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01 setembro 2025

Objetividade, subjetividade e entendimento humano

As citações abaixo são extraídas do v. 2 do Sistema de política positiva, de Augusto Comte, em seu cap. 1. 


Elas tratam de várias questões fundamentais para o ser humano: como entendemos a realidade, qual a parte do mundo e qual a parte do ser humano em nossas idéias, qual o papel dos sentimentos... isso pode parecer, à primeira vista, mera discussão acadêmica, mas são reflexões que têm aplicações diretas e imediatas na vida de todos nós.

É uma leitura densa, mas muito recompensadora.

O volume 2 da Política positiva foi publicado em 1852 e seu subtítulo é este: “Contendo a Estática Social ou o tratado abstrato da ordem humana”.

O capítulo 1 desse livro tem por título o seguinte: “Teoria geral da religião, ou teoria positiva da unidade humana”.


*   *   *


 

- Hipóteses, objetividade, subjetividade; separação inicial entre razão teórica e razão prática; pesquisa das leis preponderante sobre o objetivismo dos fatos e o subjetivismo das causas; relativismo e absolutismo das sínteses:

“Eu caracterizei suficientemente agora, sob todos os aspectos essenciais, o único modo sintético que convém plenamente à natureza humana. Seu desenvolvimento direto e especial pertence ao último volume deste tratado, quando seu advento decisivo encontrar-se-á convenientemente demonstrando a partir do conjunto do passado. Mas, para completar minha teoria geral da religião, resta-me aqui, como inicialmente anunciei, caracterizar sumariamente minha longa e difícil iniciação que exigia o estabelecimento da verdadeira unidade.

As diversas explicações precedentes devem ter feito implicitamente sentir que uma tal síntese não comportaria de maneira nenhuma um desenvolvimento imediato, malgrado a espontaneidade das tendências que nos conduzem a ela sempre. Será agora então fácil de motivar diretamente sua preparação necessária. Ela é igualmente exigida pela natureza intelectual e pela fonte moral da verdadeira religião.

Inicialmente, a fé devia ser essencialmente objetiva, desde que o dogma positivo consiste no conhecimento real da ordem universal. As inspirações subjetivas não podem concorrer para a elaboração dos seus diversos elementos senão por meio de uma influência secundária, suficientemente indicada acima, fornecendo as hipóteses destinadas a tornar-se leis, conforme sua verificação exterior. Quando a sistematização positiva é enfim possível, a subjetividade começa a prevalecer, como a única capaz de coordenar os materiais obtidos, seguindo as explicações de meu primeiro volume. Mas esse termo não chega senão após uma inteira extensão do espírito científico até os fenômenos menos gerais e mais complicados. Antes que essa condição seja suficientemente preenchida, a preponderância da subjetividade viciaria radicalmente todas as nossas teorias. Ora, uma tal realização não poderia ser incitada, desde que a descoberta da ordem natural não poderia fazer-se senão sucessivamente, procedendo sempre do mundo em direção ao homem, ou dos fenômenos mais gerais aos mais particulares.

Mas, por outro lado, em virtude mesmo dessa marcha característica, a objetividade não poderia nunca construir uma síntese qualquer. Se sua impotência para sistematizar é hoje reconhecida após vinte séculos de estéreis esforços, com mais forte razão ela seria inevitável antes da aquisição de materiais positivos. Toda síntese deve então ser subjetiva, ainda que ela não comporte realidade senão conforme uma base objetiva, cuja elabora demora muito tempo. Entretanto, o homem não pode nunca ficar sem uma síntese qualquer, para coordenar seus pensamentos, de maneira a dirigir sua conduta. Uma tal situação mental não admite outra saída senão a construção, inteiramente subjetiva, de uma síntese felizmente espontânea, mas necessariamente quimérica e então puramente provisória.

Ora, tal solução inicial, sem a qual nossa razão não poderia surgir, resulta naturalmente de nossas tendências primitivas em direção às concepções absolutas, que nos dispensariam de todas pesquisas especiais, ao permitir-nos deduzir sempre sem ter nunca induzido. As leis reais, vale dizer os fatos gerais, não puderam manifestar-se senão muito tarde, mesmo a respeito dos menores fenômenos celestes. Enquanto eles permanecem desconhecidos, o espírito humano persegue necessariamente a vã determinação das causas, vale dizer, das origens e das destinações absolutas. Essa pesquisa, então animada pela esperança de um império ilimitado sobre um mundo em que a ordem parece arbitrária, é a única que pode dissipar nosso torpor inicial. Um tal problema não comporta, mesmo hoje, outra solução que essa que surgiu inicialmente, a explicação do mundo conforme o homem, seguindo a assimilação espontânea da natureza morta à natureza viva. Assim se institui diretamente o método subjetivo, cujo livre desenvolvimento não sofre então nenhum entrave objetivo. Em uma palavra, nessa filosofia intuitiva, que pesquisa a essência de tudo, as vontades ocupam o lugar das leis. Uma semelhante síntese, que agora convém tão pouco à especulação quanto à ação, foi por muito tempo tão indispensável a esta quanto àquela. Recairemos sempre aí quando desejamos agir sistematicamente, sobre fenômenos de que ignoramos as leis especiais. Com efeito, na falta de noções exteriores, é necessário que nossa sabedoria siga com cuidado os impulsos interiores, mais morais que mentais, a menos que ela abstenha-se totalmente, o que se torna com freqüência impossível.

