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18 dezembro 2024

Espontaneidade e instintos dos animais, dignidade humana e animal

Espontaneidade e instintos dos animais, dignidade humana e animal

O trecho abaixo é belíssimo: essa é a melhor maneira de descrevê-lo. Escrito por Augusto Comte no capítulo 3 e final do v. 1 do Sistema de política positiva, de 1851, ele apresenta com clareza o estilo de Augusto Comte, que extrai múltiplas reflexões, inter-relacionadas, a partir de uma discussão inicial, o que ao mesmo tempo evidencia seu aspecto sintético, sua assombrosa cultura científica, histórica, filosófica, moral e artística e a aplicação simultânea de critérios morais, intelectuais e práticos em todas as suas apreciações.

O trecho abaixo, em particular, aborda as caraterísticas próprias aos animais e que, por extensão, são compartilhadas pelo ser humano; além disso, também se afirma que essas características realizam-se naturalmente, independentemente de estímulos exteriores. Assim, por um lado tem-se os instintos; por outro lado, tem-se a espontaneidade desses instintos. A caracterização do funcionamento dos instintos não se encontra no trecho abaixo (em particular contra uma interpretação muito comum – aliás, comum mesmo hoje em dia – segundo a qual a mera existência dos instintos implica comportamentos específicos e atos concretos[1]); a afirmação dos instintos no trecho abaixo é importante para afirmar, por um lado, que eles são compartilhados, em diferentes graus, com os seres humanos e, por outro lado, que eles são espontâneos. A espontaneidade dos instintos, por sua vez, é afirmada para combater a concepção mecanicista dos animais (que, mais uma vez, com freqüência e mesmo nos dias atuais, é estendida para os seres humanos), segundo a qual o comportamento animal resume-se a reações mecânicas, robóticas, a impulsos ambientais.

A extensão dos instintos aos seres humanos e a afirmação da espontaneidade dos instintos (contra a hipótese mecanicista) têm como conseqüência o entendimento de que o ser humano existe em linha de continuidade com o conjunto dos seres vivos e, de maneira mais ampla, com a realidade cósmica; em outras palavras, o ser humano não existe sozinho, isolado e alienado do mundo, em um mundo que teria sido criado apenas para ele e para seu usufruto absoluto. Uma outra conseqüência das reflexões anteriores é que a afirmação da linha de continuidade entre o ser humano e os animais valoriza os últimos, que são “nossos companheiros de misérias e de trabalhos”.

Descartes não era contrário aos animais nem aos seres humanos, não há dúvida; entretanto, suas concepções mecanicistas acabaram tendo o efeito de desenvolver concepções, sentimentos e práticas contrárias ao respeito e à dignidade de seres humanos e animais. Aliás, antes de Descartes, fundamentando sua concepção e tendo ecos e atualizações bem posteriores, a hipótese mecanicista baseia-se na famosa separação entre “corpo e alma”, de origem teológica; é tal separação que justifica os “privilégios absolutos da nossa espécie estimulados pelo orgulho e pela ignorância”. De acordo com essa concepção, apenas o ser humano teria alma (ou inteligência, ou sentimentos, ou consciência etc.); é isso que tornaria o ser humano uma espécie única – e, mais importante nessa concepção, uma espécie privilegiada. Os privilégios humanos incluiriam, então, uma existência à parte do mundo, sem vínculos outros além da mera vida no mundo e do usufruto dos seus recursos. Essa mentalidade, de origem teológica e mantida sob as dissoluções metafísicas, vige ainda hoje; é ela que fundamenta o negacionismo climático de evangélicos estadunidenses, assim como ela integra a filosofia mais ampla dos pensadores da metafísica alemã neokantiana (como W. Dilthey e Max Weber); a hipótese mecanicista foi retomada no século XX pelo zoólogo (ou “etólogo”) B. Skinner e em seguida estendida por ele aos seres humanos. Por outro lado, no que se refere aos atributos humanos que são compartilhados com os animais, a crítica de Augusto Comte e o elogio aos animais foram retomados nos últimos anos pelo “etólogo” e filósofo neerlandês Frans de Waal[2] (embora esse autor, como sói ocorrer nos ambientes universitários, lamentavelmente não tenha a menor consciência disso).

*   *   *

Todas as principais características que o orgulho e a ignorância erigem em privilégios absolutos de nossa espécie apresentam-se também então, em um estado mais ou menos rudimentar, entre a maior parte dos animais superiores. Ali mesmo onde eles são menos desenvolvidos, sua apreciação normal, ainda que com freqüência difícil, torna-se indispensável para sistematizar a verdadeira concepção da animalidade. Sem esses diversos atributos interiores, cujo conjunto constitui a vaga noção de instinto, nós não podemos compreender nenhuma existência animal. Pois seria então necessário supor sempre direta a relação entre as impressões exteriores e as reações musculares. Ora, essa hipótese destruiria essencialmente a espontaneidade animal, que consiste sobretudo em ser determinado por motivos interiores. Isso seria, no fundo, restabelecer o automatismo cartesiano, que, excluído pelos fatos, vicia ainda, sob outras formas, as altas teorias zoológicas, falto de ter sido sistematicamente discutido. Apenas o regime enciclopédico emanado da nova religião [a Religião da Humanidade, ou seja, o Positivismo] poderá retificar definitivamente essas graves aberrações, que atrapalham ao mesmo tempo nossos sentimentos e nossos pensamentos. Na ordem intelectual, elas rompem em sua origem a cadeia fundamental que une a humanidade ao conjunto das existências reais. Mas sua influência moral é ainda mais prejudicial, ao justificar o desprezo, a ingratidão e mesmo a crueldade a respeito dos companheiros de nossas misérias e também de nossos trabalhos. A verdadeira religião deverá então reparar cuidadosamente esses funestos resultados do regime teológico-metafísico após a queda do politeísmo. Mais real e mais completo que o fetichismo, o Positivismo saberá ainda melhor que ele afirmar a dignidade animal.

