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26 março 2024

Que é a "ditadura republicana"?

No dia 2 de Arquimedes de 170 (26.3.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua décima conferência (dedicada ao regime privado).

No sermão abordamos a proposta de "ditadura republicana".

Antes do sermão, comentamos o livro O homem e sua ficha, do positivista cearense Jesus Pereira Soares (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988), que é um belo e interessante relato e profissão de fé do autor como servidor público inspirado e orientado pelo Positivismo e como integrante da assessoria econômica da Presidência da República nos anos 1940 e 1950.


Fonte: https://bonifacio.net.br/interpretes-do-brasil-assessoria-economica-do-segundo-governo-vargas/

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/4fjrm) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/wkWus). O sermão começou em 58 min 40 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *


O que é a ditadura republicana? 

-        Como sabemos, quando se fala popularmente no Positivismo, pensa-se de modo geral em alguns chavões, com freqüência mal explicados ou simplesmente errados: a lei dos três estados, o “Ordem e Progresso”, alguns militares positivistas – e, no que depende dos liberais, também a “ditadura republicana”

o   A associação contemporânea da palavra “ditadura” com autoritarismos, com violência, com truculência (e, não por acaso, com os militares e com a violência policial), torna o conceito de “ditadura republicana” algo bastante delicado de ser tratado

o   De qualquer maneira, há algumas semanas um interessado no Positivismo pediu que tratássemos desse tema: assim, aqui estamos[1]

-        Para limparmos o terreno, antes de começarmos a tratar do que é a ditadura republicana, é importante sabermos o que ela não é[2]

o   A ditadura republicana não é um autoritarismo

§  Pode não parecer muito evidente, mas Augusto Comte não usava a palavra “autoritarismo”, que é de uso bastante contemporâneo (posterior à II Guerra Mundial)

§  Para nós, “autoritarismo” é um regime político moderno, mantido pela força, isto é, pela violência militar, policial e civil-burocrática

·         O autoritarismo, nesse sentido, equivale à “ditadura”, e é oposto à “democracia”

·         A “democracia”, por sua vez, consiste em um regime de liberdades, em que o governo obedece à “vontade popular”; em que o governo é eleito periodicamente e em que a atuação do Estado é limitada tanto por uma carta constitucional quanto pela “separação dos poderes”

§  Seguindo a tradição filosófico-política vigente no século XIX, os regimes políticos autoritários, ou melhor, os regimes políticos negativos para Augusto Comte eram a tirania, o despotismo, o absolutismo político e a opressão

·         As características desses regimes políticos negativos eram o emprego político da violência, a ausência de liberdades, a imposição de crenças e também um caráter retrógrado geral – e a união dos dois poderes (Temporal e Espiritual)

§  Augusto Comte, na Política positiva (1851-1854), emprega habitualmente a expressão “ditadura” em um sentido neutro, ou seja, como sinônima de “governo” ou de “regime político”

·         Assim, há ditaduras progressistas, ditaduras liberais (no sentido de que apóiam as liberdades), ditaduras pacíficas; inversamente, há ditaduras retrógradas, ditaduras violentas, ditaduras militares etc.

·         Entre o rol de ditaduras, há a “ditadura republicana”

·         A palavra ditadura é empregada por Augusto Comte no sentido de “ditar”, isto é, de indicar as regras e as leis – ou seja, no sentido de “governar”

-        A expressão “ditadura” tem origem romana; ela consistia em uma magistratura excepcional[3]

o   (As magistraturas eram os cargos públicos de Roma)

o   Na República romana, em situações de grande perigo público – como no caso de guerras em que estivessem à beira da derrota, ou em caso de invasões do seu território, ou mesmo no caso de graves distúrbios civis –, escolhia-se um “ditador”

o   O ditador tinha um mandato fixo (seis meses, prorrogáveis por mais seis) e seus poderes eram os mais amplos possíveis (vida e morte, decisões com aplicação imediata, justiça irrecorrível), mas não eram ilimitados: ele não podia mudar as instituições fundamentais da República

-        Até o final do século XIX, a palavra ditadura tinha um sentido neutro ou mesmo positivo[4]; foi com o comunismo que isso mudou, seja com a proposta de “ditadura do proletariado” (cujo sentido de “autoritarismo do proletariado” nunca foi fingido por Marx), seja com a Revolução Russa em 1917

o   A ditadura nazista (1933-1945) foi a pá de cal final sobre os sentidos neutros ou positivos para a palavra “ditadura”

o   Após a II Guerra Mundial, os estadunidenses popularizaram a “ditadura” como conceito antinômico em relação à “democracia”, fosse para defender a sua democracia no âmbito da Guerra Fria, fosse para caracterizar as ditaduras opostas (nazista e/ou soviética)

