24 dezembro 2022

Live AOP: Fernanda Alcântara - "Harriet Martineau e Augusto Comte"

No dia 21 de dezembro tivemos mais uma Live AOP, desta feita com a participação da Profª Drª Fernanda H. C. Alcântara, da Universidade Federal de Juiz de Fora (campus de Governador Valadares). Em uma agradável conversa que durou quase duas horas, a palestra tratou de Harriet Martineau e de suas relações com Augusto Comte. A Profª Fernanda tem-se dedicado, nos últimos vários anos, a estudar, resgatar e traduzir a obra de Harriet Martineau (ou "Miss Martineau", como sempre foi respeitosamente referida nos círculos positivistas).

O vídeo dessa Live AOP pode ser visto no canal Positivismo, aqui: l1nq.com/Martineau.

Harriet Martineau foi uma pensadora, socióloga, etnóloga e divulgadora da ciência que atuou na Inglaterra de meados do século XIX. No que se refere a Augusto Comte e ao Positivismo, Miss Martineau fez em 1851-1852 a famosa condensação do Sistema de filosofia positiva de Augusto Comte, publicado originalmente entre 1830 e 1842, em seis volumes; na versão condensada, essa obra ficou com três volumes (ou até dois, dependendo da edição), sob o título "A filosofia positiva de Augusto Comte". O trabalho foi tão bem feito que Augusto Comte - que em sua correspondência com Miss Martineau tratava-a por "minha colega" - passou a recomendar a leitura não do seu próprio original, mas da versão condensada!

Em virtude desse trabalho importantíssimo e descumunal, Miss Martineau tornou-se uma das mais importantes divulgadoras do Positivismo na Inglaterra. Embora tenha participado desse relevante serviço após John Stuart Mill, as pesquisas da Profª Fernanda levam a crer que Miss Martineau atingiu um público bem maior, seja junto ao comum do povo, seja junto aos eruditos e pesquisadores.

(Algumas observações bibliográficas, teóricas e históricas: o Sistema de filosofia positiva foi originalmente intitulado Curso de filosofia positiva; mas, a partir de 1848 (no Discurso sobre o conjunto do Positivismo), Augusto Comte estabeleceu que essa obra deveria ser indicada e renomeada como Sistema de filosofia positiva. A obra original era em francês; a condensação de Miss Martineau foi feita em inglês; Comte recomendava a leitura tanto da versão em inglês quanto, é claro, a em francês. Por fim, a condensação não é um resumo: trata-se de uma nova obra, que aborda de maneira mais direta os mais importantes assuntos tratados na obra original.)

Esse trabalho descomunal pode ser consultado, lido e baixado no portal Internet Archive

- volume 1: aqui

- volume 2: aqui




21 dezembro 2022

Anotações sobre as liberdades política e filosófica

No dia 20.12.2022 realizamos a nossa prédica positiva - a última do ano -, na qual terminamos a leitura comentada da teoria do culto privado, com a exposição dos últimos quatro sacramentos positivos (madureza, retiro, transformação e incorporação).
Em seguida, nas reflexões semanais, apresentamos alguns elementos da teoria positiva da liberdade. O primeiro aspecto exposto foram alguns conceitos de liberdade política conforme são estudados atualmente (negativa, positiva e republicana): Augusto Comte propõe e defende concepções próprias a cada uma dessas modalidades.

Na sequência, abordamos a chamada "liberdade moral", ou "liberdade filosófica": a concepção de Augusto Comte a esse respeito muitas vezes é criticada. Todavia, o exame detalhado da concepção própria a Augusto Comte e, ainda mais, das críticas que lhe são dirigidas deixa claro que tais críticas celebram a arbitrariedade e os caprichos: em outras palavras, tais críticas celebram não a liberdade humana, mas a imaturidade e o infantilismo do ser humano (seja individual, seja coletivamente).

Apresentamos abaixo as anotações que utilizamos para a exposição da teoria positiva da liberdade.

A prédica foi gravada ao vivo no canal Apostolado Positivista (disponível aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/2375938302773412) e no canal Positivismo (disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=DyELzJqcw3w). Os comentários sobre a liberdade estão disponíveis no vídeo do Apostolado Positivista a partir de 50' 15".


* * *

Anotações sobre a liberdade

 

-        A liberdade é um dos temas mais clássicos de reflexão filosófica, política e social

o   Para o que nos interessa, podemos considerar aqui dois tipos gerais de liberdade, a “filosófica” e a “política”

§  Antes de mais nada: não trataremos aqui da liberdade econômica

o   Augusto Comte evidentemente trata de ambas

§  Mais do que tratar de ambas, Augusto Comte relaciona uma à outra de maneira íntima

§  Na presente exposição, trataremos antes da liberdade política e, com os seus elementos, trataremos da liberdade “filosófica”

-        Em termos de liberdade política, eis o que podemos comentar:

o   O conceito mais básico e elementar é o de Thomas Hobbes, que entende a liberdade como a capacidade de realizar coisas sem sofrer obstrução

o   O sentido básico que Augusto Comte dá à liberdade segue esse conceito de Hobbes