O primeiro estado de nossa inteligência não permite então nenhuma harmonia durável entre a razão prática e razão teórica. Enquanto uma, exclusivamente objetiva, não oferece senão fatos isolados, a outra, puramente subjetiva, não apresenta senão generalidades incapazes de ligar nossas noções particulares. Ainda que guiada por falsas aproximações, esta tende sempre à previsão sistemática, o mesmo ao que renunciamos em seguida. Mas aquela prepara também o estado normal, ao descobrir em toda parte algumas leis empíricas, que permitem previsões reais em inúmeros casos usuais. Nossa iniciação mental consiste sobretudo em combinar suficientemente essas duas tendências simultâneas em direção à realidade das noções e à generalidade das concepções. Essa combinação não se torna possível senão ao corrigir os excessos respectivos de objetividade e de subjetividade. Ora, o conjunto dos impulsos práticos dispõe a isso naturalmente, ao fazer cada vez mais sentir que esses dois vícios opostos impedem igualmente de prever para melhor agir. Afinal, um entrava toda indução geral e o outro, toda dedução real. Assim surgiu gradualmente a dupla preponderância do estudo das leis sobre o conhecimento dos fatos e sobre a pesquisa das causas.

Comparada à síntese definitiva, essa síntese provisória oferece semelhanças essenciais sob profundas diferenças. Sua espontaneidade característica torna-a inteiramente subjetiva; mas sua destinação exige que se a creia objetiva. Por aí se anuncia, e mesmo se prepara, a conciliação final das duas grandes condições especulativas. Cada síntese repousa sobre a preponderância do tipo humano: mas ele é pessoal em uma e social na outra. Sua principal diferença resulta da natureza absoluta da primeira, oposta à relatividade da segunda. Esse contraste científico é completado por seu contraste lógico, consistindo sobretudo em que as hipóteses primitivas não são nunca verificáveis, ao passo que as hipóteses definitivas são-no sempre. Conforme o conjunto dessas oposições, as duas sínteses tendem a tornar-se inconciliáveis, à medida que a última desenvolve seus verdadeiros caracteres.

Em segundo lugar, a apreciação social manifesta ainda melhor a impossibilidade inicial da verdadeira unidade e a necessidade de um regime preparatório. Além de que o Grande-Ser não poderia de maneira nenhuma ser apreciado então, ele não é mesmo suficientemente formado. Seu desenvolvimento decisivo supõe uma longa evolução, à qual devem presidir ficções espontâneas. O amor, com dificuldade suficiente hoje, mantém-se inicialmente de tal maneira restrito que o ódio domina em direção à quase totalidade da nossa espécie. Toda a atividade coletiva emana então dos instintos inferiores. Não podendo realizar a conquista de um mundo que parece tão invencível quanto inexplicável, cada associação parcial esforça-se sobretudo por submeter as outras. Mas essa tendência, no início cegamente destrutiva, regulariza-se desenvolvendo-se. Ela institui espontaneamente a sociabilidade preliminar, cimentando a união interior e conduzindo à incorporação exterior. A Pátria prepara a Humanidade e o egoísmo nacional dispõe ao amor universal.

Esse regime guerreiro, como o dogma fictício, permanece sempre incompleto, como conseqüência de sua comum oposição às exigências práticas. A atividade industrial surgiu sob um, da mesma forma que o espírito positivo sob o outro. Assim se desenvolvem os elementos definitivos durante a imperfeita dominação dos elementos primitivos, até que o aumento daqueles e a diminuição destes conduzem às lutas que aceleram o advento necessário da verdadeira unidade.

As duas potências provisórias tendem cada uma a dominar sem partilha. Entretanto, sua rivalidade natural pode ser suficientemente contida por uma afinidade espontânea, que lhes permite por muito tempo combinarem-se. O espírito absoluto do dogma fictício e o caráter egoísta do regime guerreiro são muito análogos para permanecerem sempre inconciliáveis. Ao combinarem-se, um estende sua preponderância e o outro aumenta sua consistência. Então as opiniões não demonstráveis e as autoridades não discutíveis apóiam-se mutuamente. De sua conexão resulta inicialmente a consolidação do regime inicial, mas em seguida sua tendência a dominar além de seu destino normal. De qualquer maneira, seu elemento temporal mantém-se mais compatível que seu elemento espiritual com o desenvolvimento da síntese final. Ele não é destinado, como este último, a uma inteira extinção; pois ele pode cessar de prevalecer sem perder toda eficácia. A atividade militar conservará sempre um ofício subalterno em relação às existências humanas e às organizações animais que violam ou rejeitam a harmonia universal sem poderem a ela serem trazidas de volta. Mas a fé sobrenatural já perdeu toda verdadeira utilidade entre as populações de elite; ela deve enfim apagar-se por toda parte, pois sua autoridade não pode nunca aceitar a subalternidade” (Política, v. II, p. 79-83).

Crítica à metafísica alemã, objetividade e subjetividade

As citações abaixo são extraídas do v. 2 do Sistema de política positiva, de Augusto Comte, em seu cap. 1. 

Elas tratam de várias questões fundamentais para o ser humano: como entendemos a realidade, qual a parte do mundo e qual a parte do ser humano em nossas idéias, qual o papel dos sentimentos... isso pode parecer, à primeira vista, mera discussão acadêmica, mas são reflexões que têm aplicações diretas e imediatas na vida de todos nós.

É uma leitura densa, mas muito recompensadora.

O volume 2 da Política positiva foi publicado em 1852 e seu subtítulo é este: “Contendo a Estática Social ou o tratado abstrato da ordem humana”.

O capítulo 1 desse livro tem por título o seguinte: “Teoria geral da religião, ou teoria positiva da unidade humana”.


