Mostrando postagens com marcador cultura política. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador cultura política. Mostrar todas as postagens

10 dezembro 2024

Monitor Mercantil: "Cultura política, STF e laicidade"

No dia 9.12.2024 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou um artigo de nossa autoria intitulado "Cultura política, STF e laicidade".

O original da publicação está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/cultura-politica-stf-e-laicidade/.

O texto está reproduzido abaixo.

*   *   *

Cultura política, STF e laicidade

É quase senso comum considerar que sem o apoio generalizado e difuso da sociedade, nenhum regime político pode manter-se. Isso se refere tanto ao apoio consciente ao regime quanto aos pequenos hábitos e comportamentos do dia a dia, incluindo aí as formas como agimos e as maneiras que rejeitamos para agir. Assim, todo regime apresenta um aspecto cultural; dito de outra maneira, toda cultura tem um aspecto político que se corporifica no regime político, que cria e que sustenta as instituições.

Vale notar que as instituições importam, e muito, mas seu funcionamento adequado depende do apoio social que o conjunto da sociedade fornece, da legitimidade que as instituições têm para agir da maneira adequada e, não menos importante, das convicções íntimas que os agentes públicos e os cidadãos têm para fazer valer as funções das instituições. Em outras palavras, sem a cultura política sustentando as instituições, estas não passam de cascas vazias e letras mortas.

A relevância dessas afirmações, aparentemente tão simples, pôde ser comprovada ao longo da última década, a partir de diferentes exemplos. O primeiro exemplo é o mais fácil de citar; trata-se da série crise de legitimidade com que as instituições políticas representativas têm-se defrontado faz tempo. Não se trata apenas de um sentimento difuso e difundido de que “os políticos não nos representam”. Isso por si só já seria bastante grave, mas em si gera mais apatia e cinismo que qualquer outra coisa: ora, a crise de legitimidade que temos visto desde pelo menos 2013 tem resultado em um ativo comportamento autoritário. Em vez de as instituições republicanas (nas equívocas formas “democrático-liberais”) perderem apoio por si sós, o que se tem visto é que essa perda tem sido trocada por um apoio a práticas e a propostas institucionais autoritárias, violentas, iliberais. O apelo democrático é o mesmo: é sempre a soberania popular que justifica essas propostas; como, supostamente, a vontade popular nunca erra (afinal, vox populi vox dei), muitos consideram que o misticismo saudosista do regime militar seria aceitável.

Essas concepções antirrepublicanas têm sido defendidas por muitos grupos sociais e políticos que tentam implementá-las por meio de duas estratégias complementares: (1) desgastando as instituições vigentes, corroendo sua autoridade e/ou mantendo-as inertes (ou melhor, omissas); (2) tentando a mudança total de uma única vez. A primeira estratégia come pelas beiradas, a segunda consiste em um ataque direto ao conjunto das instituições.

Ora, a partir de um sentimento social difuso e difundido, não necessariamente espontâneo, entre 2019 e 2022 o que se viu foi o seguinte: o poder Executivo buscou e apoiou o golpismo militarista, o poder Legislativo foi inicialmente um anteparo a isso (entre 2019 e 2020, com Rodrigo Maia à frente da Câmara dos Deputados) e depois foi um esteio dessas ambições (em 2021 e 2022, com Artur Lira como Presidente da Câmara) e a Procuradoria-Geral da República (PGR) exibiu uma omissão cúmplice: o grande anteparo dessa longa ofensiva foi o Supremo Tribunal Federal (STF), na figura de Alexandre de Moraes secundado pelos outros dez ministros.

Vimos, então, a cultura política em ação, seja no seu aspecto difuso, social, seja no seu aspecto concreto, institucional e individual; um intenso ativismo social apoiou e foi apoiado por um ativismo institucional contra o conjunto das instituições, parte das quais apresentou uma omissão conivente contra esse mesmo conjunto; uma instituição central em particular opôs-se a isso e evitou o triunfo da maré antirrepublicana.

