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18 abril 2015

Ateísmo como estado provisório do ser humano

O trecho abaixo, embora seja sumário e apenas comece uma explanação mais demorada, estabelece com clareza dois aspectos centrais do Positivismo e, portanto, da organização humana (social e individual):

(1) o Positivismo não é ateísmo;

(2) a permanência do ateísmo atrapalha, quando não impede, a reorganização mental e social em bases puramente humanas. 

Em outras palavras, a emancipação em relação à teologia é condição necessária, mas é não é nem suficiente nem pode ser o estado permanente do ser humano.

L'entière emancipation théologique devant constituer aujourd'hui une indispensable préparation à l'état pleinement positif, cette condition préalable entraîne souvent des observateurs superficiels à confondre sincèrement ce régime final avec une situation purement négative, qui présentait, même dans le siècle dernier, un caractère vraimente progressif, mais qui désormais dégénère, chez ceux où elle devient vicieusement permanente, en obstacle essentiel à toute véritable organisation sociale et même mentale.


(Auguste Comte, "Discours préliminaire – première partie: esprit fondamental du Positivisme", inSystème de politique positive, v. 1, 1851, p. 46. É possível contextualizar esse trecho no conjunto do livro consultando-os aqui.)

02 dezembro 2014

Individualismo como emancipação incompleta da teologia

Individualismo como emancipação incompleta da teologia

Gustavo Biscaia de Lacerda

Um dos maiores problemas, para não dizer "erros", de quem se emancipa da teologia é, ao realizar essa emancipação, afirmar o individualismo, seja ele epistemológico, seja ele moral, seja ele sociológico. É fácil de entender essa passagem, pois o indivíduo tem que se afirmar pessoalmente, ou melhor, a pessoa tem que se afirmar claramente como indivíduo para superar, para deixar de lado as pressões sociais em favor da teologia e reconhecer que não faz sentido e que não importa a crença nos deuses para a condução da vida humana. É claro que, quanto mais secularizada uma sociedade e, o que às vezes é um pouco equivalente, quanto mais sociologicamente diversificada uma sociedade, menor a pressão exercida pela coletividade em favor da teologia e, portanto, mais facilmente ocorre essa emancipação.

Todavia, seja porque nessa passagem com freqüência é necessário afirmar-se uma individualidade, seja porque nessa afirmação também é necessário desvalorizar fortemente (quando não desprezar) o peso da coletividade, o resultado é que é bastante comum que a emancipação conduza ao individualismo, entendendo-se por essa expressão tanto a concepção segundo a qual é o indivíduo isoladamente tomado que "constrói" a realidade (consistindo, portanto, em uma forma de solipsismo), quanto entendendo por "individualismo" as idéias gêmeas de que o objetivo da vida é a realização dos próprios indivíduos (sendo, assim, um egoísmo) e que, como os agentes da vida social são os indivíduos, não existe a "sociedade". Reafirmando mais uma vez as idéias acima: é bastante claro que essas três formas de individualismo (solipsismo, egoísmo moral e individualismo metodológico) têm em comum a rejeição da idéia de sociedade[1].

Essas três conseqüências são problemáticas porque são erradas e falsas, isto é, porque consistem em concepções que não correspondem à realidade, e também porque são moralmente daninhas, seja porque não correspondem à realidade[2], seja porque impedem o desenvolvimento do altruísmo e estimulam diretamente o egoísmo. Além disso, como um resultado um tanto paradoxal mas não necessariamente imprevisto, embora tais formas de individualismo surjam como rejeição da teologia, o fato é que elas próprias aproximam-se bastante da teologia monoteísta, em particular dos cristianismos e, ainda mais, dos protestantismos[3].

Por que esses individualismos não correspondem à realidade? Porque, apesar do fato evidente de que as sociedades somente podem existir compostas por indivíduos, é apenas coletivamente e ao longo do tempo (ou seja, historicamente) que o conhecimento é produzido[4], que o altruísmo é passível de realização e que, portanto, é possível aos indivíduos terem satisfação pessoal. Nas três situações não se trata, portanto, do truísmo segundo o qual "ninguém pode viver sozinho": trata-se, sim, de que é por meio do esforço compartilhado e acumulado que se pode conhecer a realidade, por um lado, e, por outro lado, de que o "altruísmo" consiste em "viver para os outros" e que é somente na medida em que se vive para os outros que se pode obter uma satisfação plena e duradoura. Dessa forma, não se pode entender a sociedade como a simples agregação de indivíduos: a totalidade social é maior que a soma das partes individuais. Inversamente, recusar a característica social e histórica do ser humano é recusar o próprio ser humano.