-        Entre os séculos XVII e início do século XIX, a partir da chamada “querela dos antigos e dos modernos”, estabeleceu-se uma distinção entre a “liberdade dos antigos” e a “liberdade dos modernos”; no século XX essa distinção recebeu uma nova elaboração, entre “liberdade negativa” e “liberdade positiva”

o   A liberdade negativa consiste em fazer o que se deseja, sem que nada ou ninguém ofereça obstáculos ou resistências

o   A liberdade positiva consiste na autonomia da decisão

o   Na década de 1990, após o fim do comunismo, revalorizou-se o republicanismo (e a cidadania) e, a partir disso, propôs-se também a “liberdade republicana”, que é a ausência de arbitrariedade nas relações políticas

§  O propositor da liberdade republicana, Phillip Pettit, inspira-se no constitucionalismo da antiga república romana, mas no geral ele tem uma concepção bem restrita e pobre de “república” (ele rejeita os aspectos que as repúblicas costumam e que devem ter: antimonarquia, afirmação das liberdades, caráter social das repúblicas)

·         Pettit afirma que essa modalidade de liberdade é uma variação da liberdade negativa; assim, ele acaba aproximando-se mais do liberalismo (liberdade negativa) e afastando-se da “democracia” (liberdade positiva)

·         Convém lembrar que o liberalismo é uma degradação do republicanismo, especialmente na Inglaterra do século XVII; em outras palavras, não é o republicanismo que seria uma alternativa atual e meio esquisita ao liberalismo

§  Embora tenha sérias limitações filosóficas, a proposta de Pettit – de que a liberdade consiste na ausência de arbitrariedade nas relações políticas – é uma concepção fundamental e em si mesma muito acertada

·         De modo central, a ausência de arbitrariedade significa que ser livre não é o mesmo que fazer qualquer coisa quando e do jeito que se desejar

-        Augusto Comte fala em liberdade considerando sempre a autonomia decisória individual e coletiva (liberdade positiva) e a ausência de obstáculos (liberdade negativa); também defende a ausência de arbitrariedade (liberdade “republicana”):

o   A autonomia nas decisões e o respeito tanto à autonomia quanto às decisões é o que confere dignidade nas relações sociais

o   As liberdades de consciência, expressão e associação são as liberdades fundamentais da vida política moderna

o   O pacifismo, o relativismo e a fraternidade evitam a arbitrariedade nas relações sociais e políticas; além disso, a república deve ter um caráter social mais que político

-        No que se refere à “liberdade filosófica”: é a respeito dela que as considerações de Augusto Comte sobre a liberdade são mais conhecidas:

o   Popularmente, quando há referências ao conceito positivista de liberdade, menciona-se apenas um pequeno trecho específico (um parágrafo, na verdade) do Catecismo positivista

§  Nesse trecho, muito famoso, Augusto Comte afirma que não temos liberdade de desobedecermos às leis naturais:

 

O Sacerdote – [...] Longe de ser por qualquer forma incompatível com a ordem real, a liberdade consiste por toda a parte em seguir sem obstáculos as leis peculiares ao caso correspondente. Quando um corpo cai, a sua liberdade manifesta-se caminhando, segundo sua natureza, para o centro da Terra, com uma velocidade proporcional ao tempo, a menos que a interposição de um fluido não modifique a sua espontaneidade. Do mesmo modo, na ordem vital, cada função, vegetativa ou animal, é declarada livre se ela se efetua de conformidade com as leis correspondentes, sem nenhum empecilho exterior ou interior. Nossa existência intelectual e moral comporta sempre uma apreciação equivalente que, diretamente incontestável, quanto à atividade, se torna, por conseguinte, necessária para seu motor afetivo e para seu guia racional” (Augusto Comte, Catecismo positivista, 4ª ed., Rio de Janeiro, 1934, “Oitava conferência”, p. 243-244)

 

o   Esse trecho tornou-se famoso porque os críticos do Positivismo atribuem-lhe vários aspectos negativos: cientificismo, determinismo, ausência de liberdade

o   Vale reforçar: esse trecho é famoso porque os “críticos” de Augusto Comte limitam-se apenas a esse trecho, que é um pequeno parágrafo de uma obra de divulgação de Comte: as reflexões e as obras propriamente políticas (Opúsculos de filosofia social, Sistema de política positiva, Apelo aos conservadores) são desprezadas

o   Mas a leitura do trecho completo, isto é, a leitura integral dos parágrafos anteriores e posteriores em que se insere a citação acima evidencia que as interpretações negativas são extremamente superficiais, quando não de má-fé:

 

A Mulher – Antes de encetarmos o melhor domínio teórico, eu devo, meu pai, submeter-vos um escrúpulo geral devido às objeções metafísicas que com freqüência tenho ouvido formular contra esta extensão decisiva do dogma positivo. Toda sujeição do mundo moral e social a leis invariáveis, comparáveis às da vitalidade e da materialidade, é agora apresentada, por certos argumentadores, como incompatível com a liberdade do homem. Posto que estas objeções me tenham sempre parecido puramente sofísticas, nunca eu soube destruí-las nos espíritos, ainda muito numerosos, que se deixam, assim, estorvar em sua marcha espontânea para o positivismo.

