Mostrando postagens com marcador Burguesia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Burguesia. Mostrar todas as postagens

09 abril 2024

O que é o patriciado?

No dia 16 de Arquimedes de 170 (9.4.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.

Na parte do sermão, abordamos o conceito de "patriciado" no âmbito do Positivismo.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/CCHo6) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/HEMrz). O sermão começou aos 51 min 11 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *


O que é o patriciado? 

-        Há algumas semanas um novo adepto do Positivismo, que se tem mostrado interessado em aspectos práticos da doutrina, pediu que eu abordasse a concepção de “patriciado”: daí esta prédica

o   Como veremos, a teoria do patriciado é simples em seus termos gerais, embora guarde relações com muitos aspectos da Religião da Humanidade

o   Dessa forma, diversos aspectos desta exposição serão comentados inicialmente em um momento e serão concluídos em outro momento: não se trata de fragmentar o raciocínio, mas de juntar aos poucos os vários elementos para que eles constituam um todo orgânico

-        O conceito de “patriciado” acaba surgindo no cruzamento de diversas teorias específicas de Augusto Comte

o   Essas teorias são: a teoria religiosa e da regulação moral da sociedade (é a teoria do sacerdócio); a teoria da política positiva (é a sociocracia e os poderes Temporal e Espiritual); a teoria das atividades práticas (a teoria da indústria)

o   Como sabemos, as teorias do sacerdócio e da sociocracia foram expostas e desenvolvidas no Sistema de política positiva e nas obras assessórias (Catecismo positivista, Apelo aos conservadores, correspondência)

o   Mas a teoria da indústria foi apenas projetada: ela seria exposta e desenvolvida no tomo IV da Síntese subjetiva, previsto para a década de 1860

o   De qualquer maneira, como ficará evidente ao longo desta exposição e como uma decorrência natural das teorias do sacerdócio e da sociocracia, a proposta positivista do patriciado não faz nenhum sentido fora dos quadros da Religião da Humanidade e da respectiva regeneração por via religiosa

§  Em particular, isso significa (1) que o patriciado não é um conceito apenas político-econômico e (2) que o patriciado não é uma palavra diferente para tratar da burguesia (e justificá-la)

-        Indo diretamente ao ponto: os patrícios são os líderes, ou melhor, os chefes econômicos

o   O nome “patrício” vem da Antigüidade romana, homenageando os líderes políticos e chefes das famílias da República romana

§  Essa homenagem indica o quanto Augusto Comte respeitava e valorizava os romanos

§  Da mesma forma, a palavra “proletariado”, também adotada por Augusto Comte, tem origem nos plebeus romanos

o   Os patrícios – cujo conjunto constitui o patriciado – representam a providência material da Humanidade

o   Os patrícios são os responsáveis pela produção material da Humanidade, decidindo o que deve ser produzido, em qual quantidade, com qual tecnologia, empregando quantos trabalhadores, visando a qual mercado específico etc.

§  Augusto Comte determina quatro tipos gerais de atividades produtivas: a agricultura, a indústria, o comércio e, estimulando cada um deles, os bancos

o   Os empreendimentos devem limitar-se pela capacidade de responsabilizarem-se pessoalmente por suas atividades

§  Augusto Comte não chegou a desenvolver estes aspectos, mas parece-nos que a responsabilização deve ser avaliada por seus efeitos concretos, o que abrange a geração de empregos, os salários pagos, as condições de trabalho e a qualidade e a quantidade da produção

·         A máxima prática – “a riqueza é social em sua origem e deve ter uma destinação social” – impõe-se com toda a clareza aqui

o   Vale lembrar que essa máxima é positivista e que só o Positivismo elaborou-a

·         Há espaço para o lucro, mas este deve ser entendido como a condição para o crescimento econômico e para os investimentos produtivos; o lucro não pode ser visto como um fim em si mesmo nem como a satisfação da ganância

o   Nesse sentido, o lucro não é único nem, de longe, é o principal parâmetro para avaliar o “sucesso” de algum empreendimento

o   O sucesso de um empreendimento é a sua capacidade de satisfazer as necessidades sociais: como já indicamos, geração de empregos de qualidade, produção de produtos úteis e de qualidade