O individualismo ateu, além disso, aproxima-se em sua concepção de mundo do individualismo protestante na medida em que reconhece apenas indivíduos e rejeita as mediações sociais: enquanto o individualismo ateu rejeita a sociedade (seja na solidariedade contemporânea, seja na continuidade histórica), o individualismo protestante rejeita a igreja, ao estabelecer uma comunicação direta, pessoal e intransferível entre o crente e a divindade; em ambos os casos a pessoa está sozinha no mundo e é a única responsável pela sua satisfação íntima. Aliás, não é por acaso que as "sociologias" derivadas de ambientes protestantes têm características individualistas, de que o maior exemplo é a obra de Max Weber, que concebia apenas interações individuais e recusava-se terminantemente a definir a "sociedade". Já as obras de Hobbes e Locke apresentam um aspecto misto, juntando a emancipação individualista da teologia com aspectos do protestantismo anglicano: essas duas características tornam os dois autores também individualistas, concebendo a sociedade como a união de indivíduos ou, no caso de Hobbes, rejeitando a própria idéia de sociedade com o indivíduo plenamente egoísta e racional.

Em suma: é por esses motivos todos que a emancipação relativamente à teologia não pode parar no individualismo; ou, considerando a questão de outro ângulo, é por todas essas razões que as várias formas de individualismo (epistemológico, moral e sociológico) correspondem à emancipação incompleta da teologia.





[1] Neste texto refiro-me em particular ao individualismo ateu, isto é, causado pelo ateísmo. Mas, como se verá, existem outras variedades de individualismo, ou melhor, outras fontes intelectuais e morais do individualismo, entre as quais as teologias. De qualquer maneira, como o filósofo francês Pierre Laffitte (discípulo de Augusto Comte) e o antropólogo também francês Louis Dumont argumentaram, a rejeição monástica da sociedade foi uma das fontes mais importantes e poderosas da produção do "individualismo", ocorrendo tanto no Ocidente quanto (por exemplo) na Índia.

[2] Nesse sentido, torna-se claro que a busca da verdade é em si mesmo um valor moral. Sem dúvida que o tempo todo o ser humano percebe que várias de suas concepções são erradas: o problema não está no erro sincero, mas na persistência no erro e também no erro voluntário e consciente. O erro sincero é honesto, o erro voluntário é mentiroso; além disso, as concepções que não correspondem à realidade dos fatos e, em particular, as concepções que não reconhecem e não valorizam a natureza humana (coletiva e individual) produzem miséria e infelicidade.

De qualquer forma, importa reconhecer que conceber dessa forma a relação entre o ser humano e a sociedade, de um lado, e a verdade e a busca da verdade, por outro lado, está fora dos hábitos mentais contemporâneos, do Zeitgeist das nossas sociedades ditas "pós-modernas", em que o irracionalismo e a "ironia" têm um peso tão grande; em outras palavras, buscar e valorizar a verdade é algo fora de moda. Evidentemente, como argumentava Galileu e argumentam todos os filósofos da ciência sérios, a verdade não é simplesmente uma questão de número, isto é, ela não é "democrática".

[3] À luz da lei dos três estados intelectuais, o surgimento do individualismo ateu aproximar-se do individualismo teológico não é um resultado necessariamente imprevisto, na medida em que tanto o individualismo quanto o ateísmo são concepções metafísicas – e, como argumentava Augusto Comte, embora a metafísica tenda à positividade, o fato é que ela consiste em uma forma degradada de teologia.

[4] Nesse sentido, a própria emancipação relativamente à teologia de qualquer indivíduo é sempre dependente das outras pessoas, ou seja, é dependente da sociedade e da história: por um lado, a teologia é uma etapa na constituição do conhecimento; por outro lado, a despeito da retórica – ultra-individualista, cumpre notar – que afirma a incomensurabilidade e a infinidade da imaginação individual, a possibilidade de alguém emancipar-se é dada também pelas condições sociais e históricas próprias a cada coletividade.


(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)
(Primeira versão deste texto: 2.12.2014; segunda versão: 4.12.2014.)

03 fevereiro 2013

Aumenta descrença em deus na Europa

Notícia publicada originalmente no Boletim IHU de 1.2.2013; disponível aqui.

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“Os ateus também podem desenvolver valores sagrados”

“Deus provavelmente não existe. Então pare de se preocupar e aproveite a vida”. Em 2008, a campanha publicitáriada Associação Humanista Ateia na Inglaterra teve grande impacto em toda a Europa.