O Sacerdote – É fácil, minha filha, superar este embaraço preliminar, caracterizando diretamente a verdadeira liberdade.

Longe de ser por qualquer forma incompatível com a ordem real, a liberdade consiste por toda parte em seguir sem obstáculos as leis peculiares ao caso correspondente. Quando um corpo cai, a sua liberdade manifesta-se caminhando, segundo sua natureza, para o centro da terra, com uma velocidade proporcional ao tempo, a menos que a inter-posição de um fluido não modifique a sua espontaneidade. Do mesmo modo, na ordem vital, cada função, vegetativa ou animal, é declarada livre, se ela efetua de conformidade com as leis correspondentes, sem nenhum empecilho exterior ou interior. Nossa existência intelectual e moral comporta sempre uma apreciação equivalente, que, diretamente incontestável, quanto à atividade, se torna, por conseguinte, necessária para seu motor afetivo e para seu guia racional.

Se a liberdade humana consistisse em não seguir lei alguma, ela seria ainda mais imoral do que absurda, por tornar-se impossível um regime qualquer, individual ou coletivo. Nossa inteligência manifesta sua maior liberdade quando se torna, segundo seu destino normal, um espelho fiel da ordem exterior, apesar dos impulsos físicos ou morais que possam tender a perturbá-la. Nenhum espírito pode recusar seu assentimento às demonstrações que compreendeu. Mas, além disto, cada qual é incapaz de rejeitar as opiniões assaz acreditadas em torno de si, mesmo quando ignora os verdadeiros fundamentos em que assentam, a menos que não esteja preocupado de uma crença contrária. Podemos desafiar, por exemplo, os mais orgulhosos metafísicos a que neguem o movimento da terra, ou doutrinas ainda mais modernas, posto que eles ignorem absolutamente as provas cientificas de tais doutrinas. O mesmo acontece na ordem moral, que seria contraditória se cada alma pudesse, a seu bel-prazer, odiar quando cumpre amar, ou reciprocamente. A vontade comporta uma liberdade semelhante à da inteligência, quando nossos bons pendores adquirem bastante ascendência para tornar o impulso afetivo harmônico como verdadeiro destino dele, superando os motores contrários.

Assim, a verdadeira liberdade é por toda parte inerente e subordinada à ordem, quer humana, quer exterior. Porém, à medida que os fenômenos se complicam, eles se tornam mais suscetíveis de perturbação, e o estado normal supõe neste caso maiores esforços, os quais, aliás, são aí possíveis graças a uma aptidão maior para as modificações sistemáticas. Nossa melhor liberdade consiste, pois, em fazer prevalecer, tanto quanto possível, os bons pendores sobre os maus; e é também nisso que o nosso império tem a sua maior amplitude, contanto que a nossa intervenção se adapte sempre às leis fundamentais da ordem universal.

A doutrina metafísica sobre a pretendida liberdade moral deve ser historicamente considerada como um resultado passageiro da anarquia moderna; porquanto ela tem por objeto direto consagrar o individualismo absoluto, para o qual tendeu cada vez mais a revolta ocidental que teve de suceder à Idade Média. Mas este protesto sofistico contra toda verdadeira disciplina, privada ou pública, não pode de modo nenhum entravar o positivismo, se bem que o catolicismo não pudesse superá-lo. Jamais se conseguirá apresentar como hostil à liberdade e à dignidade do homem o dogma que melhor consolida e desenvolve a atividade, a inteligência e o sentimento (Augusto Comte, Catecismo positivista, 4ª ed., Rio de Janeiro, 1934, “Oitava conferência”, p. 243-247; os grifos são meus).

 

-        O trecho acima tem que ser entendido como uma crítica científico-filosófica às pretensões de que a liberdade consiste em desejar qualquer coisa e, a partir disso, em querer fazer qualquer coisa

o   Como vimos acima, a respeito da liberdade republicana, desejar qualquer coisa e poder fazer qualquer coisa é o mesmo que ser arbitrário e não ter nenhuma regra; mais do que isso, é o desejo de uma realidade que ceda aos nossos caprichos

-        A concepção de leis naturais estabelece que o mundo não é caótico, ou seja, que ele obedece a regularidades:

o   As regularidades evidenciadas e afirmadas pelas leis naturais rejeitam também, em particular, a concepção de que o mundo é governado por entidades que fazem o que querem, quando querem, do jeito que querem

o   Lembremos que a teologia é a transposição para a ordem cósmica de um desejo imaturo interno aos seres humanos

-        Entendendo a questão de uma outra perspectiva e chegando ao ponto que nos interessa aqui: a concepção de leis naturais requer o amadurecimento intelectual e moral do ser humano, no conjunto dos vários sentidos próprios ao amadurecimento:

o   É necessário reconhecer que a realidade impõe limites à ação humana

o   É necessário reconhecer que o mundo não obedece às meras vontades humanas

o   É necessário reconhecer que a satisfação das vontades humanas requer tanto a limitação dessas vontades quando a adequação das vontades às possibilidades efetivas de ação