(Augusto Comte, Sistema de política positiva, Paris, L. Mathiaz, 1851; v. 1, cap. 3 (“Introdução direta, naturalmente sintética, ou Biologia”), p. 602.)



[1] Reflexões nesse sentido podem ser lidas no Sistema de filosofia positiva, v. 3, lição 45; algumas delas foram traduzidas por Teixeira Mendes em seu belíssimo volume O ano sem par (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 5-6, 9). Esses trechos, por sua vez, foram publicados em nosso blogue, na postagem intitulada “Instintos e genética não são fatalidades”, disponível aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2024/05/instintos-e-genetica-nao-sao-fatalidades.html.

[2] Um livro de Waal que apresenta de maneira clara reflexões nesse sentido é Somos inteligentes o bastante para saber quão inteligentes são os animais? (Rio de Janeiro, Zahar, 2022).

27 novembro 2024

Estréia da leitura comentada do "Apelo aos conservadores"

No dia 23 de Frederico de 170 (26.11.2024) fizemos nossa prédica positiva, estreando a leitura comentada do Apelo aos conservadores, de Augusto Comte. Essa obra foi publicada em 1855; a nossa leitura baseia-se na tradução feita por Miguel Lemos e publicada em 1899.

Antes da leitura comentada do Apelo aos conservadores, abordamos alguns outros assuntos:

- Comentários sobre o livro Somos inteligentes o bastante para saber quão inteligentes somos?, de Frans de Waal

- Leitura do artigo "O identitarismo contra a laicidade", de nossa autoria e publicado no jornal Monitor Mercantil em 11.11.2024

Para iniciarmos a leitura comentada do Apelo aos conservadores, fizemos várias observações gerais, de caráter introdutório.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://www.youtube.com/watch?v=KfwSavoN5ks) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://www.facebook.com/IgrejaPositivistaVirtual/videos/1327352891610347).

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

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Leitura comentada do Apelo aos conservadores

(23 de Frederico de 170/26.11.2024) 

1.       Abertura

2.       Exortações iniciais

2.1.    Sejamos altruístas!

2.1.1. Em particular: como haverá a Black Friday nesta semana, convém não se deixar levar pelo consumismo; no caso de aproveitar promoções, dar preferência a produtos locais, que preservem o ambiente, estimulem a dignidade dos trabalhadores

2.2.    Façamos orações!

2.3.    Façam o Pix da Positividade! (Chave pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

3.       Efemérides:

3.1.    Dia 21 de Frederico (24 de novembro): transformação do Alte. Henrique Oliveira (2002)

3.2.    Dia 22 de Frederico (25 de novembro): nascimento de Miguel Lemos (1854)

3.3.    Dia 28 de Frederico (1º de dezembro): nascimento de Décio Villares (1851)

3.4.    Lembrança de que na semana passada tivemos dois belíssimos eventos com positivistas ortodoxos:

3.4.1. Celebração do Dia da Bandeira, com Hernani Gomes da Costa

3.4.2. Live AOP com Sebastiano Fontanari: “Relato de uma viagem a Paris”

3.4.3. Essas exposições demonstram, de maneira concreta, como é que o Positivismo conjuga o estímulo do altruísmo, o desenvolvimento da inteligência e a atividade prática; dessa forma, elas servem como exemplo de o que é o Positivismo e também atuam como forma de retemperar, de recalibrar nosso espírito em favor do altruísmo e da positividade

4.       Comentários sobre o livro Somos inteligentes o bastante para saber quão inteligentes somos?, de Frans de Waal (Rio de Janeiro, Zahar, 2021):

4.1.    O autor pesquisa comportamento animal nos Países Baixos e nos Estados Unidos; ele é “etologista”

4.2.    O livro é uma exposição filosófica da área de Etologia; embora tenha um forte caráter de divulgação científica, no fundo é mesmo uma reflexão filosófica

4.3.    O autor apresenta a história recente, os métodos, as questões, os limites e as possibilidades das pesquisas sobre comportamento animal

4.4.    Os comentários do autor centram-se nos chamados animais superiores: aves e mamíferos (especialmente os primatas)

4.5.    O autor concorda com o Positivismo (embora não tenha consciência disso), discorda de muitos métodos e teorias do século XX e, daí, indica que houve um retorno ao Positivismo após um longo desvio materialista e de presunção de que o ser humano é totalmente único no mundo

4.6.    De maneira específica e que notavelmente confirma o Positivismo, o autor evidencia que a perspectiva gradualista é a correta, contra a “saltacionista”, ou seja, há uma grande continuidade entre os animais superiores e o ser humano, em termos de consciência, inteligência, intencionalidade, altruísmo, empatia etc.; além disso, o autor deixa claro que o pensamento é antes imagético e só depois é lingüístico

4.7.    Esse gradualismo evidencia por um lado que o ser humano está ligado ao ambiente em que surgiu (e que, assim, ele não está descolado nem infenso às leis naturais inferiores) e, por outro lado, que são erradas as concepções (explícitas ou implícitas) de origem teológica que afirmam que o ser humano é radicalmente diferente de todos os animais (e que, inversamente, os demais animais são mecânicos, puramente instintivos, egoístas, inconscientes, irracionais etc.)