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- Crítica à metafísica neokantiana, caráter aproximativo e conveniente das leis naturais, margem para elaboração estética das leis, acordo objetivo-subjetivo:

“Essa subjetividade assessória, viciosamente exagerada pelos pretensos sucessores de Kant, conduz ainda ignorantes pensadores a um idealismo não menos imoral que absurdo, que consagra involuntariamente uma completa personalidade e rejeita doutoralmente toda vida coletiva. Faz-se assim degenerar em retrogradação na direção do absoluto a direção filosófica mais própria a constituir o espírito relativo, conforme as diversas condições cerebrais de cada noção real. Mas, por outro lado, os puros cientistas [savants], e sobretudo os geômetras, na falta de um regime enciclopédico, resultam com freqüência, de uma forma inversa, na mesma degradação, ao exagerarem, por seu turno, a independência da ordem natural.

A sã filosofia caminha firmemente entre essas duas armadilhas contínuas. Ela representa todas as leis naturais como construídas por nós com materiais exteriores. Apreciadas objetivamente, sua exatidão não pode ser nunca senão aproximativa. Mas, estando destinadas apenas às nossas necessidades, sobretudo ativas, essas aproximações tornam-se plenamente suficientes, quando elas são bem instituídas segundo as exigências práticas, que fixam habitualmente a precisão conveniente. Além dessa medida, permanece com freqüência um grau normal de liberdade teórica, que devemos sabiamente usar para melhor satisfazer nossas puras inclinações mentais, inicialmente científicas, em seguida mesmo estéticas. Em relação às mais simples e melhor elaboradas de todas as leis reais, os geômetras, a despeito de si mesmos, aplicam freqüentemente essa preciosa faculdade ao justo aperfeiçoamento de suas concepções fundamentais. Eles empregam-na sobretudo para fornecer às relações abstratas uma plena continuidade, indispensável ao desenvolvimento das especulações matemáticas, mas que a ordem exterior desmentiria sempre, se conduzíssemos demasiadamente longe seu estudo sistemático. Por exemplo, a lei newtoniana da gravitação não convém mais para toda distância que a lei de Mariotte para toda pressão. Elas fornecem entretanto bases legítimas, uma à nossa mecânica celeste, a outra à teoria matemática de nosso gás. Sem essa continuidade subjetiva, seu uso racional tornar-se-ia quase ilusório.

Nossa construção fundamental da ordem universal resulta então de um concurso necessário entre o exterior e o interior. As leis reais, vale dizer os fatos gerais, não são nunca senão hipóteses suficientemente confirmadas pela observação. Se a harmonia não existisse de maneira nenhuma fora de nós, nosso espírito seria inteiramente incapaz de concebê-la; mas, em nenhum caso, ela não se verifica tanto quanto supomo-la. Nessa cooperação contínua, o mundo fornece a matéria e o homem, a forma de cada noção positiva. Ora, a fusão desses dois elementos não se torna possível senão por sacrifícios mútuos. Um excesso de subjetividade impediria toda visão geral, sempre fundada sobre a abstração. Mas a decomposição que nos permite abstrair permaneceria impossível se não descartássemos um excesso natural de subjetividade. Cada homem, ao comparar-se com os outros, remove espontaneamente de suas próprias observações o que elas têm inicialmente de muito pessoal, a fim de permitir o acordo social que constitui a principal destinação da vida contemplativa. Mas o grau de subjetividade que é comum a toda a nossa espécie persiste ordinariamente, aliás sem nenhum grave inconveniente. Nós não poderíamos reduzi-lo senão pelo comércio intelectual com outros animais, que não se estabelece senão raramente e para noções subalternas. Aliás, algumas restrições sucessivas que experimentaram assim a influência subjetiva, conforme uma necessidade crescente de ouvir-se com inteligências as mais diversas, jamais as concepções alcançariam uma pura objetividade. É assim tão impossível quanto inútil determinar exatamente as participações respectivas do exterior e do interior em cada noção real” (Política, v. II, p. 32-35)

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“A dificuldade principal da elaboração positiva consiste então na sucessão necessária de diversas grandes fases teóricas, em que cada uma depende da precedente e que entretanto não se tornam religiosamente eficazes senão por sua combinação total. Cada um desses graus sucessivos exige induções que lhes são próprias; mas elas não podem nunca se tornar sistemáticas senão sob o impulso dedutivo resultante de todas as ordens menos complicadas. Sem essa subordinação normal, conforme à dependência dos fenômenos, as leis naturais perderiam tanto consistência quanto racionalidade. Em uma tal hierarquia, as ordens inferiores propagam para o alto a regularidade e a fixidez diretamente próprias à sua simplicidade, ao passo que elas adquirem em retorno a dignidade inerente ao domínio superior. A eficácia religiosa da filosofia real depende sobretudo dessa dupla comunicação entre seus diversos elementos essenciais. Tais são as condições indispensáveis para estabelecer suficientemente a invariabilidade fundamental da ordem universal, cujo melhor tipo concernirá sempre aos fenômenos celestes, como os únicos subtraídos a toda intervenção humana.

Mas, malgrado a constante preponderância dessa primeira apreciação, o dogma positivo deve também caracterizar cuidadosamente as modificações normais que comporta quase sempre a economia natural. Para bem as conceber, é necessário inicialmente reconhecer que elas não oferecem nada de fortuito. Pois elas resultam diretamente da hierarquia geral dos fenômenos, em que cada ordem modifica todas aquelas que a dominam. Com efeito, a harmonia universal exige tanto essa reação quanto esse império. Haveria, sem dúvida, anarquia total se os fenômenos mais particulares não estivessem subordinados aos mais gerais. Mas a ausência de modificações inversas estabeleceria uma confusa identidade. A verdadeira distinção entre as grandes categorias naturais repousa essencialmente sobre essas reações necessárias, a cuja falta apenas as mais simples leis subsistiriam. É necessário então conceber a ordem real como tão distante do caos quanto da anarquia, ou como supõem ao mesmo tempo o movimento e a fixidez. Tal é, pelo menos, sua noção necessária em todo o mundo compatível com a vida; isso é o que constitui o único caso digno de exame.

