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29 outubro 2023

Augusto Comte: a arte idealiza (e enaltece) o que a ciência explica

Augusto Comte: trecho de “Aptidão estética do Positivismo”

O trecho abaixo corresponde à tradução, a partir do original em francês, das páginas 279 a 284 da quinta parte do Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo, intitulada “Aptidão estética do Positivismo”. Esse trecho está faltando na edição digitalizada e publicada no portal Internet Archive (https://archive.org/details/augusto-comte-aptidao-estetica-do-positivismo) em setembro de 2023. Por sua vez, essa edição é a tradução brasileira do referido capítulo do Discurso, feita em 1949 por F. A. Machado da Silva; as páginas faltantes nessa edição brasileira vão da 9 à 12. Tradução de Gustavo Biscaia de Lacerda.

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Tal é a filiação histórica que ao mesmo tempo explica e refuta as utopias anárquicas de nosso século sobre uma espécie de pedantocracia estética. Esses sonhos de um orgulho sem freio não podem tornar-se especiosos senão entre espíritos metafísicos, sempre inclinados à consagração absoluta dos casos excepcionais. Se os filósofos devem ser excluídos do comando, os poetas são-lhe ainda menos próprios. Sua versatilidade mental e moral, que os dispõem a melhor refletir o meio correspondente, interdita-lhes mais toda autoridade diretiva. Apenas uma severa educação sistemática pode conter o suficiente seus vícios naturais, que devem então ser bastante desenvolvidos em um tempo estrangeiro a toda convicção profunda. Membros assessórios do poder intelectual, os poetas não podem seguir sua vocação normal senão ao renunciarem à supremacia temporal ainda mais completamente que os membros principais. Os filósofos não são impróprios senão para a ação, mas as consultas convêm-lhes; ao passo que os poetas não devem, em geral, pretender mais um que a outra. Idealizar e estimular, tal é seu duplo ofício natural, que não se realiza dignamente senão conforme uma concentração exclusiva. Essa função é assaz nobre e assaz estendida para absorver todos os que se encontram verdadeiramente destinados a ela. Da mesma forma, esses desvios de conduta da ambição estética não surgiram plenamente senão depois do advento passageiro de uma situação incompatível com a arte verdadeira, falta de costumes pronunciados e de convicções reais. Todos esses poetas falhos ou equivocados dariam um outro curso à sua vida pública se a verdadeira poesia estivesse já tornada possível, por meio da preponderância de uma doutrina universal e de uma direção social. Até um tal resultado, as naturezas estéticas continuarão a estender-se ou a corromper-se em uma miserável agitação política, mais favorável às mediocridades especiosas que às superioridades reais.

O estado normal da natureza humana subordina tanto a imaginação à razão quanto esta ao sentimento. Toda inversão prolongada dessa ordem fundamental é igualmente funesta para o coração e para o espírito. O pretendido reino da imaginação tornar-se-ia ainda mais corruptor que o da razão, se ele não fosse ainda menos compatível com as condições reais da humanidade. Mas, ainda que quimérica, apenas sua busca pode atrapalhar bastante a existência privada, ao substituir por uma exaltação falsa, e com grande freqüência mentirosa, as emoções espontâneas e profundas. Com mais forte razão, essa viciosa preponderância da imaginação deve alterar a vida pública, quando nenhuma barreira social contém mais as ambições estéticas. A arte tende então a perder sua verdadeira destinação de encantar e melhorar a humanidade. Tornada o objetivo da existência, ela degradar-se-ia logo, ao desmoralizar ao mesmo tempo seus órgãos e seu público. Ela reduzir-se-ia cada vez mais aos seus ornatos sensuais, ou mesmo às dificuldades técnicas, sem nenhuma tendência moral. As inclinações estéticas, que, dignamente subordinadas, tanto aperfeiçoaram os costumes modernos, podem tornar-se profundamente corruptoras por seu ilegítimo ascendente. Sabe-se a que prática atroz a Itália foi conduzida, durante muitos séculos, com o objetivo único de embelezar as vozes masculinas. Assim degenerada, a arte, tão própria a desenvolver os instintos simpáticos, pode diretamente suscitar o mais abjeto egoísmo, provocando uma inteira indiferença social, entre aqueles que assumiram como sua principal felicidade o gostar de sons ou de formas. Tal é o íntimo perigo, ainda mais moral que mental, inerente à preponderância privada, e sobretudo pública, das inclinações estéticas, mesmo quando elas são reais. Mas também é necessário reconhecer que essa violação da ordem fundamental conduz logo ao inevitável triunfo das mediocridades, entre aqueles que um longo exercício desenvolve facilmente a habilidade de execução.

