Espontaneidade e instintos dos animais, dignidade humana e animal
O trecho abaixo é belíssimo: essa é a melhor maneira de descrevê-lo. Escrito por Augusto Comte no capítulo 3 e final do v. 1 do Sistema de política positiva, de 1851, ele apresenta com clareza o estilo de Augusto Comte, que extrai múltiplas reflexões, inter-relacionadas, a partir de uma discussão inicial, o que ao mesmo tempo evidencia seu aspecto sintético, sua assombrosa cultura científica, histórica, filosófica, moral e artística e a aplicação simultânea de critérios morais, intelectuais e práticos em todas as suas apreciações.
O trecho
abaixo, em particular, aborda as caraterísticas próprias aos animais e que, por
extensão, são compartilhadas pelo ser humano; além disso, também se afirma que
essas características realizam-se naturalmente, independentemente de estímulos
exteriores. Assim, por um lado tem-se os instintos;
por outro lado, tem-se a espontaneidade
desses instintos. A caracterização do funcionamento dos instintos não se
encontra no trecho abaixo (em particular contra uma interpretação muito comum –
aliás, comum mesmo hoje em dia – segundo a qual a mera existência dos instintos
implica comportamentos específicos e atos concretos[1]);
a afirmação dos instintos no trecho abaixo é importante para afirmar, por um
lado, que eles são compartilhados, em diferentes graus, com os seres humanos e,
por outro lado, que eles são espontâneos. A espontaneidade dos instintos, por
sua vez, é afirmada para combater a concepção mecanicista dos animais (que,
mais uma vez, com freqüência e mesmo nos dias atuais, é estendida para os seres
humanos), segundo a qual o comportamento animal resume-se a reações mecânicas,
robóticas, a impulsos ambientais.
A extensão
dos instintos aos seres humanos e a afirmação da espontaneidade dos instintos
(contra a hipótese mecanicista) têm como conseqüência o entendimento de que o
ser humano existe em linha de continuidade com o conjunto dos seres vivos e, de
maneira mais ampla, com a realidade cósmica; em outras palavras, o ser humano não
existe sozinho, isolado e alienado do mundo, em um mundo que teria sido criado
apenas para ele e para seu usufruto absoluto. Uma outra conseqüência das reflexões
anteriores é que a afirmação da linha de continuidade entre o ser humano e os
animais valoriza os últimos, que são “nossos companheiros de misérias e de
trabalhos”.
Descartes não
era contrário aos animais nem aos seres humanos, não há dúvida; entretanto,
suas concepções mecanicistas acabaram tendo o efeito de desenvolver concepções,
sentimentos e práticas contrárias ao respeito e à dignidade de seres humanos e
animais. Aliás, antes de Descartes, fundamentando sua concepção e tendo ecos e
atualizações bem posteriores, a hipótese mecanicista baseia-se na famosa separação
entre “corpo e alma”, de origem teológica; é tal separação que justifica os “privilégios
absolutos da nossa espécie estimulados pelo orgulho e pela ignorância”. De
acordo com essa concepção, apenas o ser humano teria alma (ou inteligência, ou
sentimentos, ou consciência etc.); é isso que tornaria o ser humano uma espécie
única – e, mais importante nessa concepção, uma espécie privilegiada. Os privilégios humanos incluiriam, então, uma existência
à parte do mundo, sem vínculos outros além da mera vida no mundo e do usufruto
dos seus recursos. Essa mentalidade, de origem teológica e mantida sob as
dissoluções metafísicas, vige ainda hoje; é ela que fundamenta o negacionismo
climático de evangélicos estadunidenses, assim como ela integra a filosofia
mais ampla dos pensadores da metafísica alemã neokantiana (como W. Dilthey e Max
Weber); a hipótese mecanicista foi retomada no século XX pelo zoólogo (ou “etólogo”)
B. Skinner e em seguida estendida por ele aos seres humanos. Por outro
lado, no que se refere aos atributos humanos que são compartilhados com os animais, a
crítica de Augusto Comte e o elogio aos animais foram retomados nos últimos anos
pelo “etólogo” e filósofo neerlandês Frans de Waal[2] (embora
esse autor, como sói ocorrer nos ambientes universitários, lamentavelmente não
tenha a menor consciência disso).
* * *
Todas as principais características que o orgulho e a ignorância erigem em privilégios absolutos de nossa espécie apresentam-se também então, em um estado mais ou menos rudimentar, entre a maior parte dos animais superiores. Ali mesmo onde eles são menos desenvolvidos, sua apreciação normal, ainda que com freqüência difícil, torna-se indispensável para sistematizar a verdadeira concepção da animalidade. Sem esses diversos atributos interiores, cujo conjunto constitui a vaga noção de instinto, nós não podemos compreender nenhuma existência animal. Pois seria então necessário supor sempre direta a relação entre as impressões exteriores e as reações musculares. Ora, essa hipótese destruiria essencialmente a espontaneidade animal, que consiste sobretudo em ser determinado por motivos interiores. Isso seria, no fundo, restabelecer o automatismo cartesiano, que, excluído pelos fatos, vicia ainda, sob outras formas, as altas teorias zoológicas, falto de ter sido sistematicamente discutido. Apenas o regime enciclopédico emanado da nova religião [a Religião da Humanidade, ou seja, o Positivismo] poderá retificar definitivamente essas graves aberrações, que atrapalham ao mesmo tempo nossos sentimentos e nossos pensamentos. Na ordem intelectual, elas rompem em sua origem a cadeia fundamental que une a humanidade ao conjunto das existências reais. Mas sua influência moral é ainda mais prejudicial, ao justificar o desprezo, a ingratidão e mesmo a crueldade a respeito dos companheiros de nossas misérias e também de nossos trabalhos. A verdadeira religião deverá então reparar cuidadosamente esses funestos resultados do regime teológico-metafísico após a queda do politeísmo. Mais real e mais completo que o fetichismo, o Positivismo saberá ainda melhor que ele afirmar a dignidade animal.
(Augusto
Comte, Sistema de política positiva, Paris,
L. Mathiaz, 1851; v. 1, cap. 3 (“Introdução direta, naturalmente sintética, ou
Biologia”), p. 602.)
[1] Reflexões nesse sentido podem
ser lidas no Sistema de filosofia
positiva, v. 3, lição 45; algumas delas foram traduzidas por Teixeira
Mendes em seu belíssimo volume O ano sem par (Rio
de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 5-6, 9).
Esses trechos, por sua vez, foram publicados em nosso blogue, na postagem
intitulada “Instintos e genética não são fatalidades”, disponível aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2024/05/instintos-e-genetica-nao-sao-fatalidades.html.
[2] Um livro de Waal que apresenta de maneira clara reflexões nesse sentido é Somos inteligentes o bastante para saber quão inteligentes são os animais? (Rio de Janeiro, Zahar, 2022).