Com efeito, a concepção de ordem universal como mais ou menos modificável resulta diretamente do grande dualismo filosófico entre a natureza morta e a natureza viva. Inicialmente, todo ser vivo, seja ele reduzido à existência vegetativa, modifica sem cessar o meio que o domina, conforme os materiais de que ele dispõe daí e os produtos que ele elabora. Por outro lado, ele modifica-se a si mesmo, para melhor se adaptar à sua situação. Esse duplo atributo expande-se sempre à medida que o ser torna-se mais elevado e mais desenvolvido. Ora, importa reconhecer que o ser não cria nunca no meio a aptidão para as modificações correspondentes: ele limita-se a utilizá-la. Se já o meio não fosse de maneira nenhuma modificável por si só, uma reação tão fraca quanto o é necessariamente a influência vital não lhe poderia alterar a constituição. Da mesma forma as mudanças que sofre a ordem material, apenas sob o conflito das potências inorgânicas, são com freqüência superiores a todas as provenientes dos seres vivos. Estes seres não fazem então senão determinar ao exterior o exercício de uma propriedade sobre a qual repousa sua existência. Mas essa relação constitui entretanto a única destinação necessária de uma tal aptidão exterior. Ainda que não pudéssemos de maneira nenhuma conceber a vida em um meio imodificável, suporíamos facilmente um tal meio, desde que nada nele vivesse, como em alguns planetas inabitáveis. A variabilidade normal da ordem material refere-se então essencialmente à existência vital, mas sem dela provir” (Política, v. II, p. 36-38).

14 maio 2025

Diálogo sobre visões no Positivismo


O texto abaixo corresponde a uma versão editada de um diálogo que ocorreu entre os dias 12 e 14 de maio de 2025, em um grupo do Whattsapp que trata do Positivismo e da Religião da Humanidade. Esse diálogo foi motivado por um participante do grupo, um jovem estudante interessado no Positivismo, que, em meio às conversas do grupo, teve uma dúvida sobre as visões religiosas. As respostas foram dadas inicialmente por Hernani Gomes da Costa e depois por Gustavo Biscaia de Lacerda.

O diálogo sofreu algumas edições – com dois objetivos principais: por um lado, adequar a conversa a uma versão publicada; por outro lado, preservar a privacidade do estudante. 


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Estudante ***

Amigos positivos, boa tarde a todos. Tenho mais um tema/pergunta que me parece muito interessante e que com certeza tem muito a ser dito.

Como interpretar positivamente visões religiosas (como as aparições de santos e espíritos, sonhos religiosos e demais experiências místicas)? Como o Positivismo iria lidar se, por exemplo, durante uma oração eu tivesse uma visão mística da Deusa Humanidade e de Comte? (Uma situação hipotética.)

 

Hernani

Bom dia, ***!

Um dos propósitos do culto positivo, e o seu resultado interior mais expressivo, consiste justamente nisso: reavivar, pela imaginação, os nossos mortos queridos até o ponto de eles apresentarem-se diante de nós com uma intensidade próxima àquela das nossas contemplações objetivas usuais.

A chamada visão mística só é mística segundo a interpretação teológica que dela se faz.

Para nós, positivistas, trata-se ao contrário de um fenômeno alucinatório, subjetivo, normal, desejável e mesmo frequente, se considerarmos os sonhos e as imagens hipnagógicas e hipnopômpicas que nos surgem no limiar da vigília ou do sono.

Frequentes na criação artística e mesmo científica, essas imagens subjetivas avivadas e exaltadas pelo exercício regular do culto, sobretudo íntimo, são para nós o equivalente subjetivo daquilo que os místicos creem vir de fora, segundo o espírito objetivista e absoluto de sua fé.

Essa deve ser, aliás, segundo Augusto Comte, a única diferença essencial entre as nossas visões e a dos místicos: nossos mortos chegam-nos de dentro, a partir de nós, por evocação, ao passo que para os místicos eles chegam de fora, por invocação.

Augusto Comte, por exemplo, via Clotilde de Vaux e dirigia-se a ela em suas orações e visões – que, aliás, ficavam, com a prática, cada vez mais vivas e nítidas sem que jamais fossem temidas ou confundidas com algo externo.

Nossos mortos habitam subjetivamente nossa imaginação, constituindo dessa forma realidades íntimas tão existentes a seu próprio modo quanto pode ser a mais bem constatada existência corpórea.

 

Estudante ***

Há algum material onde eu posso ler mais sobre essas experiências subjetivas no Positivismo? E onde possa ler mais sobre as visões de Comte?

 

Hernani

***, a parte do Catecismo positivista referente ao culto íntimo contém as indicações fundamentais sobre esse assunto (são a terceira e, principalmente, a quarta conferência do Catecismo).

 

Gustavo

***: bom dia. Sobre as visões de Comte, uma outra indicação é a belíssima obra de Teixeira Mendes, O ano sem par[1].

Complementando a resposta do Hernani: um outro aspecto que diferencia as visões positivistas das dos místicos é que nós reconhecemos que as visões são subjetivas (o que, como o Hernani indicou, não é ruim, mas algo a ser valorizado), ao passo que para os místicos as visões são objetivas; isso equivale aos termos usados pelo Hernani, respectivamente de visões “internas” e “externas”.