4.8.    É fácil perceber que essas concepções têm profunda importância para a Biologia, mas também para a Sociologia e a Moral – e, daí, também conseqüências práticas –, seja ao calibrar o entendimento do ser humano no mundo, seja ao modificar nossas concepções e nossos comportamentos em relação aos animais

4.9.    Devido à importância moral, intelectual e prática de reflexões nesse sentido, Augusto Comte incluiu na Biblioteca Positivista o livro Cartas sobre os animais (1781), de Georges Leroy (1723-1789): se fôssemos procurar um equivalente contemporâneo do livro de Leroy, poderíamos indicar exatamente o de Frans de Waal

4.9.1. Leroy também está no Calendário Positivista: ele é adjunto do dia 13 de Descartes, na semana de Francisco Bacon, juntamente com Cabanis

5.       Leitura do artigo “O identitarismo contra a laicidade”

5.1.    Publicado no jornal carioca Monitor Mercantil em 11 de novembro de 2024 (disponível aqui e aqui)

5.1.1. A leitura desse artigo é importante porque expõe – com as limitações impostas por ser um texto curto e de polêmica, é verdade – uma conseqüência daninha central do identitarismo, conseqüência que, todavia, não por acaso não é explorada habitualmente mas que tem efeitos concretos enormes

5.1.2. Além disso, a rejeição identitária da laicidade do Estado expõe muitos dos defeitos morais, intelectuais e práticos do identitarismo e seu caráter violentamente metafísico e, daí, antipositivo

5.2.    Antes de mais nada, é necessário afirmar com todas as letras: a crítica ao identitarismo não significa aceitação de injustiças, violências, discriminações

5.2.1. A rejeição de violências, crimes etc. deveria ser evidente, na medida em que todas as referências que adotamos para criticar o identitarismo são de autores que também rejeitam violências, crimes, discriminações etc.

5.2.2. A mera necessidade de termos que reafirmar essas rejeições demonstra o quanto o ambiente moral, intelectual e político está poluído – e, convém reforçar, poluído em grande medida devido precisamente à ação do identitarismo

5.2.3. Também importa lembrar: o identitarismo adota uma postura de separação dicotômica do mundo (“nós” contra “eles”), em que “eles” são sempre os outros, os não identitários, que sempre perseguem, discriminam, exploram, violam e violentam a “nós”: para o identitarismo, a mera discordância, para não falar da crítica, é por si só adesão à violência

5.3.    Eis o artigo:

O identitarismo contra a laicidade

Vivemos em uma república. Embora essa afirmação banal não seja muito levada a sério atualmente, ela implica grandes ideais morais, sociais e políticos, começando pela dedicação de todos ao bem comum e pela subordinação da política à moral. Sem esgotar aqui o conteúdo da república, podemos simplificar indicando que um dos aspectos institucionais básicos das repúblicas é a laicidade do Estado. Isso implica uma dupla vedação:

1)   por um lado, o Estado não pode ter, manter ou beneficiar doutrinas específicas e, além disso, não pode condicionar o acesso a seus serviços (e, portanto, não pode condicionar a cidadania) à adesão dos indivíduos a essas doutrinas;

2)   por outro lado, as várias igrejas e os grupos promotores de doutrinas não podem usar o Estado para fazer valer suas concepções (ou seja, não podem impor suas doutrinas).

Essa dupla vedação baseia-se no respeito à dignidade e à autonomia individual e na consideração de que questões de foro íntimo só podem ser decididas intimamente; a isso se soma o fato de que o Estado é incapaz e ilegítimo para decidir a respeito dessas questões de foro íntimo e que a imposição de crenças também é errada e ilegítima. Geralmente se considera a laicidade em relação a igrejas ou cultos teológicos, mas ela está bem longe de limitar-se a eles, pois inclui doutrinas político-partidárias, filosofias variadas e até doutrinas especificamente “universitárias”. Assim, em si mesma a laicidade não é atéia (doutrina que nega a existência das divindades) nem anticlerical (o combate às igrejas).

A laicidade e a república exigem que as políticas públicas devem ser universalistas, ou seja, devem atingir todos os cidadãos. Toda sociedade tem suas clivagens, algumas voluntárias (religiosas, filosóficas, morais, culturais, políticas, recreativas, esportivas, de locais de moradia etc.) e outras involuntárias (classistas, sexuais, étnicas etc.); mas essas clivagens devem subordinar-se à universalidade da república, a partir do primado da fraternidade universal. Dessa forma, embora sempre existam agrupamentos particulares, o universalismo republicano rejeita os particularismos e os guetos – sejam guetos impostos sobre e contra os grupos sociais minoritários, sejam os guetos criados pelos grupos minoritários contra as sociedades maiores.