É assim que gradualmente caímos sob a vergonhosa dominação, não menos funesta à arte que à filosofia e à moral, das influências evidentemente votadas à subordinação social. Uma deplorável aptidão para exprimir o que não se sente nem se crê fornece hoje um ascendente efêmero a talentos tão incapazes de toda criação estética quanto de toda concepção científica. Essa anomalia política, principal característica de nossa situação revolucionária, deve tornar-se moralmente desastrosa quando esses triunfos imerecidos não ecoem mais, seguindo uma rara exceção, nas almas elevadas para conter-lhes com freqüência o vicioso impulso. Conforme sua maior generalidade, que lhes permite uma ambição mais alta, os poetas são mais expostos a esses perigos que os artistas propriamente ditos. Mas a cultura das artes especiais reproduz esse mal sob uma outra forma, ainda mais degradante, pela avidez pecuniária que macula hoje tantos talentos. É sobretudo aí que a ausência de toda regra deixa ingenuamente surgir uma vaidade pueril que doravante aplica o mesmo título habitual aos verdadeiros criadores estéticos e aos simples órgãos das produções alheias.

Tais são os resultados necessários do gradual desvio de conduta das ambições poéticas durante a longa transição moderna. Eu deveria caracterizar aqui sem hesitação as aberrações que impedem hoje toda sã apreciação da natureza e da destinação da arte. Mas esse severo preâmbulo não poderia chocar as almas verdadeiramente estéticas, já pessoalmente dispostas a sentir o quanto o regime atual contraria toda vocação real. Malgrado declamações interessadas, o verdadeiro desenvolvimento da arte exige pelo menos tanto a compressão das mediocridades quanto o encorajamento das superioridades. O verdadeiro gosto não existe nunca sem o desgosto. É exatamente por que a arte deve sobretudo desenvolver em nós o instinto familiar da perfeição, seus sinceros apreciadores ficam vivamente chocados com toda fraca produção. O feliz privilégio das obras-primas de suscitar uma admiração que os séculos não amenizam preserva-nos da pretensa necessidade de entreter o gosto com novidades que se alteram. Se eu ouso invocar aqui minhas próprias impressões, eu posso declarar que, após 13 anos, pela razão tanto quanto por inclinação, eu reduzi minhas leituras habituais aos grandes poetas ocidentais, sem provar a menor curiosidade a respeito dos produtos cotidianos de uma deplorável fecundidade.

Após essa retificação preliminar, é necessário caracterizar diretamente a aptidão estética do Positivismo, indicando inicialmente como ele constrói naturalmente a verdadeira teoria geral da arte, limitada até aqui a felizes vistas parciais. Tal sistematização estética resulta ao mesmo tempo do princípio subjetivo, do dogma objetivo e do fim ativo, atribuídos à nova filosofia nas duas primeiras partes deste discurso.

A arte consiste sempre em uma representação ideal do que é, destinada a cultivar nosso instinto da perfeição. Seu domínio então é tão estendido quanto o da ciência. Cada uma delas abarca, à sua maneira, o conjunto das realidades, que uma aprecia e a outra embeleza. Suas contemplações respectivas seguem o mesmo curso natural, conforme a minha lei enciclopédica, elevando-se das especulações mais simples e mais exteriores às mais complicadas e mais humanas. Assim, essa escala fundamental do verdadeiro, que nós reconhecemos, na segunda parte, constituir também a do bom, coincide ainda com a do belo, de maneira a estabelecer a mais íntima harmonia entre as três grandes criações da humanidade, a filosofia, a política e a poesia. Com efeito, é o espetáculo inorgânico, sobretudo celeste, que nos manifesta os primeiros caracteres da beleza, da ordem e da grandeza, ali melhor cognoscíveis que em relação aos fenômenos mais complexos e menos regulares. Os graus superiores do belo não poderiam ser verdadeiramente apreciados pelas almas insensíveis a esse grau inicial. Mas, se a filosofia não considera o estudo inorgânico senão como um indispensável preâmbulo para elevar-se à sua destinação humana, a poesia deve ainda mais proceder assim. Sua tendência é mesmo mais pronunciada, a esse respeito, que a da política, que, limitada inicialmente ao aperfeiçoamento material, limita-se por muito tempo ao aperfeiçoamento físico, e em seguida intelectual, antes de subir diretamente ao seu objetivo principal, o aperfeiçoamento moral. A poesia percorre mais rapidamente os três graus preliminares, e eleva-se com menos ainda de esforço à contemplação das belezas morais. Assim, o sentimento constitui naturalmente seu domínio essencial. Ela encontra aí seus meios tanto quanto seu fim. Entre todos os fenômenos humanos, as afeições são as mais modificáveis, e dessa forma os mais idealizáveis, como os mais perfectíveis, em virtude de sua complicação superior, que determina uma imperfeição maior, conforme a lei positivista. Ora, a expressão, mesmo imperfeitíssima, deve reagir bastante sobre as funções que, por sua natureza, tendem a espalhar-se para fora. Se sua eficácia é reconhecida a respeito dos pensamentos, não poderia ela desenvolver mais os sentimentos, mais dispostos à manifestação? Toda cultura estética, mesmo limitada à pura imitação, pode tornar-se então um útil exercício  moral, quando ela estimula dignamente nossas simpatias e nossas antipatias. Mas essa aptidão deve ser bastante mais completa se a representação, em vez de uma estrita fidelidade, encontra-se convenientemente idealizada. [...]

(Augusto Comte, Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo, 5ª ed., Paris, L. Mathias, 1929, p. 279-284).