Além disso, é importante notar que todos nós, seja ao longo da vida, seja ao longo do dia, variamos nossas contemplações e nossas reflexões entre maior objetividade e maior subjetividade; é um fluxo constante e necessário, sem que possamos fixar-nos em apenas um polo. “Sem que possamos”: isso significa que não podemos, sob risco de loucura (seja a loucura propriamente dita, no caso do excesso de subjetividade, seja a idiotia, no caso de excesso de objetividade). Nessas variações, Augusto Comte recomendava que nos concentremos na imagem média, que deve ser entendida como a imagem normal; essa imagem normal, resultante da contemplação objetiva, deve ser preponderante sobre as imagens puramente subjetivas. Essa noção da imagem normal é a garantia da sanidade; mas, como comentamos antes, isso não equivale a negar o fluxo entre os polos objetivo e subjetivo nem a negar as visões positivas.

A noção de imagem normal está “codificada” na Filosofia Primeira[2] (que pode ser consultada no Catecismo positivista, na sexta conferência, dedicada ao dogma, na parte das ciências inferiores[3]); ela é explicada longamente e com o cuidado habitual por Teixeira Mendes no As últimas concepções de Augusto Comte[4].

Eis as leis da Filosofia Primeira que tratam do assunto:

SEGUNDO GRUPO, essencialmente subjetivo

1ª série: leis estáticas do entendimento

1ª Subordinar as construções subjetivas aos materiais objetivos (Aristóteles, Leibnitz, Kant) (IV)

2ª As imagens interiores são sempre menos vivas e menos nítidas que as impressões exteriores (V)

3ª A imagem normal deve ser preponderante sobre as que a agitação cerebral faz simultaneamente surgir (VI)





[1] As referências desse livro são estas: Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900.

Ele está disponível em PDF aqui: https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-o-ano-sem-par-portug./Raimundo%20Teixeira%20Mendes%20-%20O%20ano%20sem%20par%20%28Portug.%29/.

[2] O nome completo é “Quadro das quinze leis de filosofia primeira, ou princípios universais sobre os quais assenta o dogma positivo”.

[3] Fonte: Augusto Comte. 1934. Catecismo positivista ou sumária exposição da Religião da Humanidade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Apostolado Positivista do Brasil, p. 479.

[4] As referências desse livro são estas: Raimundo Teixeira Mendes, As últimas concepções de Augusto Comte, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898. Ele está disponível em PDF, em duas partes, aqui:

- Parte 1: https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-i

- Parte 2: https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-ii

29 março 2022

Curso livre de política positiva: roteiro da 2ª sessão

Reproduzo abaixo o roteiro da primeira sessão do Curso livre de política positiva, ocorrida no dia 15 de março, transmitida no canal Facebook.com/ApostoladoPositivista e também disponível no canal The Positivism (aqui).

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Súmula

Preliminares à Política Positiva II: historicismo; visão de conjunto e visão de detalhe; objetividade e subjetividade; descrições e prescrições; escala enciclopédica e graus de generalidade

 

Roteiro

-        Preliminares à Política Positiva II

o   Historicismo:

§  O ser humano é um ser social e histórico:

·         Se há um traço específico do ser humano, esse traço é a historicidade, ou seja, a sucessão de gerações e o acúmulo de materiais ao longo do tempo

§  Afirmação da solidariedade e, ainda mais, da continuidade

·         O rompimento da continuidade humana é o principal sintoma da doença moral-intelectual moderna

·         Essa tendência, que já era percebida e criticada na época de Augusto Comte, é cada vez mais e radicalmente constituinte do mundo – evidentemente, para nosso prejuízo

§  A experiência histórica não ser desperdiçada: os contextos mudam, mas há grandes continuidades (e mesmo essas continuidades mudam)

·         Desenvolvimento de atributos ao longo do tempo

·         Em particular: desenvolvimento da paz, da indústria, do trabalho livre, da ciência; do relativismo e da própria historicidade

§  A história não é passado-presente-futuro, mas passado-futuro-presente

§  Essas concepções são o fundamento último da Sociologia (cujo método específico é a “filiação histórica”)

o   Visão de conjunto, visão de detalhe

§  Afirmação constante da visão de conjunto filosófica, histórico-sociológica e moral sobre a visão de detalhe científica, industrial e política

·         Prevalência da visão de conjunto sobre a visão de detalhe; mas, ao mesmo tempo, diálogo constante entre ambas as visões à relações entre síntese e análise

·         Em termos histórico-sociológicos: continuidade sobre solidariedade; Humanidade sobre pátrias; pátrias sobre famílias; famílias sobre indivíduos

o   Sociologicamente, a “célula social” é a família, não o indivíduo; não existem “indivíduos” abstratos, apenas sociedades; do ponto de vista filosófico e sociológico, o indivíduo é uma abstração perniciosa e imoral à isso não quer dizer que os indivíduos não ajam, não atuem, não tenham sentimentos, nem que não tenham responsabilidades

§  Espírito positivo versus ciência

§  ciência: conhecimento analítico da realidade, por meio das leis naturais abstratas; conjunto mais ou menos homogêneo de doutrinas e métodos empregados na exploração de um determinado âmbito da realidade

§  espírito positivo: compreensão sintética da realidade, elaborada pela filosofia, abrangendo a ciência, a atividade prática (que deve ser sinergética) e os sentimentos (que devem ser simpáticos)