O número de não crentes aumenta, assim como aqueles que duvidam da existência de Deus. Quantos são os ateus? Eles também podem ter valores absolutos e uma espiritualidade? As respostas de Philippe Portier, diretor de estudos na Escola Prática de Altos Estudos e diretor do Grupo Sociedades, Religiões, Laicidades.

A entrevista é de Henrik Lindell e está publicada no sítio da revista francesa La Vie, 31-01-2013. A tradução é doCepat.

Eis a entrevista.

Podemos afirmar que o número de ateus está aumentando?

Sim. De modo geral, o número dos sem religião aumenta, tanto na França como em outros lugares da Europa. É uma certeza. Por sem religião entendo pessoas que se declaram sem afiliação. No interior desse grupo, a parte daqueles que se dizem sem Deus também está aumentando. No total, assistimos, portanto, a um distanciamento com a crença em Deus.

Quanto são eles?

Os números variam em função de questões específicas. Na França, 28% a 30% da população se diz sem Deus. Entre os jovens, entre 18 e 30 anos, a fração sobe para 35%.

E o número de agnósticos também está aumentando?

Sim, mas melhor que falar de agnosticismo, um termo que remete à filosofia do Iluminismo e a uma postura de dúvida do religioso, prefiro os termos possibilismo ou probabilismo. Para essas pessoas, probabilistas, Deus talvez exista. E esta zona cinzenta se desenvolve. É, talvez, a população mais importante. Eles são em torno de 35-40% da população.

E os crentes?

Haverá 25% a 30% que estão certos de que Deus existe. Mas para esses crentes, Deus não é sempre o mesmo. Não obedece necessariamente às regras da religião instituída.

Os ateus sempre têm o mesmo tipo de descrença?

Não. Entre aqueles que dizem “eu não creio em Deus” e aqueles que dizem não ter nenhuma crença espiritual, há uma brecha considerável. Ora, entre os europeus há muitas vezes um espiritualismo difuso, que não se identifica com o materialismo tradicional que está na origem do ateísmo. E nas pesquisas qualitativas feitas com ateus, encontramos muitas vezes a ideia de que o homem estaria dotado de um espírito. O que remete a uma possível ideia de um espírito que ultrapassaria os nossos próprios corpos.

Esse ponto, que é muito importante, permite distinguir dois grupos. Um primeiro, que se encontra do lado do materialismo e que é fortemente militante, por exemplo, na Livre Pensamento. Há também um ateísmo mais popular que desconfia das Igrejas, mas que não quer abraçar todos os pensamentos do ateísmo militante.

Os ateus também produzem crenças?

A questão é saber se o fato de se dizer ateu levará necessariamente a uma visão desprovida de qualquer significação religiosa. Na sociologia das religiões, há teses que se opõem. Segundo uma dessas teses, defendida por pesquisadores italianos, os ateus produzem significações religiosas. Mais precisamente, eles sacralizariam normas de existência que fazem duvidar da possibilidade de uma crítica. Assim, haveria uma religião civil e mesmo uma religião política para qualificar alguns valores que são promovidos pelos ateus fora de qualquer crença em Deus. Também podemos falar de um “monoteísmo de valores” a propósito das populações que erigem em valores sagrados o princípio da autonomia do sujeito, o que permite fundar sua própria existência.

Eles não são, portanto, relativistas o tempo todo?

Nota-se que entre os ateus alguns valores não são negociáveis. O que significa que não nos encontramos mais no relativismo absoluto. A título de exemplo, os direitos da consciência são absolutizados. Assim como os direitos da criança e da mulher. Esses valores não remetem a elementos sobrenaturais. Mas elas aparecem como valores sagrados não negociáveis para pessoas que recusam a crença em Deus.

É possível falar de uma religião laica?

A noção de “religião laica” remete a uma concepção muito particular da existência política. Nem todos os ateus a compartilham necessariamente. Mas tipicamente, os militantes de organizações como a União dos Ateus, a UniãoRacionalista ou a Federação Nacional do Livre Pensamento defendem um modelo de religião laica. Trata-se de um Estado que fixa normas de existência com uma escola que é exclusivamente laica. Esta religião pode desenvolver uma moral laica, difundida pela escola. Ela engloba, portanto, a sociedade em seu conjunto. Nesse sistema de religião laica não se procura necessariamente suprimir autoritariamente o fenômeno religioso. Ao contrário, quer-se privatizá-la de maneira rigorosa: a religião é expulsa para a esfera privada.