Esse resultado é notável e torna-se ainda mais impressionante quando se o compara com o outro exemplo que queremos comentar. Os atores envolvidos são os mesmos (sociedade civil, os três poderes, PGR); a fundamentação filosófico-moral é a mesma (valores sociais compartilhados, caráter “democrático” das instituições), a tramitação é a mesma (propostas dos poderes Executivo e/ou Legislativo avaliadas pelo Judiciário); os casos que nos interessam agora também se referem a aspectos centrais e fundamentais da República: mas o resultado é inverso ao anterior. As questões são relativas à laicidade do Estado.

Desde 1890 o Estado brasileiro é laico. Isso deveria significar que o Estado não tem doutrina oficial nem que as doutrinas/igrejas não se valem do Estado para imporem-se sobre os cidadãos. O Estado mais ou menos não tem doutrina; mas as doutrinas/igrejas usam, sim, o Estado para imporem-se e querem, cada vez mais, que o Estado apóie ativamente esse uso. Nesse quadro, as instituições deveriam apoiar o que é uma disposição política e constitucional desde o início da República: mas o poder Legislativo tenta criar brechas o tempo todo; o Executivo é omisso ou partícipe ativo dessas iniciativas; o Ministério Público é igualmente omisso. Restaria o Judiciário, mas decisões tomadas nos últimos anos indicam que o STF também apóia o desprezo à laicidade. E, pior, esse desprezo manifesta-se pelo mesmo Ministro – infelizmente, Alexandre de Moraes.

Em 2017, Alexandre de Moraes pôs-se contra Roberto Barroso, foi favorável a que as escolas públicas tenham ensino religioso confessional e foi o autor do voto vencedor nessa questão. Para Moraes, é lícito ao Estado pagar sacerdotes para que eles imponham sobre os estudantes suas doutrinas, em caráter oficial (com a fantasiosa possibilidade de opção). Agora em 2024, o mesmo Moraes julgou que os crucifixos em órgãos públicos não ofendem a laicidade do Estado, ou seja, símbolos de uma doutrina específica podem ser exibidos em caráter oficial (e obrigatório) para todos os cidadãos, mesmo acima dos símbolos da República!

O argumento empregado nos dois casos pelo Ministro Moraes é o mesmo empregado pelo ex-Presidente que tentou dar um golpe militar durante quatro anos: trata-se de que, “se o Estado é laico, a população é cristã”. A laicidade tem que se dobrar a uma crença compartilhada e pode ser negada. Não se pode argumentar ignorância ou má fé do Ministro Moraes, nem mesmo tibieza ou medo: ele não é o tipo de pessoa que se dobra a pressões externas por medo. São convicções íntimas, compartilhadas pela maioria do STF em 2017 e novamente em 2024.

O problema, então, é de cultura política – e de filosofia política. Trata-se de considerar que as opiniões são secundárias e que a força, a violência do Estado é só o que importa. Um Estado autoritário é um grave problema e deve ser evitado, sem dúvida: essa é a opinião do STF e de metade da população brasileira. Mas um Estado que impõe doutrinas e símbolos – na verdade, de maneira ainda mais dura e agressiva que em um Estado autoritário –, isso não é problema, pois “a população é cristã” e é lícito que o Estado pague servidores públicos para pregação religiosa.

São opções filosóficas e morais incoerentes, na verdade incompatíveis. Essas opções revelam e conduzem a uma cultura política que é mais que incompatível: ela é suicida.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.

14 outubro 2014

Sobre a política brasileira em 2014

Eu lembro-me de que, em 2002, eu comentava com alguns amigos e colegas do mestrado que Lula e o PT tinham que passar pelo governo para deixarem de ser principistas e quiméricos; na ocasião, virtualmente todos os meus colegas eram petistas.

Importa reconhecer que a mudança operada então, do PSDB para o PT na Presidência da República, foi necessária; o PDSB já não conseguiria satisfazer as ambições nacionais; mas, mesmo assim, o PT não correspondia exatamente a esses anseios, haja vista que, ao contrário do que aconteceu com FHC nas suas duas eleições, nem Lula nem o PT jamais ganharam a Presidência no primeiro turno.

Comparando o apoio maciço e idealista dos meus colegas, amigos, conhecidos e intelectuais em geral em favor do PT, de 2002, com a profunda desilusão, com o cinismo e até com a profunda rejeição que esse partido sofre hoje, não deixa de ser chocante o resultado. Se em 2002 eu esperava um choque de realidade para o PT, hoje eu observo que esse choque foi bem mais intenso do que eu esperava.