§  enquanto a ciência tende a secar e a isolar o ser humano (em termos intelectuais, afetivos e práticos), o espírito positivo busca desenvolver o espírito e a integrar o ser humano

§  o objetivo da ciência é auxiliar o ser humano em seu desenvolvimento à antes de mais nada moral e, depois, material à é assim que se deve julgar e avaliar a ciência

o   Objetividade e subjetividade:

§  Toda concepção humana consiste de diferentes porções de objetividade e de subjetividade

§  Existe uma realidade objetiva, independente da vontade dos seres humanos, a que temos acesso por meio da subjetividade à assim, em certo sentido a oposição objetividade-subjetividade reflete a oposição mundo-homem

§  A relação entre objetividade e subjetividade é, ela mesma, histórica:

·         Todas as concepções do ser humano são subjetivas; a teologia é radicalmente subjetiva, mas pretende-se objetiva

·         A ciência assume a objetividade da realidade; começando pelas ciências mais gerais, mais abstratas e mais fáceis, estabelece o relativismo; daí, subindo até a Biologia, disciplina a subjetividade, por meio dos diversos métodos particulares

·         A Sociologia aplica a objetividade à sociedade, ao mesmo tempo que reconhece e revaloriza a subjetividade; esse movimento é aprofundado na Moral, que então pode fundar o método subjetivo

§  O Positivismo respeita a objetividade mas rejeita o servilismo em face dela

·         O servilismo em face da objetividade – ou, dito de outra maneira, o excesso de objetividade – constitui a idiotia

·         O Positivismo institui uma nova subjetividade – daí a “síntese subjetiva”, que é um novo antropocentrismo

o   Descrições e prescrições

§  O Positivismo estuda o que é a fim de saber o que será a fim de estipular como agir: “saber para prever a fim de prover”

§  As descrições seguem o diálogo entre objetividade e subjetividade

·         As descrições, portanto, são sempre e necessariamente “interpretativas”

§  As prescrições são a sequência natural das descrições: afinal, a ciência tem que ser útil

·         O fundamento das prescrições é a combinação do conhecimento da realidade (incluindo aí da natureza humana) com a moral (pacífica, relativa, positiva)

§  “Para completar as leis são necessárias vontades”: essa fórmula aplica-se tanto na fase das descrições quanto na das prescrições

·         A subjetividade humana está em operação ao querer conhecer as leis naturais, ao formular as leis e ao aplicar na prática as leis

o   Escala enciclopédica e graus de generalidade

§  Lei explicativa da lei intelectual dos três estados

·         A lei intelectual dos três estados, como sabemos, é esta: “os conhecimentos humanos passam sucessivamente por três estados – teológico, metafísico e positivo –, com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes”

·         A escala enciclopédica esclarece quais os fenômenos são mais gerais e, portanto, quais concepções tornam-se positivas mais rapidamente

§  A escala enciclopédica afirma a multiplicidade das ciências: daí, portanto, ela estabelece a multiplicidade das leis naturais; por sua vez, isso estabelece a autonomia das várias ciências fundamentais entre si

·         “Os fenômenos mais nobres modificam os mais grosseiros subordinando-se a eles”

o   Relações entre subordinação e dignidade

o   Esse é o fundamento da diferença entre as “ciências superiores” e as “ciências inferiores” e, por extensão, do “método subjetivo”

·         Anti-reducionismo

o   A unidade da ciência é dada subjetivamente (por meio da síntese subjetiva), nunca doutrinariamente (por meio das teorias próprias a cada ciência)

·         Mudanças ao longo do tempo: fundação da Moral como ciência suprema; Sociologia como preparatória da Moral (v. II-III da Política)

§  Critérios:

§  Lógicos e históricos

§  Generalidade decrescente e especificidade (complexidade) crescente

§  Dedutibilidade decrescente e empiricidade crescente

§  Quanto mais elevada a ciência, mais complexa e nobre ela é; assim, mais modificável ela é; daí, maior a capacidade de intervenção humana

§  Classificação das ciências (abstratas) e respectivos métodos:

·         Matemática: dedução

·         Astronomia: observação

·         Física: experimentação

·         Química: nomenclatura

·         Biologia: comparação

·         Sociologia: filiação histórica

·         Moral: construção

19 janeiro 2020

19 de janeiro, aniversário de Augusto Comte, o fundador da Religião da Humanidade


No dia 19 de janeiro comemora-se o aniversário de nascimento de Augusto Comte (1798-1857), o fundador da Sociologia, da Moral Positiva, da História das Ciências e, mais importante que isso, da Religião da Humanidade.

Busto de Augusto Comte em frente à Universidade Sorbonne, em Paris.
Abaixo do nome está escrito "Merci par tout!" ("Obrigado por tudo!").

A Religião da Humanidade, ou simplesmente “Positivismo”, é uma religião humana e humanista, que busca harmonizar as várias facetas da natureza humana, entendendo que essa natureza compõe-se de três elementos – os sentimentos, a inteligência e a ação prática –; esses elementos, por sua vez, atuam tanto nos indivíduos quanto na vida coletiva. Assim, os seres humanos são sempre motivados pelos sentimentos, que podem ser altruístas ou egoístas; para viverem, devem conhecer a realidade que os cerca e, a partir disso, agem nas sociedades.