Essas características parecem intuitivamente corretas, mas elas têm sido duramente postas à prova, ou melhor, elas têm sido desafiadas, criticadas e repudiadas nos últimos anos pelo identitarismo. Em discussões acadêmicas os identitarismos são claros na recusa aos traços acima – dizem com todas as letras que “o universalismo é uma mentira” –, mas, para o grande público, sua ação é mais enviesada. Em vez de pôr-se direta e claramente contra os valores e as práticas republicanas, o identitarismo afirma os seus próprios valores, corroendo e corrompendo a vida política. Mas quais são os valores e as práticas do identitarismo?

Não há um único identitarismo; existem muitos, que tendem sempre, cada vez mais, a multiplicar-se. O identitarismo nega o universalismo cidadão e fraterno em prol da multiplicidade de exclusivismos e particularismos, minorias que se vêem como perseguidas pela “maioria”. Como são, ou como se vêem, como perseguidas, essas minorias adotam o ressentimento sistemático como sentimento político, pessoal e moral básico, buscando estabelecer sistematicamente a culpa da “maioria”; para isso exigem que o Estado atenda apenas ou prioritariamente as suas próprias demandas e que atue na difusão da mentalidade identitária, que passa a tornar-se doutrina oficial. A partir da teoria do “reconhecimento”, o objetivo do Estado torna-se reafirmar constantemente a existência desses grupos minoritários, perseguidos e ressentidos – e, claro, satisfazê-los e prover-lhes “reparações”. Participar desses grupos torna-se então, progressivamente, condição de acesso ao Estado e à cidadania.

Para evitar mal-entendidos, importa sermos claros: em inúmeras situações concretas as reclamações fundamentais dos grupos identitários são justificadas. Entretanto, se muitas situações concretas são de fato injustas, elas são respondidas da pior maneira possível, estimulando sentimentos, idéias, hábitos, práticas e instituições desastrosos.

O identitarismo pode ser de esquerda ou de direita. Pelo menos no Brasil, os identitarismos de esquerda são os mais conhecidos (ou mais estridentes): racialista, de gênero, de opção sexual, étnico etc.; mas há também os identitarismos de direita, vinculados especialmente à teologia (cristã) e a grupos étnicos. Tanto uns quanto outros dizem-se perseguidos e usam o Estado como instrumento para impor suas concepções: nada mais distante de dignidade, fraternidade, liberdade, autonomia.

Em face dessas características, percebe-se com clareza que o identitarismo encara a laicidade no mínimo como uma instituição inútil, no máximo um estorvo a ser destruído. Se o Estado deve estar a serviço dos grupos ressentidos em sua busca de reparações e se o reconhecimento do ressentimento-e-culpa é a mentalidade que orienta a vida pública, é claro que a laicidade deixa de ser importante, de ser útil, de fazer sentido.

Entre os identitários de direita, vinculados de modo geral às teologias, a laicidade deve ser simplesmente ignorada ou desprezada: o Estado deve estar a serviço da difusão do “cristianismo” (geralmente evangélico, mas também católico), sendo que a laicidade é vista como um instrumento dos valores da “esquerda” ou do afastamento da divindade (o que, para a direita teológica, dá na mesma). Temos então os cultos privados em espaços públicos; as referências obrigatórias às divindades e a leitura da Bíblia em espaços e órgãos públicos; os feriados teológicos etc.

Entre os identitários de esquerda, a situação é um pouco mais ampla. No fundo, a esquerda adota os mesmíssimos procedimentos que a direita, criando feriados particularistas, impondo a leitura de doutrinas identitárias etc. Mas, embora também ignore ou despreze a laicidade, quando convém a esquerda consegue lembrar-se dela, para um anticlericalismo tópico. Isso, aliás, é o que alguns chamam de “seqüestro da laicidade”.

Em meio a esses particularismos exclusivistas ressentidos, não há espaço para a fraternidade, para uma verdadeira vida em comum, para a dedicação ao bem comum. Simplesmente não há “bem comum”, que é denunciado como hipocrisia “anticristã”, ou “falocêntrica”, ou “heteronormativa”... há apenas ódio, ressentimento, particularismo.

Considerando o amplo apoio que os identitarismos têm no Brasil atual, à direita e à esquerda, não é de estranhar que nem a laicidade nem, de modo mais amplo, a república sejam levadas a sério. Daí resultam os desastres sociais, políticos, morais e intelectuais que todos vemos todos os dias. É escandaloso e desastroso que os identitarismos sigam tendo apoio no país. Urge retomar a república, a laicidade e a fraternidade, contra o identitarismo, o particularismo e o ressentimento.

6.       Leitura comentada do Apelo aos conservadores

6.1.    Algumas considerações iniciais:

6.1.1. Há duas semanas (na prédica do dia 9 de Frederico de 170 (12.11.2024)) concluímos a leitura comentada do Catecismo positivista

6.1.2. Como as prédicas são gravadas, em certo sentido não há necessidade de recomeçar os comentários sobre o Catecismo; dessa forma, podemos considerar a leitura comentada de outras obras de A. Comte (ou dos positivistas)

6.1.3. Surge então a questão: qual obra seria comentada na seqüência?

6.1.4. Sem entrar em detalhes sobre as justificativas para cada um destes critérios, parece-nos que devemos seguir os seguintes parâmetros:

6.1.4.1.             Preferência por obras de Augusto Comte

6.1.4.2.             De preferência, obras em português ou em espanhol

6.1.4.3.             De preferência, obras da fase religiosa do Positivismo

6.1.4.4.             Obras que não sejam demasiadamente grandes (ou seja, livros com até 250 páginas)

6.1.5. Em face dos critérios acima, a escolha do Apelo aos conservadores pareceu-nos bastante natural

6.1.5.1.             Temos a impressão de que a nossa presente iniciativa é a primeira leitura comentada e pública do Apelo já feita

6.2.    Comentários sobre o Apelo:

6.2.1. Enquanto o Catecismo positivista foi escrito como um “catecismo”, isto é, como uma exposição (1) geral e (2) sistemática do (3) conjunto da (4) Religião da Humanidade, (5) voltada para o proletariado e para as mulheres, (6) na forma de uma diálogo, o Apelo aos conservadores é (1) uma exposição monológica, (2) com fins políticos, (3) dirigida aos patrícios (ou seja, aos líderes políticos e industriais), dos (4) aspectos da Religião da Humanidade que têm conseqüências mais diretamente políticas

6.2.1.1.             Como nosso amigo Hernani G. Costa sempre realça, é necessário insistir em uma idéia que o materialismo e o ceticismo contemporâneos rejeitam: não é possível entender a política proposta pelo Positivismo isoladamente da Religião da Humanidade

6.2.1.1.1.                   Aliás, o desejo de separar a política dos valores e das concepções gerais de fundo é precisamente um dos problemas contemporâneos, é precisamente um dos sintomas da anarquia contemporânea

6.2.1.2.             A religião estabelece parâmetros morais, intelectuais e práticos para a existência humana e, portanto, orienta a política, estabelece as suas metas, as suas possibilidades e os seus limites

6.2.1.2.1.                   Outro lembrete: a religião, conforme o Positivismo estabelece, não é sinônima de “teologia”

6.2.2. O Catecismo positivista foi escrito em 1852 e o Apelo, em 1855: o Catecismo, então, foi escrito durante a redação da Política positiva e serviu como consolidação e antecipação de muitas perspectivas de que Augusto Comte ocupava-se naquele período; o Apelo, por outro lado, consiste tanto em (1) uma exposição com fins de propaganda do Positivismo quanto um (2) manifesto político da doutrina quanto, por fim, (3) uma aplicação concreta do Positivismo: dessa forma, não por acaso foi escrito após o término da Política

6.2.2.1.             O Discurso sobre o conjunto do Positivismo, escrito em 1848 e reeditado em 1851, também apresenta um caráter de exposição intelectual e religiosa com manifesto político

6.2.3. É necessário ter clareza, então, de que o Apelo, na medida em que é um manifesto, dirige-se não a quaisquer pessoas ou grupos, mas a um grupo específico: são os líderes políticos e industriais que tendem para a defesa da ordem (e que tendem para a defesa da ordem até mesmo devido à sua atuação como líderes políticos e industriais): são esses os “conservadores” a que Augusto Comte apela

6.2.3.1.             O Apelo, portanto, adota uma linguagem e um formato adequados ao público a que se dirige

6.2.3.2.             Essa adequação do formato (mas não do conteúdo) é um procedimento que todos empregam o tempo todo e que Augusto Comte adotou em suas diversas obras, seja por exemplo também no Catecismo positivista, seja em apelos a personalidades e autoridades (socialistas e anarquistas, teológicos, o tsar russo, um antigo Grão-Vizir otomano, o Geral dos Jesuítas)

6.2.4. O próprio texto explica o que são os “conservadores”, mas vale a pena antecipar um pouco: esses conservadores são os cidadãos que se preocupam com a ordem social mas reconhecem ao mesmo tempo a necessidade do progresso; esses conservadores, então, empiricamente buscam conciliar a ordem e o progresso mas, devido à ausência de doutrina adequada, descambam para a retrogradação e a teologia: daí a oportunidade e a necessidade do Positivismo

6.3.    Três últimas observações preliminares:

6.3.1. Uma versão digitalizada da tradução brasileira desse livro, feita por Miguel Lemos e publicada em 1899, está disponível no Internet Archive: https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores

6.3.2. O livro tem um longo prefácio, que, por sua vez, tem vários anexos: esses documentos são importantes por si sós, mas tratam de questões um pouco (só um pouco!) distintas das do Apelo; por esse motivo, não as abordaremos em nossa leitura comentada

6.3.3. A estrutura de capítulos do Apelo é a seguinte:

Prefácio (página v)

Apêndice do prefácio (p. xxiv)

1º Circular sobre o subsídio positivista (p. xxiv)

2º Programa de um curso de filosofia positiva (p. xxxiii)

Introdução: advento dos verdadeiros conservadores (p. 1)

Primeira parte: doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores (p. 30)

Segunda parte: conduta dos conservadores em relação aos retrógrados (p. 83)

Terceira parte: conduta dos conservadores em relação aos revolucionários (p. 122)

Conclusão: missão peculiar aos verdadeiros conservadores (p. 163)

Apêndice (p. 203):

Índice onomástico do calendário histórico (p. 207)

Notas do tradutor (p. 223)

Índice alfabético (p. 229)

6.4.    Passemos, então, à leitura comentada do Apelo aos conservadores!

7.       Exortações finais

7.1.    Sejamos altruístas!

7.2.    Façamos orações!

7.3.    Façam o Pix da Positividade! (Chave pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

8.       Término da prédica

08 maio 2024

Apelo altruísta pelo Rio Grande do Sul

Apelo altruísta pelas irmãs e pelos irmãos do Rio Grande do Sul, atingidos duramente por chuvas inclementes no início de maio de 2024.