Mas nem todos os ateus compartilham esta visão restritiva da religião?

Muitos ateus comuns não somente não compartilham esta visão, como a ignoram! Eles simplesmente se afastam das instituições religiosas que lhes parecem representar um Deus autoritário. Ou seja, esses ateus também podem desenvolver valores sagrados fundados na autonomia do sujeito: os direitos da criança, a possibilidade de as mulheres escolherem sua própria existência, etc., sem que haja nisso necessariamente uma referência a um modelo de tipo laico. Pois alguns ateus são favoráveis a uma ética republicana pura. Os outros aderem antes a uma ética liberal extrema, em oposição à republicana.

Para os ateus, o indivíduo constrói sua própria existência, de maneira autônoma?

Sim e é por esta razão que eles são favoráveis às reformas sociais. Eles defenderam a contracepção e o aborto nos anos 1960 e 1970, depois a procriação assistida nos anos 1980. Hoje, eles são favoráveis à eutanásia e ao casamento gay. A questão de fundo é que defendem o fato de que o indivíduo deve poder construir sua própria existência de maneira autônoma.

Entre os crentes, o princípio da organização da vida não é o mesmo. Eles encontram uma referência em normas superiores. Eles cultivam a ideia de uma transcendência e de uma moralidade que foge à liberdade do sujeito. O que acaba por fundar uma visão que desconfia da evolução não controlada.

Os católicos têm a fama de serem majoritariamente de direita. Os ateus são mais de esquerda?

Quanto mais longe se estiver do polo religioso, mais se é ateu, mais se vota na esquerda. Quanto mais afastado da crença em Deus, mais se é favorável à evolução das legislações sociais. Outra correlação: quanto mais jovem for, mais se é aberto a reformas sociais. Ao contrário, quanto mais perto se estiver do polo religioso, portanto crente e membro de uma religião institucionalizada, mais se vota na direita.

Mas, atenção! Eu insisto novamente no desenvolvimento de zonas cinzentas, marcadas pela incerteza, que está em sintonia com a ultramodernidade. Nossa sociedade não é mais tão dividida que em outros tempos entre ateus militantes e católicos da certeza.

No entanto, há uma clivagem muito clara entre crentes e ateus em relação a temas sociais. Sim, sempre há uma militância ateia em oposição a uma militância religiosa. E nesse momento, dois campos dão o tom nos debates públicos. Eu vou usar o termo “guerra de culturas”. Mais precisamente, de um lado nós temos a cultura da autonomia do sujeito. Do outro, uma cultura da normatividade. E entre essas duas culturas, há diferenças muito importantes sobre a maneira de conduzir uma sociedade.

Qual polo predomina?

Predomina mais o polo ateu. A tendência dominante é a do relativismo e do afastamento das populações das normas religiosas. Isso não é necessariamente uma hostilidade para com as Igrejas, mas considera-se cada vez mais que os indivíduos podem levar sua existência como bem lhes aprouver. Esta secularização dos comportamentos e a autonomização das consciências é hoje mais importante que o outro polo, que, entretanto, resiste bem. Tem-se também a impressão de que o governo está se afastando cada vez mais do polo religioso. Eu diria que o atual governo pende para o lado do polo da não-crença e para o lado do princípio da autonomia, que é dominante.

Mas esse fato remete a processos de socialização diferentes. O primeiro, bem entendido, que os socialistas romperam, há muito tempo, qualquer relação com o polo religioso. E as classes médias bem formadas e bem representadas dos socialistas continuam a afastar esse governo do polo religioso e, portanto, de uma visão moral da lei.

O que muda com esse governo é que ele vai mais longe que em outros tempos na afirmação do princípio da autonomia. Eu recordo que as principais reformas sociais, até agora, foram votadas pela direita: a contracepção em 1967, o aborto em 1975, a bioética em 1994, a eutanásia em 2005. Agora o governo socialista propõe uma espécie de ruptura – a ponto de falar de “mudança de civilização” – em relação a questões como a filiação e a morte. É preciso levar em conta essas mudanças.

E as Igrejas? Elas reagem mais fortemente que antes?

Sim, é o outro elemento desta evolução. A Igreja católica intervém de maneira mais militante que no passado. Por quê? O corpo episcopal e os sacerdotes mudaram. Eles se tornaram mais identitários e estão mais apegados aos seus princípios morais. Eles sentem também que a sociedade, especialmente entre os probabilistas, não está segura da necessidade de desordenar a tal ponto as regras tradicionais da sociedade.