-        Agora que vimos o que a ditadura republicana não é, podemos com tranqüilidade passar para o que ele é

-        Ainda com o objetivo de limparmos o terreno, convém apresentarmos alguns aspectos gerais da ditadura republicana, antes de abordarmos seus elementos específicos[5]

o   É um regime de liberdades: liberdades civis (ir e vir, devido processo legal, habeas corpus) e, ainda mais, de plenas liberdades de consciência, de expressão e de associação

o   Considerando a separação dos dois poderes, é um regime de governo limitado

o   É o regime político próprio à sociocracia, isto é, à organização social positiva, baseada na prevalência da opinião pública

o   Ainda vinculados à sociocracia estão os elementos do pacifismo (e da rejeição da violência), do fim do militarismo, da confiança mútua (entre o governo e os cidadãos; entre os cidadãos entre si), da responsabilidade social e política, dos estados de pequena extensão, da afirmação das mátrias, da afirmação da Humanidade sobre as pátrias/mátrias

-        Para entendermos a ditadura republicana, temos que ter clareza e lembrar que, assim como não se pode ter o espírito absoluto na filosofia, não se pode ter o espírito absoluto na política

o   Assim, não faz sentido a pesquisa puramente abstrata e de caráter teológico-metafísico sobre “o melhor tipo de governo”: cada sociedade tem seu tipo adequado de governo

o   Durante a Idade Média e, de modo geral, durante os períodos teológicos, o governo foi absoluto, no sentido de que suas ordens eram indiscutíveis; além disso, o governante era visto como o representante da divindade na Terra

o   Em uma sociedade positiva e relativa, as decisões do governo têm que ser passíveis de exame e de crítica pública; o governo é o agente do interesse público; a importância da confiança pública e da responsabilidade social é plenamente reconhecida e valorizada

o   No meio do caminho entre a teologia e a positividade há a metafísica – e a teoria política metafísica atualmente é liberal e democrática

§  Lembremos: a metafísica é destruidora, dissolvente, “crítica”; em termos políticos, uma outra característica da metafísica é considerar como permanente instituições puramente transitórias (em particular aquelas destinadas a destruir as instituições anteriores)

§  O aspecto mais claramente metafísico no liberalismo é a desconfiança radical em relação ao poder: essa desconfiança vincula-se à decadência dos poderes antigos, que, após a Idade Média, passaram a tornar-se desregulados e opressivos

·         A idéia, e até o sentimento, de que o poder sempre será ruim está na base dos raciocínios dos liberais (políticos e/ou econômicos) e apóia o individualismo liberal

§  No que se refere à metafísica democrática, ela apresenta-se com clareza ao considerarmos a concepção da “soberania popular”

·         Entendida de maneira positiva (ou melhor, positivada), ela pode ser entendida como o governo da opinião pública

·         Nos textos de Rousseau, a soberania popular é a consideração de que o “povo” sempre sabe tudo, sempre sabe o que quer, nunca erra e exige que todos creiam em uma religião civil

o   A ditadura republicana surge como uma instituição intermediária e temporária entre a fase atual, da metafísica democrático-liberal, e a fase sociocrática plenamente positiva

-        Agora que limpamos o terreno, demos algumas indicações elementares sobre a política positiva e indicamos o aspecto de transição da ditadura republicana, torna-se mais simples, rápido e fácil apresentar seus elementos específicos[6]:

o   A ditadura republicana é um regime político republicano, em que o bem comum (“res publica”) é o parâmetro fundamental, afirmado pela opinião pública, e em que as liberdades devem ser, sempre, garantidas

o   Em particular, a separação entre os dois poderes (Temporal e Espiritual) deve ser cuidadosamente mantida: como o objetivo da ditadura republicana é realizar a transição, a sua atuação deve ser no sentido de garantir as condições sociais e políticas próprias à transição

o   Em que consiste a transição? A transição consiste no restabelecimento da ordem espiritual, ou seja, (1) no restabelecimento de um poder espiritual legítimo, verdadeiro e adaptado à sociedade e, portanto, (2) no estabelecimento de um poder espiritual positivo

o   O papel da ditadura republicana, então, é o de manter a ordem temporal em meio à anarquia espiritual, enquanto o poder espiritual positivo estabelece-se: evidentemente, a condição fundamental e necessária para isso é a liberdade espiritual (liberdades de consciência, de expressão e de associação)

o   Considerando por um lado o papel específico da ditadura republicana como regime de transição e por outro lado a necessidade permanente da separação entre os dois poderes nas sociedades modernas, o resultado é que a ditadura republicana deve assumir a característica da “laicidade do Estado”, conforme é habitualmente entendida

o   Augusto Comte determina três fases progressivas na transição:

§  (1) nem o conjunto da sociedade nem o governante é positivista, mas é possível e necessário adotar uma série de medidas: garantia clara e plena das liberdades de consciência, expressão e associação; fim do anonimato; fim dos orçamentos teóricos (igrejas, universidades); extinção da legislação de propriedade intelectual; sistema público de comemorações históricas

§  (2) a sociedade não é positivista, mas o governante é e por isso o governo assume um caráter progressista, ao adotar as seguintes medidas: supressão das Forças Armadas, transformação de Paris em metrópole ocidental, junção das máximas “Ordem e Progresso” e “Viver para outrem”

§  (3) tanto o governante quanto a sociedade são positivistas

o   Quando ocorrer a terceira fase da transição, será possível instalar o regime político normal, em que o poder do Estado será organizado em um triunvirato, ou seja, dividido entre três governantes, cada um deles oriundo de um ramo do patriciado bancário e responsável por uma área específica

§  Interior (proveniente da agricultura)

§  Finanças (proveniente da indústria)

§  Exterior (proveniente do comércio)

§  Os eventuais conflitos graves entre os triúnviros são mediados pelo poder Espiritual

-        Em termos institucionais, a ditadura republicana caracteriza-se pelo seguinte:

o   Governo unipessoal: ou seja, república presidencialista

o   Parlamento apenas orçamentário e reunido apenas durante suas atividades orçamentárias

§  O parlamentarismo apresenta uma série enorme de defeitos e problemas morais e políticos: dispersa (e/ou nega) a responsabilidade; divide e inutiliza o poder; finge que é um órgão espiritual; estimula a mesquinhez, a corrupção e as intrigas (apoiando e sendo apoiado pelo jornalismo político)

o   A “soberania” é da sociedade (logo, não é nem divina nem do “povo”): a sociedade manifesta-se sozinha e com autonomia, por si só, seja por meio do poder Espiritual, seja por meio de seus órgãos variados (clubes cívicos, associações, sindicatos etc.)

o   As leis são propostas pelo governo e submetidas à avaliação pública durante períodos variáveis durante alguns meses; a sociedade manifesta-se e, com base nas manifestações sociais e após elas, o governo decreta finalmente as leis

o   Os mandatos são vitalícios, até a idade da aposentadoria (Augusto Comte indica a idade de 63 anos); o governante indica o seu sucessor, que é sujeito à avaliação (e, portanto, à aceitação) pública

§  Esse é o instituto da “hereditariedade sociocrática”

o   Augusto Comte aceita a instituição do voto – voto universal, aliás –, apesar do seu caráter profundamente crítico e dissolvente, com três modificações fundamentais, introduzidas a fim de garantir-se a responsabilidade nas decisões:

§  Voto apenas a partir dos 28 anos

§  Voto público (isto é, a descoberto)

§  Voto transferível (ou seja, a possibilidade de um eleitor atribuir a própria capacidade de votar a outro cidadão – que, por sua vez, passa a poder contar com dois votos – e assim sucessivamente)

o   Como deve ter ficado evidente, todas as instituições propostas acima para a transição (e, aí, para a ditadura republicana) ficam na dependência de o poder Espiritual fazer valer a preponderância do altruísmo sobre o egoísmo



[1] A presente exposição baseia-se longamente no livro de nossa autoria, ou seja, de Gustavo Biscaia de Lacerda, O momento comtiano: república e política no pensamento de Augusto Comte (Curitiba: UFPR, 2019). Nesse livro eu cito longa e textualmente Augusto Comte e discuto em detalhes cada um dos aspectos considerados, incluindo os temas contemporâneos que geram confusão (como, por exemplo, a equivalência contemporânea entre “ditadura” e “autoritarismo”).

[2] Cf. Lacerda, seção 5.1.

[3] Cf. Lacerda, seção 5.1.

[4] Cf. Lacerda, seção 5.1.

[5] Cf. Lacerda, cap. 3, cap. 5 (em particular seções 5.2-5.3) e cap. 6.

[6] Cf. Lacerda, seção 5.3.