§  Podemos até não gostar do fato de que a realidade não é dócil às vontades humanas: ainda assim, temos que nos resignar a isso e aprender a lidar com a realidade

·         Essa resignação é o que todos os filósofos sempre reconheceram como sendo a “sabedoria”

·         É necessário insistir: essa resignação consiste, precisamente, em um dos mais importantes aspectos do que se chama, por toda parte, de “amadurecimento”

§  Por outro lado, insistir em que o mundo e a realidade deveriam curvar-se à vontade humana é puramente pirraça, é mentalidade e comportamento infantil e caprichoso

-        Há uma concepção difundida segundo a qual a mera vontade humana, entendida como puro desejo de algo, não tem limites e que, portanto, nesse sentido, a vontade humana seria “livre”

o   A concepção da vontade-desejo da liberdade também consiste em um entendimento infantil da liberdade, especialmente da liberdade negativa (que é a ausência de impedimentos à ação): a liberdade aí é tornada sinônima de arbitrariedade

o   A redução da vontade humana ao “desejo” é o último refúgio da concepção infantil de liberdade, ao tentar recuar ao máximo da subjetividade o âmbito do arbitrário

-        Como a teologia e a metafísica buscam o absoluto e o arbitrário; como elas consistem em transpor para uma suposta objetividade algo que é próprio ao que é subjetivo, o resultado é que a concepção de liberdade que rejeita as leis naturais é uma concepção teológico-metafísica

o   Essa concepção tem o terrível agravante de que é imatura ou, da pior maneira possível, é infantil, é mimada

-        Reconhecermos o império das leis naturais e submetermo-nos a ele é a única garantia de ação e de aperfeiçoamento, ou seja, é a única possibilidade de liberdade

o   Qualquer possibilidade de ação requer o conhecimento das leis naturais (seja o conhecimento empírico e concreto, seja o conhecimento sistemático e abstrato)

o   Como dizia Francis Bacon, “só se pode controlar a natureza submetendo-se a ela”

-        É por meio do conhecimento e do reconhecimento das leis naturais que o ser humano pode agir e satisfazer suas necessidades e, quando é o caso, também seus desejos

o   O (re)conhecimento das leis naturais é ao mesmo tempo uma etapa e um resultado geral do amadurecimento do ser humano

o   Vale notar que até mesmo os desejos satisfeitos pelo recurso às leis naturais não são desejos arbitrários, pois são limitados e regulados pelas condições idiossincráticas dos indivíduos e, acima de tudo, pelos “contextos” sociais, em termos políticos e morais (e mesmo tecnológicos)

-        Em suma: Augusto Comte reconhece a particularidade das reflexões políticas sobre liberdade, mas evidencia que mesmo essas reflexões não podem isolar-se de reflexões mais amplas sobre a realidade cósmica e sobre a existência humana no mundo

o   Não há nisso nenhum cientificismo, nenhum determinismo, nenhuma negação da liberdade (ou a afirmação de autoritarismo): o que há é a exigência de amadurecimento moral e intelectual e a rejeição da arbitrariedade (moral, intelectual e política)    

14 dezembro 2022

Reconstrução da República, universalismo e anti-identitarismo

RECONSTRUÇÃO DA REPÚBLICA COMO TAREFA NECESSARIAMENTE UNIVERSALISTA E ANTI-IDENTITÁRIA[1]

 

A feliz e necessária derrota eleitoral do fascista, no dia 30 de novembro de 2022, muito mais que permitirá, na verdade obrigará o Brasil e os brasileiros a reconstruírem o país a partir de 1º de janeiro de 2023, desde as instituições até os hábitos de convívio. Será um caminho longo, difícil e demorado; o fascismo e os fascistas destruíram muito do país, permanecendo sua capacidade de atrapalhar o país, como se vê nos distúrbios no Norte e no Centro-Oeste do país, na violência em Brasília, na violência disseminada e relegitimada, na ressurgida baderna militar etc.

Mas há um aspecto que está escapando a todos, ou, pelo menos, à maioria.

A reconstrução necessária ao Brasil é em termos de República, de republicanismo: cidadania, valores compartilhados, isonomia (igualdade perante a lei), serviços públicos de qualidade. Todos esses aspectos são universais.

O fascista tornou-se governante com base no ódio e no projeto de destruir o país, mas também no particularismo e no facciosismo.

Assim, para que o país seja reconstruído, para que a sociedade e o Estado brasileiro recuperem-se da destruição sistemática sofrida nos últimos quatro anos, serão necessárias políticas e práticas universalistas.

Pois bem: as práticas e as políticas universalistas são práticas republicanas e dirigem-se a todos (ainda que, às vezes, concentrem-se em determinados grupos específicos). Essas práticas são universalistas e, por definição, são contra os particularismos e os facciosismos.