Absolutamente TODAS as práticas que o PT condenava, por vezes de maneira histérica e cansativa, foram aplicadas. Para piorar, quando essas práticas eram, e são, praticadas pelos outros partidos, ou melhor, pelos partidos com quem o PT disputa cargos, essas práticas são criticadas como sendo "fisiológicas", "privatistas", "antidemocráticas", "preconceituosas" etc.; quando é o PT e/ou seus partidos de apoio que as praticam, são "necessidades", é "sabedoria política", é "habilidade política".

Longe de mim justificar o injustificável e afirmar que o PT está certo e que os outros estão errados, ou vice-versa, isto é, que os outros estão certos e o PT, errado: todos estão errados - e esse é um dos maiores descalabros da política brasileira em 2014. 

O "choque de realidade" do PT e seus efeitos sobre a (moral) política nacional possivelmente é um dos grandes motivos das manifestações de 2013, juntamente com uma versão brasileira da "revolução silenciosa" (proposta em 1972 por R. Inglehart).

André Singer definiu o principismo petista como o "espírito de Sion" e o pragmatismo petista como o "espírito de Anhembi". Indiscutivelmente foi bom para o país que o PT abandonasse o "espírito de Sion", isto é, todas as quimeras socialistas que ele acalentava em virtude da união dos intelectuais e dos católicos esquerdistas (ditos, ou autonomeados, "progressistas"). Mas ao jogar a água do banho, levou com ela o bebê: um certo espírito republicano nas práticas políticas foi embora também. Os programas sociais aumentados desde 2004 (excluo o histrionismo do "Fome Zero") são a parte aproveitável desse "espírito de Sion", embora esses mesmos programas sejam programaticamente incoerentes, na medida em que são focalistas e particularistas e não universalistas, ou seja, seguem o "neoliberalismo" e ampliam as políticas criadas desde os governos de FHC e que o PT então chamava de "esmolas".

(A assinatura da criminosa Concordata com o Vaticano, em 2008, e o apoio à Igreja Universal NÃO são traições ao "espírito de Sion": integram o rol de práticas e idéias do PT desde sempre.)

Por fim, deixando de lado os puros militantes, sejam eles teóricos, sejam eles práticos, que constituem parcela de apoio cada vez menor do PT, espanta-me que haja intelectuais que simplesmente negam os deslizes, os erros, as malversações, as incoerências e até os crimes do PT. Uma coisa é haver intelectuais que reconhecem tudo isso mas que, em nome da continuidade dos programas (ou melhor, de alguns programas) defendem o PT e a reeleição de Dilma Rousseff; outra coisa são os "intelectuais" que fazem malabarismos teóricos para justificar o injustificável, lançando mão dos mais variados sofismas políticos ou lógicos. 

Nesse sentido, esses intelectuais especificamente petistas correspondem à negação prática do "poder Espiritual" proposto por Augusto Comte. Deixando de lado a terminologia estranha para os dias de hoje, Comte defendia que o "poder Espiritual" deveria ser autônomo em relação ao governo e ao Estado, a fim de manter sua capacidade crítica; não "crítica" no sentido de aporrinhar e de negar o que o partido rival faz, mas crítica no sentido de ser o órgão, o intérprete, o guia da opinião pública, ou seja, o conjunto de indivíduos que, submetendo-se à autoridade material do Estado, estabeleciam as condições de legitimidade das políticas públicas, do governo, do Estado, do regime político. Em vez de serem membros da opinião pública, esses intelectuais fazem questão de serem "intelectuais orgânicos", ou seja, profissionais da justificação teórica das atitudes práticas do partido político a que estão ligados.

Por que a referência específica aos intelectuais petistas? Porque, como observei no início desta postagem, em 2002 a quase totalidade dos intelectuais que eu conhecia eram petistas. Os danos que esse partido fez ao ambiente intelectual brasileiro são enormes. Mas, bem vistas as coisas, o PT não fez o que fez apenas devido à "lógica política": fez o que fez porque os indivíduos que o comandam assim o desejaram e porque, em um nível mais profundo, as idéias que os orientam conduzem a isso: não desenvolvimento nacional, integração social e humanismo, mas lutas de classes, "maquiavelismo" político e cinismo teológico-metafísico.

