Nos últimos meses, nas chamadas “redes sociais”, várias pessoas
têm afirmado que nas obras de Karl Marx não há nenhuma afirmação que impeça
socialistas, comunistas ou “marxistas” de serem ricos – ou, por outra, que não
é incoerente ou hipócrita da parte dos marxistas, socialistas ou comunistas
criticarem a riqueza concentrada e serem eles mesmos ricos: talvez essa
inexistência de condenação seja verdade. O problema é que tal argumento é uma
falácia, por definição destinada (1) a enganar (2) os incautos: o conjunto da
obra de Marx pretende demonstrar que a concentração da riqueza – seja o
processo de geração da riqueza, seja o
processo de concentração da riqueza,
seja a simples posse da riqueza
concentrada – é imoral de qualquer maneira.
Em O capital e em
outras obras, Marx argumenta que os ricos são ricos
porque sistemicamente exploram os não-ricos. No capitalismo isso quer dizer que
a burguesia explora o proletariado; tal exploração é “sistêmica” e objetiva: o funcionamento
do sistema conduz os burgueses a explorar e os proletários a serem explorados,
independentemente da vontade individual. Não importa a vontade, a consciência,
os valores, a intenção de quem explora: a exploração ocorrerá quer os
capitalistas queiram, quer não queiram. Em outras palavras, o que o marxismo
pretende demonstrar é que ser rico é explorar o proletariado – sempre.
Além de ser o produto da exploração, a riqueza também é o índice por definição da desigualdade social; a desigualdade, por sua vez, é ruim em si mesma. Por esse motivo, na sociedade socialista – nunca definida por Marx –, as desigualdades devem desaparecer, juntamente com a luta de classes que a produz, que a perpetua e que a justifica. A desaparição das desigualdades, das classes e da luta de classes fará desaparecer, também, a própria idéia de “riqueza”.
Em suas obras, Marx condena a exploração e a desigualdade: esse valor moral específico – condenação da exploração e da desigualdade – é um valor “aceitável”. Mas outros valores morais a respeito dos quais Marx não faz nenhuma ressalva são a hipocrisia e o cinismo; na verdade, o que se percebe nos escritos marxianos é a idéia de que a condenação e a rejeição da hipocrisia e o cinismo são valores morais burgueses ou até pré-capitalistas.
Enquanto Marx pretende fazer uma crítica objetiva (que, como vimos, afirma que no capitalismo ocorre a eterna e necessária exploração do proletariado pela burguesia), as críticas "subjetivas" - que se baseiam em e que consistem na aplicação de valores morais a situações sociais - são sempre hipócritas, cínicas, ingênuas. Aliás, seguindo nessa mesma linha, para Marx, bem como para seus inúmeros seguidores, a crítica ao cinismo e à hipocrisia é “moralismo” e é ela mesma cínica e hipócrita.
Para Marx, a rejeição moral de idéias ou situações, de modo
geral, é uma característica “burguesa” e, como tal, é desprezível e um
instrumento da luta de classes – logo, é um instrumento da dominação burguesa
de classe e da exploração do proletariado realizada pela burguesia. Em suma: rejeitar
a hipocrisia e o cinismo (ou a corrupção) – em todo caso, rejeitar a falsidade –
é um valor burguês que serve apenas para manter a exploração do proletariado e
a desigualdade social.
O resultado disso tudo é que: (1) rigorosamente, pode ser que Marx não fosse contrário a socialistas serem “ricos”, mas (2) a riqueza é sistemicamente o resultado da exploração classista sofrida pelo proletariado. Ao mesmo tempo, contraditoriamente, (3) não há problema em socialistas serem ricos, pois (4) a rejeição da hipocrisia é um valor (ou preconceito) burguês.
As soluções habituais encontradas pelos marxistas (teóricos e/ou práticos) para tal situação profundamente “contraditória” – isto é, para essa incoerência – são as seguintes: (1) afirmar que a riqueza mantida pelo Estado (“propriedade coletiva dos bens de produção”) é progressista e libertadora, ao contrário da riqueza individual, vista como reacionária ou conservadora; (2) denunciar ou desprezar a denúncia moral como sendo burguesa, logo, como sendo ela mesma hipócrita e instrumento da luta de classes; (3) silenciar a respeito dessa incoerência. É claro que essas estratégias não são mutuamente excludentes.
É dessa forma que é possível aos marxistas, socialistas e/ou comunistas denunciarem a riqueza mas eles mesmos serem ricos.