Em nome da Humanidade, apelamos para que todos sejam altruístas, com doações de gêneros alimentícios e de primeira necessidade (arroz, feijão, leite, açúcar, farinha, sabonete, xampu, vassoura, rodo etc.) e/ou doações financeiras, para a Igreja Positivista do Rio Grande do Sul (chave pix 30.520.007/0001-03) ou para o governo do estado do Rio Grande do Sul (chave pix 92.958.800/0001-38).

Gravamos uma breve mensagem para este apelo: https://www.youtube.com/watch?v=h0yUAqF-ti4&t=3s 



23 abril 2024

Ideal vs. real: como lidar?

No dia 2 de César de 170 (23.4.2024) realizamos a prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos a oposição entre o ideal e o real e como agir considerando a distância entre ambos.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/iKkQa) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/snJFS). O sermão começou aos 48 min 30 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *

O ideal vs. o real: como lidar? 

-        A questão desta semana é ao mesmo tempo bastante simples e extremamente importante: como lidar com a oposição entre o ideal e o real?

o   Esse tema foi sugerido pelo nosso amigo Hernani G. Costa, nos seguintes termos: “O equilíbrio entre o preenchimento do ideal e a frustração de quando não o realizamos. Como agir diante disso? Como conjugar a vida vivida em nome de um ideal, diante de uma realidade que por tantas vezes parece desmenti-lo?”

-        Essa questão apresenta muitos aspectos, vários deles à primeira vista insuspeitos:

o   Em um primeiro lugar, há o aspecto moral (“psicológico”), em relação a como lidar com a distância entre o que se deseja e o que se obtém

o   Mas o aspecto moral implica o conhecimento da realidade (científico)

o   Também há as questões relativas à idealização da realidade, ou seja, são aspectos artísticos

o   Há também a idealização no sentido do que é bom, ou seja, é um outro aspecto moral

o   Tudo isso se reúne nas leis da filosofia primeira, em particular na primeira lei, a chamada “lei-mãe”

-        Comecemos pela oposição entre o real e o ideal, isto é, a oposição entre a realidade vivida e o que gostaríamos que ocorresse

o   Duas ou três observações iniciais:

§  Trata-se verdadeiramente de uma oposição entre o real e o ideal

§  Os comentários abaixo concentrar-se-ão no comportamento individual de cada um de nós

§  Além disso, concentrar-nos-emos nas dificuldades enfrentadas e, ainda mais, nos fracassos que por vezes temos que enfrentar

o   Todos vivemos enfrentando os desafios da vida; esses desafios são “desafios” porque nos impõem dificuldades, que devem ser enfrentadas, ou seja, que têm que ser enfrentadas: todos temos contas para pagar, por isso todos temos que trabalhar; temos contas para pagar porque temos necessidades que têm que ser satisfeitas: alimentação, moradia, saúde, transporte, relacionamentos, previdência, divertimentos

o   Os desafios que indiquei acima são todos eles materiais; mas é claro que viver é muito mais que só se preocupar com questões materiais; como sabemos, sem negar a importância desses aspectos, viver significa acima de tudo ter ideais, planos, projetos; significa viver orientado por valores e concepções do que é bom e belo

§  É importante dizê-lo com todas as letras para termos clareza a respeito: a vida orientada por valores e idéias existe por si só, independentemente das preocupações materiais e, na verdade, com freqüência até em oposição a elas

§  Citamos inicialmente as preocupações materiais apenas porque elas são fáceis de entender e porque elas realmente se impõem a todos

§  Mas é claro que há toda uma série de outras dificuldades na vida: entendimento falho da realidade; necessidade de cooperação com outras pessoas; disposições pessoais; acidentes tecnológicos; desastres naturais etc.

o   O que se apresenta, então, é uma oposição entre o que nós, como seres humanos, desejamos e aquilo que, enfrentando os desafios e as dificuldades, conseguimos realizar: às vezes conseguimos, às vezes fracassamos

o   Como se diz, o sucesso tem muitos pais e mães, mas o fracasso é sempre órfão: ninguém gosta de fracassar, seja porque evidentemente o fracasso conduz a um sentimento muito desagradável, seja porque ninguém gosta de assumir a responsabilidade pelo fracasso

§  O fracasso é desagradável; com freqüência sentimos a sensação de derrota, de incompetência, de incapacidade, até mesmo de merecimento no fracasso

o   Para lidarmos com isso e, de qualquer maneira, para obtermos o sucesso, temos que nos preparar das mais diferentes maneiras:

§  Temos que lembrar que cada pessoa é uma pessoa, cada empreendimento é um empreendimento diferente, cada situação é uma situação específica

§  É necessário conhecer a realidade, (1) para sabermos se nosso projeto é realizável; em seguida, (2.1) para sabermos quais as condições e as possibilidades de sucesso; (2.2) inversamente, quais as condições e as possibilidades de fracasso)

§  Assim, a partir do conhecimento da realidade e, de qualquer maneira, é necessário estarmos preparados, antecipadamente, para maiores dificuldades ou mesmo para um eventual fracasso