§  Além disso, no aspecto da responsabilização pessoal há um aspecto de conhecimento pessoal entre o patrão e os empregados, com relações afetivas desenvolvendo-se entre eles

·         Não apenas se trata de relações afetivas (altruístas) entre patrão e empregados, mas também do desenvolvimento de verdadeira confiança mútua

o   Como o capital é social em origem e destinação, os patrícios devem ser vistos – e, acima de tudo, eles devem ver a si mesmos – como os administradores do capital material humano em favor da sociedade, não como “donos” da riqueza

§  A administração do capital é responsabilidade pessoal intransferível de cada patrício

§  Como gestores, eles devem ter a capacidade para isso, ou seja, eles devem ter poderes para isso

·         Suas amplas (ou melhor, suas pesadas) responsabilidades exigem que eles tenham amplos poderes

§  Mais do que outros, os patrícios devem entender e aplicar a noção de deveres mútuos

·         Todos têm deveres para com todos; mas, dependendo da situação de cada um, alguns têm maiores deveres que outros: no caso dos patrícios, seus deveres são realmente maiores que os dos demais

-        A atuação dos patrícios pode, e deve, ser contraposta à atuação das outras forças sociais:

o   Em relação ao proletariado, os patrícios são a força concentrada; o proletariado é a força dispersa

§  Augusto Comte lembra que o proletariado tem poder por meio da união; já os patrícios são poderosos devido aos meios de que dispõem – e, por isso, seus desvios são muito mais graves

o   Em relação ao sacerdócio, os patrícios representam o poder temporal; o sacerdócio é o poder espiritual

o   Em relação às mulheres, os patrícios representam a força física; as mulheres constituem o aconselhamento moral

-        Os patrícios são os servidores da Humanidade mais diretamente expostos ao egoísmo individualista e às perspectivas de detalhe

o   Os patrícios são os responsáveis pela conservação, pela reprodução e pelo aumento das riquezas materiais

§  As riquezas materiais são temporárias, no sentido de que, com o passar do tempo, todas elas degradam-se (é claro que algumas degradam-se mais rapidamente que outras); da mesma forma, há muitos tipos de riquezas materiais e os resultados de uma atividade são os insumos de outras atividades: o resultado desses aspectos é que são necessários muitos chefes práticos para muitas atividades contínuas

§  Essas atividades são egoístas e particularistas por si sós

o   Assim, os patrícios são os mais expostos às piores condições mentais e morais: embora sacerdotes, proletários e mulheres corram determinados riscos morais, intelectuais e práticos, conforme suas situações e suas atividades, o fato é que são os patrícios os que mais se sujeitam ao egoísmo

§  A conseqüência disso é que os chefes práticos são aqueles que mais dificilmente aceitaram a Religião da Humanidade e sua disciplina moral

§  Essa maior dificuldade, ou melhor, essa maior resistência (que não é necessariamente passiva) implica até mesmo conflitos entre os chefes práticos e as demais forças sociais (orientadas pelo sacerdócio)

·         De qualquer maneira, importa lembrar: o poder Temporal pertence aos chefes práticos; caso as outras forças sociais (sacerdotes, proletariado, mulheres) assumam o poder Temporal, essas outras forças necessariamente se degradarão

-        Os marxistas, com seu desprezo geral por tudo que não é marxista, consideram que o conceito positivista de “patriciado” é uma forma diferente de falar “burguesia”

o   Evidentemente, essa forma de pensar dos marxistas está errada e consiste em um preconceito desprezível, que em todos os sentidos só piora as coisas

o   Esse preconceito marxista é um preconceito e não é aceitável; entretanto, de uma forma bastante oblíqua, podemos considerar que esse preconceito marxista ajuda a entender o valor do patriciado: o patriciado consiste nos chefes práticos que não são burgueses

o   Ao contrário do que os preconceitos marxistas difundiram, os próprios marxistas não têm o monopólio das concepções críticas sobre a burguesia: Augusto Comte era extremamente severo contra a burguesia, entendendo-a como mesquinha, egoísta, frívola, oportunista, dinheirista