O republicanismo necessário à reconstrução do país repele, portanto, a política identitária. Repito: o necessário republicanismo repele a política identitária. Não adianta dizer que existe política identitária “do bem” (que seria, supostamente, a política identitária da esquerda) contra a política identitária “do mal” (a da direita): a política identitária por si só já é daninha, ruim e do mal. A política identitária é exclusivista, facciosista, particularista; ela baseia-se na afirmação de um grupo particular contra todos os outros; ela baseia-se no ressentimento social e político. Não é nenhum acaso que a política identitária recuse terminantemente o republicanismo e, por extensão, o universalismo.

A necessária reconstrução social e institucional interna do Brasil, bem como a necessária reconstrução da atuação internacional do Brasil, exigem a visão de conjunto; mas a política identitária rejeita (ou melhor, despreza) a visão de conjunto.

Aceito sem dificuldade que muitos grupos identitários apóiam a saída do fascista: isso é uma questão fática. Entretanto, tenhamos claro: os grupos identitários que se opuseram ao fascista opuseram-se a ele não porque esses grupos apoiam o republicanismo ou universalismo, mas apenas porque o identitarismo do fascista opõe-se ao identitarismo desses grupos. Em outras palavras, os identitários de esquerda opõem-se aos identitários de direita apenas porque só sabem locomover-se no âmbito de seus particularismos e seus facciosismos, não porque defendam o republicanismo e o universalismo.

Repito novamente: a reconstrução do Brasil exige, como deveria ser evidente, uma perspectiva universalista (seja em termos nacionais, seja em termos internacionais), mas a política identitária rejeita esse necessário universalismo.

Por que eu faço essas observações? Porque eu tenho certeza de que a partir de 1º de janeiro de 2023 o facciosismo identitário (de esquerda) dirá que quem é contra esse facciosismo é “retrógrado” ou contra o “progresso” – como se o verdadeiro progresso aceitasse o facciosismo ou como se os identitários valorizassem de verdade o progresso.

 



[1] Este texto é uma versão levemente alterada de uma postagem feita em 6 de dezembro de 2022, em minha conta pessoal do Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/gblacerda1977/posts/pfbid0gat4SevMeX2r6sDGSMc7uCNfyiSWq4zAGv1zFvTgTJHipjzyVzErq8viuCznYXz6l; acesso em: 14.12.2022.

Comentários sobre o progresso

No dia 11 de Bichat de 168 (13.12.2022) realizamos nossa prédica positiva. Após a leitura comentada do Catecismo Positivista (na Quarta Conferência do livro), fizemos alguns comentários sobre o conceito de "progresso", nas nossas reflexões semanais.

As anotações que serviram de base para esses comentários sobre o progresso estão reproduzidas abaixo. 

A exposição gravada ao vivo dos comentários sobre o progresso está disponível no canal Apostolado Positivista (aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/1113142389387222) e no canal Positivismo (aqui: https://www.youtube.com/watch?v=NBIfoej-Ejs); no canal Apostolado Positivista, está a partir de 44' 25".

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Comentários sobre o progresso

 -        É importante ter clareza a respeito disto: estas anotações não procuram esgotar o tema

-        O conceito de progresso é um dos mais problemáticos atualmente

o   Durante muito tempo – digamos, desde o final do século XIX e todo o século XX – o progresso foi o principal valor social e político

§  O conteúdo específico do progresso era discutido, mas o valor em si, não

§  A afirmação do progresso podia ocorrer com sacrifício ou não da ordem

o   Neste início do século XXI, o progresso passou a ser rejeitado em nome da ordem, especialmente a partir de perspectivas conservadoras, reacionárias ou retrógradas

§  Em outras palavras, a partir deste século XXI muitos grupos passaram a adotar em relação ao progresso uma perspectiva inversa à que se manteve ao longo do século XX

-        Se ainda fosse necessário dizê-lo: a única filosofia social e política que afirma com todas as letras a necessidade e a possibilidade de conjugar a ordem e o progresso é o Positivismo

o   Dessa forma, embora todas as filosofias sociais e políticas que tratam do progresso abordem a ordem (implícita ou explicitamente), no caso do Positivismo essa referência dupla é obrigatória

o   Cabe lembrar que a divisa “Ordem e Progresso” é de caráter científico e político e é algumas décadas anterior à fórmula moral e religiosa “O amor por princípio...”