·         Essa preparação é tanto material quanto emocional

§  Caso fracassemos, é sempre bom e sempre importante lembrarmos a ótima observação de Winston Churchill: “O sucesso nunca é definitivo e o fracasso nunca é fatal”; em outras palavras, devemos estar sempre preparados para reerguer-nos, ou seja, devemos ter a resiliência

§  Todos podemos, e até devemos, lamentar a derrota durante um certo período de tempo; quanto mais importante essa derrota, maior o tempo despendido; mas o luto não pode durar para sempre e, no final das contas, trata-se de uma questão de amadurecimento: quem é mais maduro passa mais rapidamente pelo luto

·         Na verdade, inversamente, em certo sentido o amadurecimento consiste na capacidade de cada um de lidar com as dificuldades e com os fracassos, não se deixando abalar em demasia com eles, sabendo olhar para os fracassos com serenidade (o que não equivale a olhá-los com satisfação), superando-os com maior facilidade e seguindo em frente

§  Quando acontece o fracasso, ele pode ter ocorrido devido a muitos motivos: falta de preparo intelectual, falta de preparo moral, falta de preparo técnico, falta de cooperação, eventos inesperados

§  É sempre importante avaliar cuidadosamente cada uma dessas possibilidades, para (1) determinar os diversos fatores que conduziram ao fracasso: com isso, (2) é possível determinar as responsabilidades; (3) em uma eventual nova tentativa, esses fatores têm que receber mais atenção; finalmente, (4) conseguir determinar as diversas responsabilidades integra o processo de luto e, daí, o de resiliência e amadurecimento

-        Em suma, do ponto de vista estritamente individual, na oposição entre o ideal e o real, o problema que nos conduz a considerar o “como lidar?” é como lidar com as dificuldades e, em particular, com o fracasso

o   A resposta para isso é tão simples de enunciar quanto difícil de executar: preparar-se o máximo possível com antecedência em termos morais (“psicológicos”), intelectuais e práticos e, no caso do fracasso, saber avaliar os fatores que conduziram ao fracasso

o   O entendimento intelectual ajuda na preparação moral prévia e, depois, no caso de fracasso, auxilia na resiliência

-        Como sugerimos no início, os comentários acima apresentam parte da questão; modestamente fizemos observações que seriam um começo de apoio: mas foi apenas um começo

o   Vejamos agora outros aspectos do tema – aspectos que são fundamentais de serem afirmados em conjunto com as observações acima, a fim de lidar-se de maneira adequada (digna, madura, eficiente) com as dificuldades e os fracassos na vida

o   Esses outros aspectos são: (1) aspectos intelectuais e científicos; (2) questões de moralidade; (3) aspectos artísticos

-        Qualquer projeto exige que conheçamos a realidade:

o   O conhecimento da realidade, seja abstrato, seja concreto, é condição fundamental para qualquer atividade e, bem vistas as coisas, para a vida

o   A realidade, nesse caso, consiste principalmente nas condições objetivas do mundo, ou seja, aquelas que não dependem da vontade humana (e que, com freqüência, opõem-se à vontade humana)

§  Para evitar confusões e mal-entendidos: as condições sociológicas gerais e também as morais integram, no presente caso, as condições objetivas

o   Como vimos antes, é necessário conhecer a realidade para podermos determinar as possibilidades de êxito de qualquer projeto e, inversamente, as suas possibilidades de fracasso; com isso, podemos preparar-nos em termos práticos (reunindo os elementos necessários para o sucesso do empreendimento) e em termos morais (ficando de sobreaviso para as dificuldades e, ainda mais, para um eventual fracasso – e, assim, criando uma espécie de “almofada” moral)

o   O conhecimento abstrato da realidade consiste nas leis naturais, isto é, das relações necessárias de sucessão ou coexistência dos fenômenos

§  O conhecimento da realidade (abstrato e concreto) conduz a uma idealização da realidade, basicamente em termos apenas intelectuais: o “ideal”, aí, é uma elaboração intelectual e simplificada da realidade

o   Esse conhecimento tem que estar ligado sempre a uma regra prática de sabedoria, que consiste em determinar o que podemos e o que não podemos fazer; ou, dito de outra forma, o que podemos e o que não podemos mudar

§  Na verdade, a determinação do que podemos e do que não podemos mudar antecede sempre a proposição de qualquer projeto

§  Em relação ao que podemos mudar, seguindo as leis naturais, é necessário avaliar se é moralmente correto; no que se refere ao que não podemos mudar, a única possibilidade é a digna resignação

·         Em outras palavras, a digna submissão (a digna aceitação) é sempre o único caminho possível tendo em vista as leis naturais, seja reconhecendo as possibilidades de atuação, seja reconhecimento a impossibilidade de ação

§  Inversamente, não faz sentido desejar algo que vai contra as leis naturais: desejar algo francamente impossível implica uma vontade caprichosa e o fracasso certo

·         A “resiliência” nesse caso consiste não em retomar o projeto, mas em abandoná-lo e retomar a vida com outros objetivos

·         A maturidade, nesse caso, consiste em reconhecer a inutilidade dos esforços e a necessidade de mudar de objetivos: não há dúvida de que isso pode exigir maiores esforços, que, por sua vez, aumentarão o “grau” de maturidade

-        Também há os vários aspectos relativos à moralidade dos ideais

o   Tudo o que comentamos acima pressupõe que os nossos objetivos são moralmente corretos

o   Mas é claro que a avaliação moral deve sempre ser feita – e, além disso, deve sempre ser feita antes de qualquer outra avaliação

o   A moralidade das ações é sempre dada pelo altruísmo: melhorará o bem-estar? Não prejudicará? Estimulará o altruísmo? Não estimulará o egoísmo?