§  Além de criticar a burguesia, Augusto Comte também criticava a “burguesocracia” – o que deveria encerrar toda e qualquer discussão a respeito do suposto caráter “burguês” do Positivismo

§  Frederic Harrison – que, aliás, como muitos outros positivistas no mundo todo, na Inglaterra fundou sindicados e confederações de sindicados – punha-se contra a “plutonomia”, isto é, contra a regulação social estipulada pelos ricos[1]

o   Considerando os problemas morais e práticos a que os patrícios estão expostos, uma forma bastante direta de evidenciar o grau de difusão do Positivismo, de aceitação da Religião da Humanidade e de implantação da sociocracia é verificar quantos burgueses tornaram-se patrícios e, de qualquer maneira, quantos patrícios há na sociedade

§  Inversamente, pode-se determinar o quanto uma sociedade está distante da sociocracia por meio da rejeição dos chefes práticos dos ideais sociocráticos e do patriciado

-        Embora evidentemente fosse contra os conflitos, Augusto Comte reconhecia um valor prático na chamada “luta de classes”

o   Para Augusto Comte a luta de classes não tem as características que os marxistas definem para ela; ou seja, para o Positivismo, a luta de classes não é um ideal moral-social; não é a força motora da história; não é a condição para o fim das “contradições sociais”; não pode nunca assumir o aspecto de guerra de classes

§  Vale notar que todos os elementos da noção marxista de “luta de classes” distorcem o entendimento da realidade e pioram muito os problemas sociais

o   Rejeitado todo o conteúdo revolucionário, destruidor e violento da luta de classes, o valor que Augusto Comte percebia nela era, por um lado, o de evidenciar as necessidades do proletariado e, por outro lado, evidenciar a necessidade de regulação social e moral das relações sociais

-        Passando para o âmbito propriamente político, o poder Temporal deve ser chefiado por patrícios

o   Esse aspecto é decorrente do caráter industrial das sociedades positivas: o poder cabe a quem realmente é o responsável pelas principais atividades sociais (o sacerdócio nas teocracias, os chefes militares na Antigüidade e na Idade Média)

o   O poder Temporal é mais restrito que o poder Espiritual, mas, de qualquer maneira, ele não pode ser ocupado por pessoas concentradas em seus egoísmos

§  A noção de que os patrícios correspondem aos chefes práticos regenerados pela Religião da Humanidade já indica alguns de seus atributos

§  Ainda assim, as atividades e as exigências políticas são diferentes das econômicas: isso Augusto Comte não chegou a tratar

§  Não deixa de ser notável que, no calendário positivista, exista um mês para a política moderna (Frederico, o duodécimo mês), com indivíduos com atividades claramente discerníveis, mas que o mês da indústria moderna (Gutenberg, o nono mês) não haja propriamente líderes, no sentido do patriciado

§  De qualquer maneira, a exigência de que os chefes políticos tenham perspectivas gerais e sejam efetivamente dotados de um sentimento social levou Augusto Comte a recomendar que, extraordinariamente, o poder Temporal seja ocupado por um proletário em vez de por patrícios

-        Por fim: com a idade de 63 anos deve ocorrer a aposentadoria, por meio do sacramento do retiro: Augusto Comte recomendava que os patrícios retirados constituíssem uma corporação – por mais informal que fosse – da “cavalaria patrícia”, dedicada a afirmar e difundir os valores e as práticas da Religião da Humanidade entre os patrícios atuantes e também a corrigir injustiças e desvios

-        Em suma:

o   Os patrícios consistem nos chefes práticos (“empreendedores econômicos”) regenerados pela Religião da Humanidade

§  Essa “regeneração” consiste na aceitação e, mais ainda, na aplicação dos parâmetros positivistas