-        Para o Positivismo, e ao contrário das concepções teológicas ou metafísicas, tanto a ordem quanto o progresso têm conteúdos positivos, que devem ser afirmados, respeitados e valorizados

-        “O progresso é o desenvolvimento da ordem”

o   Inversamente, “a ordem é a consolidação do progresso”

o   A ordem tem que ser entendida como “arranjo”; aí, o progresso é o desenvolvimento dos elementos, das relações e da “lógica” própria a esse arranjo

§  A ordem a que se refere Augusto Comte e cujo desenvolvimento constitui o progresso não é a “ordem capitalista” (nem a “ordem eurocêntrica”, nem a “ordem patriarcal”): é a ordem própria à natureza humana

o   Assim, o progresso constitui em última análise no desenvolvimento pleno e simultâneo da características da natureza humana (sentimentos, inteligência, atividade)

o   A ordem corresponde à Sociologia Estática (a permanência, a consolidação) e o progresso, à Sociologia Dinâmica (a mudança, o desenvolvimento)

§  Mas não se pode cometer o grave equívoco de considerar que as mudanças em si constituem o progresso

·         Não é qualquer mudança que constitui o progresso

·         Da mesma forma, querer acelerar, sempre e cada vez mais, as mudanças, não é o mesmo que ser sempre e cada vez mais “progressista”

-        Como o progresso que deve corresponder à divisa “Ordem e Progresso” e à fórmula “O amor por princípio” refere-se ao conjunto da natureza humana, a noção de “harmonia” impõe-se e, a partir daí, também as concepções de “síntese”, de “consenso”, de “visão de conjunto” e daí, por extensão e definição, a de “religião”

o   O desenvolvimento contínuo tem por primado e motor a afetividade, isto é, o altruísmo (ou o amor); assim, o principal progresso é o moral; depois, é o intelectual; depois, é o físico; depois, é o material

o   Essa sequência de tipos de progresso – moral, intelectual, físico, material – indica a ordem de importância, de dignidade e de dificuldade (a sequência inversa indica a ordem de facilidade)

-        Fora do âmbito do Positivismo, em termos “populares” há uma associação entre o progresso e a noção de “igualdade”

o   Tal associação é proposta pela “esquerda” como um valor positivo

§  Vale notar que a “direita” também aceita essa associação, embora para criticá-la

§  Enquanto a esquerda de modo geral afirma o progresso (mas de maneira incoerente e irracional), a direita de modo geral rejeita o progresso (e também de maneira incoerente e irracional)

o   O conceito de progresso, aí, é ou indefinido ou é a expansão da “igualdade”

o   O conceito de progresso, aí, opõe-se radicalmente à noção de ordem (que, por sua vez, também é indefinida e/ou equivale a opressão política, exploração econômica e alienação moral)

o   Essa concepção de progresso, embora indefinida e/ou sinônima da “igualdade”, habitualmente é contraposta de maneira frontal à concepção positivista de progresso, que, por sua vez, é entendida pela esquerda (especialmente a marxista) como equivalente ao desenvolvimento do capitalismo

§  A má-fé marxista, além disso, afirma que a concepção positivista de progresso que estabelece antes de mais nada o progresso moral é uma concepção “ideológica” própria à “burguesia”, no sentido de que serviria apenas para iludir o proletariado e manter a opressão-exploração-alienação capitalista

§  A direita católica, reacionária e/ou ultraliberal rejeita o progresso e contrapõe a ele a noção de ordem, que, por sua vez, seria sempre estática

§  Para essas direitas, qualquer noção de progresso será sempre e necessariamente opressiva, exploradora e alienante

o   Por outro lado, a esquerda pós-moderna nega o progresso (assim como nega a racionalidade, a ciência, a objetividade etc.)

-        Apesar do que afirmam a direita e a esquerda, a noção de progresso não equivale à ampliação da noção de “igualdade”, nem mesmo, em rigor, à noção de liberdade

o   A noção de “igualdade” social é metafísica e tem um caráter destruidor; ela serve para destruir as instituições, as práticas e a ordem antiga, mas em si mesma é incapaz de criar qualquer coisa

§  Essa noção social de igualdade é de origem rousseauniana e foi retomada no século XIX pelo marxismo

o   As instituições, as práticas e as ordens supostamente criadas pela “igualdade” ou são instáveis (e autoritárias) ou, caso persistam e não sejam autoritárias, são inspiradas pela fraternidade e pelo altruísmo

§  As instituições criadas com o objetivo de estabelecer e manter a “igualdade” social e política resultam no autoritarismo, nas divisões e na ausência de “igualdade”

·         Para o Positivismo, a vinculação entre igualdade social e regimes liberticidas é necessária e não acidental

·         Além de liberticidas, os regimes que buscam criar e manter a igualdade social também, e não por acaso, buscam impor crenças oficiais (religião civil de Rousseau, marxismo nos países comunistas)

§  Apenas em duas situações é possível falar em “igualdade” no âmbito do Positivismo:

·         A igualdade perante a lei (a isonomia) e uma relativa igualdade de ensino são duas exceções à crítica positivista à igualdade

·         O disciplinamento social e moral da riqueza – com os aspectos correlatos de destinação social da riqueza; de responsabilidade individual e coletiva dos poderes sociais; de dignificação da pobreza – é algo que resulta no que se pode chamar, atualmente, de “eqüidade social”

o   A eqüidade social não se confunde, de maneira nenhuma, com a igualdade; mas, apesar disso, é esse o resultado concreto que se busca com as políticas públicas que, nominal, oficial e incoerentemente, afirmam realizar a “igualdade social”