§  Vale notar que a “bondade”, aí, consiste no altruísmo e que a “maldade” consiste no estímulo direto e único do egoísmo (incluindo o sadismo); não há que falar em “bondade” e “maldade” como se elas existissem por si sós, como abstrações personificadas (ou seja, metafísicas)

o   Os valores e as idéias que são moralmente corretos – ou seja, que estimulam e/ou realizam o altruísmo – podem tornar-se “ideais”, ou seja, concepções (1) abstratas da realidade que (2) indicam os bons caminhos a seguir

§  É importante insistir: não é porque algo é factível que também é moralmente desejável e que, portanto, deve ser feito

o   É igualmente importante lembrar que, no caso de projetos moralmente corretos, com freqüência um fracasso momentâneo não pode impedir a continuidade dos esforços: em outros termos, um fracasso momentâneo não nega nem invalida o ideal

§  Isso se aplica às dificuldades, aos desastres e também às injustiças da vida

§  A palavra “momentâneo” é central aqui: por vezes, um ideal factível não se realiza devido a dificuldades materiais, a dificuldades sociais amplas, a dificuldades políticas; mas cumpre perceber que, se em um determinado momento algo não é possível, em outro momento, e/ou com outros esforços, esse projeto pode vir a realizar-se

o   Ainda no que se refere a moral e à oposição entre o ideal e o real:

§  Como “agimos por afeição”, todas as nossas ações são moralmente motivadas – daí a necessidade de que essa motivação seja altruísta

§  Mas é claro que os sentimentos não dão apenas a partida nas ações: são os sentimentos que nos mantêm atuantes, mesmo (e até principalmente) em face das adversidades

·         Os bons sentimentos de nossos familiares e nossos amigos confortam-nos e apóiam-nos, seja durante as dificuldades, seja no fracasso

·         Assim, é importante lembrar: não existimos no vazio, ou melhor, não existem indivíduos, mas apenas agentes da Humanidade; todas as nossas ações são propostas, elaboradas e levadas a cabo na, pela e para a Humanidade

§  Além dos sentimentos e das idéias, a natureza humana atua por meio dos instintos práticos: a coragem, a prudência e a perseverança

·         A coragem leva-nos a agir; é o impulso para a frente

·         A prudência são os cuidados que tomamos, para evitar problemas (ou problemas excessivos, ou problemas desnecessários, ou problemas inesperados)

·         A perseverança é o que nos mantêm em atividade, ao longo do tempo e a despeito das dificuldades

o   Assim, a resiliência é uma forma de perseverança, em que temos que retomar nossas atividades quaisquer e, se for o caso, retomarmos os esforços das ações que anteriormente fracassaram

-        Há ainda outros aspectos a considerar na oposição entre o ideal e o real; todavia, esses outros aspectos serão somente citados aqui

o   As observações acima se concentram nos indivíduos, nas dificuldades morais que cada um enfrenta ao realizar seus projetos e, em particular, ao fracassar: mas, como Augusto Comte afirmava desde o início de sua carreira e como consagrou na Religião da Humanidade, de real só existe a Humanidade

§  Isso significa que todos os projetos só podem realizar-se pela Humanidade, devido aos inúmeros fatores envolvidos:

·         O altruísmo realiza diretamente a Humanidade

·         Os projetos construtivos (não violentos, não destruidores) desenvolveram-se ao longo da história

·         Da mesma forma, nossas concepções sobre a realidade também se desenvolveram ao longo da história

·         Qualquer projeto implica, sempre, a coletividade, seja nas idéias, seja nas palavras, seja na necessária colaboração de qualquer atividade

·         Por fim – e de maneira central para esta prédica –, no caso de maiores dificuldades e/ou de fracasso, o amparo é sempre dado pela Humanidade, seja com o afeto que nossos amigos e familiares dão, seja com as idéias e os valores que nos confortam

o   Como vimos e como todos sabemos, a palavra “ideal” apresenta uma importante ambigüidade:

§  Ela pode ser uma concepção abstrata da realidade e/ou pode ser u’a meta considerada correta

·         Temos aí as partes que cabem ao cérebro e ao coração

·         Vale lembrarmos a bela frase de Vauvenargues: “os grandes pensamentos provêm do coração”

§  Além disso, há o espaço para a imaginação e, portanto, para as artes

·         Não podemos esquecer que as artes idealizam a realidade, ou seja, descrevem um cenário que simplifica o mundo e que, ao mesmo tempo, é desejável

·         As artes, então, ajudam a inspirar-nos e a ter coragem; enquanto enfrentamos dificuldades, elas confortam-nos, de modo que apóiam a perseverança; por fim, no caso do fracasso, é fora de dúvida a importância que elas apresentam para o conforto moral, para a resiliência e para o nosso amadurecimento

o   O papel da idealização – considerando todos os aspectos indicados acima, incluindo suas relações com a realidade – é resumido, sintetizado e/ou pressuposto na primeira lei da filosofia primeira, cuja importância é tão grande que é chamada de “lei-mãe”: “Formar a hipótese mais simples e mais simpática que comporta o conjunto dos dados a representar”