Augusto Comte percebeu que a moralidade humana consiste em agir sempre com vistas ao altruísmo, ou seja, em benefício dos demais, mesmo quando cada indivíduo e cada sociedade tem que satisfazer as suas próprias necessidades particulares. Esse princípio fundamental da moralidade é também o que permite que os seres humanos sejam felizes e, ao mesmo tempo, é o que permite que as concepções que cada um tem da realidade – a filosofia, a ciência – sejam organizadas de maneira racional e coerente. Por fim, todos sabemos que ao longo de nossas vidas enfrentamos inúmeros desafios, que exigem de cada um respostas intelectuais e práticas; como se diz, viver em sociedade não é fácil: a moralidade positiva, baseada na realização do altruísmo, permite que essas dificuldades sejam diminuídas e adequadamente tratadas, minorando os sofrimentos humanos e permitindo o máximo de justiça.

A Religião da Humanidade é uma “religião”: é um sistema de coordenação das concepções e dos comportamentos humanos. Ela não é uma teologia, pois não usa como princípio regulador máximo nenhuma entidade sobrenatural (os deuses); apesar disso, a Religião da Humanidade tem um símbolo maior, que representa os grandes valores humanos, resumidos no amor: é a própria Humanidade, representada por uma moça de cerca de 30 anos tendo em seu colo uma criança... a Humanidade cuidando e preparando, com amor, as gerações futuras.

Eduardo de Sá - A Humanidade

Estátua da Humanidade, Igreja Positivista do Brasil.

A história da humanidade é a grande escola de que dispomos. Graças ao lento acúmulo de pequenas e grandes modificações ocorridas ao longo dos anos, dos séculos, dos milênios, o ser humano pode erguer-se das pequenas famílias que viviam nas cavernas, com medo de tudo, até a grande civilização mundial que busca, cada vez mais, a paz entre todos os povos, o respeito a todas as culturas e todos os grupos, o trabalho digno, a justiça social. Também é graças à historicidade humana que a concepção de uma religião positiva, humana, foi possível, após o desenvolvimento das religiões fetichistas, politeístas e monoteístas: assumindo a liderança do ser humano, a Religião da Humanidade respeita, glorifica e agradece o serviço prestado por essas religiões anteriores. Por fim, também é graças à  historicidade humana que foi possível conhecermos o mundo que nos cerca e a realidade de que fazemos parte – cósmica, social e individual. A própria Religião da Humanidade é um fruto da historicidade do ser humano.

A Religião da Humanidade valoriza profundamente a subjetividade, isto é, os sentimentos, as crenças íntimas. Mas essa subjetividade também tem que ser regulada: o mundo existe objetivamente, com as suas regularidades que não dependem das nossas crenças nem dos nossos sentimentos. Entender que a mais rica subjetividade não pode negar a objetividade das leis naturais também é fonte de felicidade.

O reconhecimento de que a realidade tem seus princípios próprios, que o próprio ser humano tem um funcionamento específico, leva-nos a mais uma das características da Religião da Humanidade, o seu relativismo. O relativismo positivo não significa que “qualquer coisa vale”; ele significa que o ser humano não pode explicar toda a realidade a partir de um único princípio, de um único conceito, que explicaria tudo de uma única vez e sem fosse necessário referir-se a mais nada. Assim, no que Comte chamava de "síntese subjetiva", a Religião da Humanidade abandona e rejeita as concepções absolutas.

A Religião da Humanidade foi criada em 1848 por Augusto Comte sob a influência de sua esposa subjetiva, a sofrida Clotilde de Vaux (1815-1846). Após uma vida de dificuldades e sacrifícios, Augusto Comte apaixonou-se pela jovem Clotilde, cuja vida também se caracterizava por sacrifícios e dificuldades imensos; o apoio de Clotilde às reflexões de Comte permitiram a ele que entendesse profundamente o quanto o amor é poderoso... o amor de Comte por Clotilde permitiu ao filósofo perceber que o verdadeiro fundamento do ser humano, da moralidade real, é mesmo o amor, que é uma outra forma de denominar o altruísmo.

Busto de Clotilde, de Décio Villares.

Retrato de Clotilde, de Etex.

Todas essas concepções belas e reais foram condensadas na profissão de fé de um dos mais ilustres positivistas e mais ilustres cidadãos brasileiros, o Marechal Rondon:

 
Marechal Rondon

Eu Creio:

Que o homem e o mundo são governados por leis naturais.

Que a Ciência integrou o homem ao Universo, alargando a unidade constituída pela mulher, criando, assim, modesta e sublime: simpatia para com todos os seres de quem, como Poverello, se sente irmão.

Que a Ciência, estabelecendo a inateidade do amor, como a do egoísmo, deu ao homem a posse de si mesmo. E os meios de se transformar e de se aperfeiçoar.

Que a Ciência, a Arte e a Indústria hão de transformar a Terra em Paraíso, para todos os homens, sem distinção de raças, crenças,: nações – banido os espectros da guerra, da miséria, da moléstia.

Que ao lado das forças egoístas – a serem reduzidas a meios de conservar o indivíduo e a espécie – existem no coração do homem: tesouros de amor que a vida em sociedade sublimará cada vez mais.

Nas leis da Sociologia, fundada por Augusto Comte, e por que a missão dos intelectuais é, sobretudo, o preparo das massas humanas: desfavorecidas, para que se elevem, para que se possam incorporar à Sociedade.

Que, sendo, incompatíveis às vezes os interesses da Ordem com os do Progresso, cumpre tudo ser resolvido à luz do Amor.

Que a ordem material deve ser mantida, sobretudo, por causa das mulheres, a melhor parte de todas as pátrias e das crianças, as pátrias do futuro.

Que no estado de ansiedade atual, a solução é deixando o pensamento livre como a respiração, promover a Liga Religiosa,: convergindo todos para o Amor, o Bem Comum, postas de lado as divergências que ficarão em cada um como questões de foro íntimo, sem perturbar a esplêndida unidade – que é a verdadeira felicidade.