·         Poderíamos atualmente acrescentar a essa lista as políticas sociais universalistas, como, no caso do Brasil, as políticas de seguridade social (saúde, desemprego, previdência social)

o   A liberdade em si mesma é a condição de realização do progresso; da mesma forma, ela é a condição da ordem

§  A liberdade tem que ser afirmada e respeitada, mas ela não pode ser entendida como um valor absoluto, pois, nesse caso, assumirá um caráter metafísico e meramente destrutivo ou de irresponsabilidade individual e coletiva (como no caso do liberalismo)

-        Para concluir, é importante reforçar e aplicar um aspecto: para o Positivismo, o progresso é o desenvolvimento da ordem:

o   Muitos dos aspectos julgados “progressistas” nos dias atuais deveriam ser encarados pura e simplesmente condições da ordem

§  Um ótimo exemplo de condições da ordem que, entretanto, são vistas como realização do progresso são os salários dignos

§  Essa confusão entre elementos da ordem e realização do progresso indica pelo menos duas coisas: (1) a confusão moral e intelectual prevalecente no mundo atual (em particular na direita e na esquerda) e (2) a degradação moral em que se encontra o mundo atual

o   O progresso que desrespeita a ordem não é progresso

§  Dois exemplos: (1) nos séculos XIX e XX os marxistas queriam, revolucionariamente, acabar com o Estado e a propriedade privada; (2) no século XXI, muitas propostas identitárias buscam desarticular a família

§  O “progresso” que desrespeita a ordem é sempre de caráter metafísico e, portanto, é destruidor e tem sempre em vista as instituições e as práticas absolutas de origem teológica

o   Como dizia Augusto Comte, mudanças rápidas (“revolucionárias”) nunca são profundas e, inversamente, mudanças profundas sempre são lentas

§  Forçar as mudanças sociais, especialmente no sentido de acelerá-las, com enorme freqüência torna essas mudanças instáveis e provoca reações sociais; para conter a instabilidade e as reações, o emprego da violência física (e, não raro, da censura) é necessário

§  Mudanças rápidas que se realizam sem grandes tensões e/ou sem grande instabilidade são mudanças que foram preparadas antes, com freqüência de maneira subterrânea

   

08 dezembro 2022

Comentários sobre o sobrenatural

No dia 4 de Bichat de 2022 (6.12.2022), após nossa prédica positiva (dedicada à leitura comentada da continuação da teoria do culto privado - quarta conferência do Catecismo Positivista), na parte das reflexões semanais, fizemos algumas reflexões sobre o "sobrenatural" (e, feitas as devidas adaptações, também às teorias da conspiração).

As anotações que elaborei e nas quais me baseei para a exposição reproduzidas abaixo.

É possível assistir ao vídeo dessas reflexões no canal Positivismo (aqui: l1nq.com/Predica) e no canal Apostolado Positivista (aqui: l1nq.com/Sobrenatural). No canal Apostolado Positivista, essas reflexões podem ser vistas a partir de 49' 10''.

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Comentários sobre o sobrenatural

 

-        A noção de sobrenatural é um problema ao mesmo tempo intelectual e afetivo

o   A parte intelectual exige maiores comentários que a afetiva

o   As partes intelectual e afetiva encontram soluções na Religião da Humanidade

§  O que se chama atualmente de “sobrenatural” é o resquício de teologia e metafísica em uma sociedade que se torna, felizmente, cada vez mais positiva e relativista

o   É possível incluir na forma de pensar própria ao “sobrenatural” também as chamadas “teorias da conspiração”

§  As teorias da conspiração, evidentemente, têm um caráter formalmente menos teológico que o “sobrenatural”; mas, ainda assim, mantêm e até acentuam, de maneira radical, a busca do absoluto, a rejeição do relativismo e as mais complicadas hipóteses e interpretações da realidade[1]

-        A noção de “sobrenatural” é contraditória: se algo existe, evidentemente é “natural”

o   Da mesma forma, a expressão “ciências ocultas”, que se aproxima da de “sobrenatural”, também não faz o menor sentido

o   A expressão “ciência oculta” não faz sentido em termos de objeto e de sujeito:

§  No que se refere ao objeto: se é ciência, o seu objetivo é desvelar, é revelar, ou seja, é acabar com o caráter “oculto” do objeto

§  No que se refere ao sujeito: a ciência é pública e, portanto, ela repele em princípio qualquer caráter exotérico ou esotérico

-        A noção de sobrenatural vincula-se ao âmbito do imaginário: é um desejo de que existam coisas que não se verifica empiricamente

-        Durante a teologia e até durante a metafísica, o sobrenatural é aceitável:

o   Seja porque, por definição, o sobrenatural corresponde à explicação disponível na teologia e, assim, o sobrenatural como que integre o mundo durante essas fases da Humanidade

o   Seja porque o ser humano não tem base empírica suficiente para avaliar o mundo, isto é, para avaliar o que existe ou não no mundo

o   Seja porque não se tem o conhecimento das leis naturais e, daí, explica-se o mundo por meio de vontades arbitrárias invisíveis

§  Nesse sentido, a invisibilidade das vontades aproxima o “sobrenatural” do “metafísico”