22 maio 2010

Propaganda antecipada, cultura política e república

O texto abaixo foi publicado no jornal curitibano Gazeta do Povo de 20 de maio de 2010; pode ser consultado diretamente por aqui:

http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1004919&tit=Propaganda-antecipada-cultura-politica-e-republica

* * *

Três anos atrás, víamos que nos Estados Unidos a campanha eleitoral que escolheria o sucessor de George W. Bush iniciara-se mais de um ano e meio antes das eleições: já no Brasil a campanha só pode começar seis meses antes. Por que a diferença?

Nos dois países os valores em jogo são a consideração de que todos os cidadãos podem, em princípio, concorrer a todos os cargos em igualdade de condições e em ambientes livres (sem impedimentos socioinstitucionais). O que muda em cada caso é que nos Estados Unidos valoriza-se mais a liberdade de associar-se e difundir as ideias dos candidatos; no Brasil valoriza-se a igualdade de condições da disputa, procurando-se evitar que o poder econômico de alguns ponha em desvantagem os economicamente menos privilegiados, mas cuja participação, pelo simples fato de serem cidadãos, é considerada tão importante quanto a dos demais.

Não vem ao caso tratar do acerto da escolha brasileira: aceitemo-la e consideremos o que se pratica no país. O que se pratica? A afir­­ma­­ção despudorada, ainda que cautelosa, da força do poder políti­­co e não do poder econômico: são os grupos no poder que têm maior possibilidade de propaganda antecipada, transformando a administração pública em palanques eleitorais em nome do “povo” (Mas não consideramos aqui que os programas sociais em voga são “eleitoreiros”: afinal, o Brasil apresenta problemas sociais muito sérios, que exigem atitudes que se dirijam diretamente aos grupos excluídos; é natural que os políticos que satisfaçam essas necessidades terão apoio popular).

O que interessa aqui é o seguinte: o desrespeito à legislação que proíbe a propaganda antecipada afeta de que maneira a cultura política brasileira? A resposta direta é: esse desrespeito fragiliza a nossa “república”; essa fragilização não é somente uma consequência indireta, mas também é um resultado intencional de vários políticos.

Enquanto a democracia pode ser definida grosso modo como a afirmação da “soberania popular”, a república pode ser entendida como o conjunto de instituições políticas que organiza os cidadãos em sua vida coletiva. Essas instituições têm de ser legítimas, isto é, consideradas aceitáveis e representativas da vontade do conjunto dos cidadãos; além disso, elas têm de ser minimamente eficazes, no sentido de que consigam identificar as demandas sociais e dar soluções para elas.

Ora, o que se vê é que o desdém pelas instituições políticas brasileiras é cada vez mais a regra, mesmo apesar do afirmado apoio de vários grupos e partidos políticos às instituições republicanas. Na verdade, pode-se considerar com seriedade que esse apoio é a compensação retórica para o desrespeito prático. Daí se desenvolve um sistema de hipocrisia que a população reconhece com facilidade: não são casuais o desânimo e a apatia políticos manifestados atualmente.

O problema vai além, pois as outras instituições responsáveis pela saúde política da república, ou são omissas ou, quando fiscalizam, são mais e mais achincalhadas. Os exemplos mais dramáticos são a imprensa, o Tribunal Superior Eleitoral e o Ministério Público: de maneira hipócrita e demagógica, todas as investigações que tais órgãos fizeram nos últimos meses foram desqualificadas, ridicularizadas e afirmadas como “perseguição partidária”. O mais clamoroso exemplo, para o que nos interessa, é o desdém do presidente Lula às (raras) multas que o TSE aplicou-lhe pelo desavergonhado uso eleitoral da propaganda institucional.

Repitamos: esse desrespeito sistemático tem efeitos na cultura política nacional, no sentido de estimular a apatia. Para evitar isso, a vida política tem de ser entendida como mais ampla que a atividade partidária, incluindo principalmente o controle do público sobre o Estado. Assim, o apoio popular às investigações do Ministério Público e à cobrança de que o TSE multe com rigor as propagandas eleitorais antecipadas é uma forma republicana e efetiva de participação política.