservadorismo britânico e, por fim, é contrário tanto ao progresso quanto à ordem. As corretas e necessárias noções de “mérito” e “meritocracia”, por exemplo, são pegas no fogo cruzado desses vários conceitos equivocados.

Dito isso, desde 2013, uma estranha nostalgia pelo autoritarismo militar tem-se organizado em corrente política, associada ao “conservadorismo”: isso exige alguns comentários. Devido ao regime militar de 1964, até há poucas décadas costumava-se associar os militares (e a “direita” e os “conservadores”) a autoritarismo, a truculência e a torturas; inversamente, o pacifismo era vinculado à sociedade civil, ao progresso e à esquerda.

Entretanto, essas diversas associações são bastante conjunturais: simplesmente não há motivo para vincular os militares a brucutus acéfalos e violentos. Três exemplos bastam para ilustrar o ponto. No final da década de 1880 o Tenente-Coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães lecionava Matemática na Escola Militar; embora pertencesse profissionalmente às Forças Armadas (tendo mesmo lutado na Guerra do Paraguai (1864-1870)), Benjamin Constant adotava uma abordagem filosófica e histórica em seu ensino, resultando em um viés cívico, civilista e pacifista: os seus alunos de modo geral viam-se antes como cidadãos e depois como soldados; em particular, eles entendiam que o progresso é um ideal a ser perseguido, mas que, para isso, as condições da ordem têm que ser satisfeitas: liberdades, condições dignas de vida, primado da lei. Um dos seus mais ilustres alunos foi Cândido Mariano da Silva Rondon, o “Marechal da Paz”, aquele que dizia – e praticava! – a bela fórmula “morrer se for preciso, matar jamais”.

Em reação ao ensino cívico, civilista e pacifista de Benjamin Constant, procedeu-se nas décadas de 1910 a 1930 diversas alterações no ensino militar, promovidas principalmente pelo futuro General Góes Monteiro: autoritário, esse militar esteve envolvido nas conspirações civil-militares de 1930, 1937, 1945, 1954 e, claro, 1964. Os exemplos de Benjamin Constant e Rondon ilustram que a vinculação entre militares e truculência não é algo necessário: o autoritarismo militar pode ser um projeto político, como no caso de Góes Monteiro. Aliás, convém notar que, apesar desse profundo defeito político (seu autoritarismo), Góes Monteiro era também um intelectual, ou seja, ele estudava e procurava articular racionalmente suas idéias: assim, não há porque vincular militarismo e anti-intelectualismo. Ainda mais: até mesmo o autoritarismo militar pode rejeitar o estilo brucutu, anti-intelectual e demagógico de proceder: as ações cuidadosas e firmes do General Ernesto Geisel, durante seu governo, sugerem que ele seria contra o Deputado Federal que supostamente “representa” os militares. Dessa forma, esse Deputado revela-se apenas um demagogo incoerente, que desconhece a história das Forças Armadas brasileiras e que, portanto, não a honra no que ela teve de melhor.

O resultado das reflexões acima – das quais tive que deixar de lado o crescente papel político do conservadorismo cristão – é que a “direita” brasileira em geral e os chamados “conservadores” em particular estão profundamente desorientados. Essa desorientação não é daninha apenas para eles mesmos, como eventual grupo político ou como defensores de determinados valores culturais e morais: essa desorientação é prejudicial para o Brasil como um todo, ao difundir concepções erradas de ordem e progresso, de igualdade, liberdade e fraternidade, e ao estabelecer uma dinâmica viciada com a esquerda – cujos problemas intelectuais, morais e políticos são sobejamente conhecidos. Em vez de buscarem aliar-se em projetos claros em prol das condições de ordem e progresso, cada vez mais conservadores e esquerdistas alimentam entre si um relacionamento de ódio mútuo e acusações constantes – em que, a despeito de acertos políticos ocasionais e específicos, nenhum dos dois lados está efetivamente na direção correta.

Gustavo Biscaia de Lacerda é Sociólogo da UFPR e Doutor em Sociologia Política pela UFSC.