23 janeiro 2013

Objetividade e subjetividade, análise e síntese, absolutismo e relativismo


A despeito de ser extremamente denso e exigir a compreensão preliminar de toda a filosofia da história, da ciência e da religião de Comte, o trecho abaixo é notável e esclarecedor, com sua avaliação das relações entre as sínteses absoluta e relativa – a primeira característica da teologia e da metafísica, a segunda, do Positivismo –, assim como das relações entre a subjetividade relativa (de caráter sintético) e a objetividade científica (de caráter analítico).
Augusto Comte indica que a teologia e a metafísica, ambas absolutas e buscando as causas, tiveram sua importância histórica, mas suas sínteses eram subjetivas, embora afirmassem-se objetivas. A passagem para a síntese relativa implica o abandono da pesquisa das causas e a busca das leis naturais; ao mesmo tempo, deve-se abandonar qualquer esperança de síntese objetiva, assumindo-se que a síntese é necessariamente subjetiva.
Com isso, a relação entre subjetividade e objetividade – e, daí, entre síntese e análise – muda. O desenvolvimento da objetividade científica foi necessário para mostrar o quanto a busca do absoluto é infrutífera; mas essa própria objetividade – que é sempre analítica – deve ser sempre subordinada à subjetividade relativa, de caráter sintético: essa subordinação consiste no fornecimento dos materiais intelectuais a serem coordenados pela síntese relativa.

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“Mieux on médite sur la marche primitive de notre intelligence, plus on reconnaît qu'elle n'exigeait d'autre rectification radicale que de substituer l'étude des lois à la recherche des causes. Son vice fondamental, d'ailleurs inévitable et même indispensable, ne consistait point dans son caractère subjectif, mais dans sa nature absolue. La longue coexistence de ces deux attributs n'a point empêché la subjectivité de manifester ses hautes propriétés, intellectuelles et surtout morales. Toute synthèse doit être subjective, puisque l'objectivité reste toujours analytique. Mais la prépondérance de la subjectivité est encore plus indispensable à la subordination fondamentale de l'esprit envers le cœur. Cette double nécessité, qui jusqu'ici prévalut sans être aperçue, a été confusément sentie par les principaux métaphysiciens modernes, depuis l'avortement décisif des nombreuses tentatives de systématisation objective. Ainsi poussés vers l'unité subjective, ils ne l'ont manquée que pour l'avoir restreinte à l'homme individuel, au lieu de la fonder sur l'humanité.
La subjectivité initiale n'avait donc besoin que de devenir relative; mais cette transformation radicale a exigé tout le préambule objective accompli graduellement depuis Thalès jusqu'à Bichat. Car il fallait pour cela faire universellement prévaloir l'étude des lois naturelles, qui ne pouvait commencer qu'envers les moindres phénomènes, d'où elle s'est ensuite étendue lentement aux plus éminents. L'achèvement de cette immense préparation conduit maintenant à fonder la vraie subjectivité, en substituant la sociologie à la théologie. Ainsi rendue relative, la prépondérance du véritable point de vue humain devient beaucoup plus directe, et même plus complète que lorsqu'elle présidait implicitement au régime absolu. Cette transformation définitive est encore plus salutaire au cœur qu'à l'esprit, d'après l'harmonie durable qu'elle institue entre eux. L'objectivité, qui ne put rien systématiser, prend enfin son office caractéristique, de fournir partout les matériaux des constructions réservées à la subjectivité” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 581-582).

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Tradução para o português:

"Mais se medita sobre a marcha primitiva de nossa inteligência, mais se reconhece que ela não exigiria outra retificação radical senão a de substituir pelo estudo das leis a pesquisa das causas. Seu vício fundamental, aliás inevitável e mesmo indispensável, não consistiu de maneira nenhuma em seu caráter subjetivo, mas em sua natureza absoluta. A longa coexistência desses dois atributos não impediu de modo nenhum a subjetividade de manifestar suas altas propriedades, intelectuais e sobretudo morais. Toda síntese deve ser subjetiva, pois a objetividade permanece sempre analítica. Mas a preponderância da subjetividade é ainda mais indispensável à subordinação fundamental do espírito ao coração. Essa dupla necessidade, que até aqui prevaleceu sem ser percebida, foi confusamente sentida pelos principais metafísicos modernos, depois do abortamento decisivo de numerosas tentativas de sistematização objetiva. Assim impelidos em direção à unidade subjetiva, eles não falharam senão em restringi-la ao homem individual, em vez de fundá-la sobre a Humanidade.

A subjetividade inicial, então, não tinha necessidade senão de tornar-se relativa; mas essa transformação radical exigiu todo o preâmbulo objetivo realizado gradualmente após Tales [de Mileto] até [Xavier] Bichat. Afinal, era necessário para isso fazer prevalecer universalmente o estudo das leis naturais, que não poderia começar senão a respeito dos menores fenômenos, de que ela lentamente se estendeu em seguida aos mais eminentes. A conclusão dessa imensa preparação conduz agora a fundar a verdadeira subjetividade, ao substituir pela Sociologia a teologia. Assim tornada relativa, a preponderância do verdadeiro ponto vista humano torna-se bastante mais direto e mesmo mais completo que quando ele presidia implicitamente o regime absoluto. Essa transformação definitiva é ainda mais salutar ao coração que ao espírito, segundo a harmonia durável que ela institui entre eles. A objetividade, não pode nada sistematizar, assume afinal seu ofício característico, de fornecer por toda parte os materiais das construções reservadas à subjetividade" (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 581-582).