-        A manutenção atual da crença no “sobrenatural” vincula-se a diversos fatores:

o   Persistência da crença na teologia (de maneira implícita ou explícita)

o   Sensação de que o que existe efetivamente é “pouco” (ou, inversamente, sensação de que é limitador considerar que somente a “nossa” realidade existe de fato)

-        Os motivos que justificariam a crença atual no “sobrenatural”, portanto, são puramente subjetivos e rejeitam a realidade e a objetividade

o   Cada vez mais, eles referem-se à pura crença na existência do “sobrenatural”

o   É importante insistir: se algo existe de verdade, é natural e não há necessidade de nenhuma “crença” para que essa existência seja provada empiricamente

§  A ciência por si só é cética a respeito das afirmações quaisquer (em última análise é a navalha de Ockham) e, no que se refere ao “sobrenatural”, tal ceticismo chega no máximo ao agnosticismo

§  O ônus da prova cabe sempre a quem afirma algo, não a quem descrê da afirmação

o   Essa pura crença no sobrenatural é muito próxima da estrutura mental da do protestantismo e, em particular, da do protestantismo dos EUA

-        Mas a crença no sobrenatural não se justifica atualmente:

o   O ser humano já conhece muito do mundo para saber o que existe e o que não existe

§  É importante reiterar: o ônus da prova cabe a quem afirma!

§  É importante reiterar: a mera crença subjetiva, o mero “crer”, não é prova de nada (ou melhor: nada além de que o ser humano é capaz de manter crenças subjetivas)!

o   A realidade é maior e mais ampla do que qualquer pessoa consegue imaginar:

§  Não se trata, com essa afirmação, de propor que o “sobrenatural” existe, mas, bem ao contrário, trata-se de considerar que a exploração do que existe de verdade é sempre surpreendente

§  O conhecimento da realidade satisfaz muito a nossa imaginação:

·         Seja porque conhecer novas coisas com freqüência é surpreendente

·         Seja porque para explicar as coisas temos que usar muito a imaginação

·         Como sugere Christopher Hitchens (deus não é grande), muitas das explicações científicas propostas são tão ou mais surpreendentes que muitas daquelas propostas pela teologia e pela metafísica

o   As explicações científicas, ou melhor, as leis naturais rejeitam as vontades arbitrárias invisíveis

§  Vale lembrar que o sobrenatural é a persistência da crença em vontades arbitrárias invisíveis

§  Vale também lembrar que essas vontades arbitrárias são apenas a postulação-transposição de que uma realidade puramente subjetiva existe objetivamente

-        Os comentários até aqui foram basicamente de caráter intelectual; mas importa notar que, em termos morais, a crença no sobrenatural combina um quê de arrogância com um quê de insatisfação com os limites da realidade

o   Assim, em qualquer caso, a crença atual no sobrenatural é uma forma de imaturidade

-        Ainda assim, há um aspecto que convém também reconhecer: como o próprio Augusto Comte afirmava, a ciência por si só resseca o coração; as tendências materialistas da ciência tendem a tornar o mundo um ambiente radicalmente seco e “desértico”

o   Isso é o que a metafísica idealista alemã chamava de “desencantamento do mundo”

-        A Religião da Humanidade resolve – na verdade, evita – o problema do “desencantamento do mundo”:

o   Augusto Comte, após resolver diretamente o principal problema humano (obtenção da harmonia via disciplinamento altruísta do egoísmo), aprofundou suas reflexões e percebeu que o primado da afetividade na existência humana é um princípio realmente geral e que deve ser aplicado de maneira sistemática

o   Em outras palavras, a Religião da Humanidade estabelece que o mundo todo deve ser objeto (e sujeito!) da afetividade

o   O meio para a “afetivização” geral da realidade é a incorporação do fetichismo inicial ao positivismo final, na forma do “neofetichismo”

o   De modo mais específico, a Trindade Positiva estabelece subjetivamente que tudo no mundo é dotado de afetividade, com variados graus de atividade e de inteligência

§  Trindade Positiva: Grão Ser (Humanidade: inteligente, ativa e afetiva), Grão Fetiche (Terra: ativa e afetiva), Grão Meio (Espaço: só afetivo)



[1] A extensão destas reflexões sobre o sobrenatural às teorias da conspiração (feitas as devidas adaptações) tornou-se evidente (para mim, pelo menos) à medida que lia descrições de algumas dessas teorias, em particular vinculadas ao nazismo (cf. Conspirações sobre Hitler, de Richard Evans (Crítica, São Paulo, 2022)).

Por outro lado, em conversa pessoal, após a exposição destas anotações no dia 6.12.2022, nosso amigo Hernani Gomes da Costa sugeriu que as teorias da conspiração correspondem à metafísica própria à fase militar defensiva da Humanidade; além disso, ele notou que essas teorias atribuem aos “grupos secretos” um poder e uma eficácia social muito maior que aquela atribuída, na Idade Média, ao diabo – embora a função social supostamente desempenhada pelos grupos secretos seja idêntica à atribuída ao diabo.