·         Em um sentido afirmativo, esses parâmetros são a responsabilidade pessoal por suas ações e decisões; a preocupação com o bem comum; o entendimento de que o capital é social em sua origem e destinação e que os chefes práticos são gestores da riqueza, não seus donos absolutos

·         Em um sentido negativo, esses parâmetros são a rejeição do comportamento mesquinho, egoísta, frívolo próprio à burguesia e à burguesocracia



[1] Citamos Harrison porque há alguns anos um artigo de sua autoria foi recuperado por um antropólogo francês (disponível aqui: https://www.cairn.info/revue-du-mauss-2014-1-page-309.htm&wt.src=pdf); mas é claro que não foi apenas ele que se manifestou contra a burguesia e a burguesocracia e, mais importante que isso, que se manifestaram a favor da fraternidade e da sociocracia. Um pouco ao acaso, podemos citar os seguintes nomes: os irmãos Lagarrigues no Chile; Fabien Magnin e seus amigos proletários na França; ainda na França, o sindicalista e criador de uma confederação sindical Auguste Keufer; evidentemente, também Miguel Lemos, Teixeira Mendes e os positivistas ortodoxos brasileiros.

17 maio 2021

Reflexões sobre um evento com marxistas ortodoxos

Há alguns dias eu participei de um debate à distância sobre “classes sociais no Brasil contemporâneo”.

A minha participação consistiu em afirmar que é necessário usarmos o conceito de classes sociais nas sociedades industriais, na medida em que as clivagens básicas dessas sociedades dão-se em termos de riqueza, ou seja, de classes sociais; todavia, é necessário deixar de lado o aspecto sublevador e destruidor – revolucionário, em uma palavra – que o marxismo associou a esse conceito. Ao mesmo tempo, para combater os particularismos tanto proletário do marxismo quanto, de modo mais atual, das propostas identitárias, é necessário retomar-se o conceito de república, com seu universalismo da cidadania.

Depois de mim apresentaram dois professores marxistas – bem entendido, marxistas ortodoxos. E aí eu fiquei espantado ao constatar como o marxismo pode ser extremamente sedutor e eficiente em termos retóricos.

A moralidade marxista é simplista e tende ao maniqueísmo (isso quando não é diretamente maniqueísta): o proletariado é bom mas é explorado, a burguesia é má e é exploradora. A sua promessa de solução dos problemas sociais oferece uma enorme esperança e sua “radicalidade” baseia-se também no seu simplismo maniqueísta, adicionando um elemento mágico: quando a luta de classes acirrar-se tanto e a tal ponto que ocorra uma revolução proletária universal, todos os conflitos sociais acabarão de uma vez por todas, a malvada burguesia exploradora deixará de existir e o proletariado deixará de sofrer e de ser explorado e poderá viver em paz e com dignidade.

É realmente espantoso que esse simplismo convença as pessoas. É claro que ele convence também porque, aparentemente, oferece “soluções” para os problemas que a maior parte das pessoas sofre; ou melhor, o marxismo oferece uma crítica moral, disfarçada de análise sociológica, que parece sugerir soluções para os problemas. Creio que é aí que reside muito da sedução marxista.

Mas, como observei, tudo isso é simplista e maniqueísta. Em termos individuais, isso nega, isso rejeita a noção de responsabilidade individual; ou melhor, reduz a responsabilidade individual ao maniqueísmo básico: ou ajuda o proletariado e revolução universal ou ajuda a burguesia, a dominação e a exploração.

Além disso, esse maniqueísmo afirma um universalismo proletário que nega a realidade dos países, das nações. Esse universalismo de classes ignora fatos básicos e acarretou conseqüências terríveis: por um lado, a lealdade nacional é um dos elementos mais básicos e mais fortes que une entre si os indivíduos nas sociedades; por outro lado, esse mesmo universalismo de classe provocou ou estimulou ou justificou, no início do século XX, violentas reações nacionalistas; além disso, o universalismo de classes sempre foi utilizado como desculpa para a manipulação internacional dos proletariados nacionais; por fim, as revoluções comunistas ocorreram ao redor do mundo com objetivos nacionalistas, muito mais que internacionalistas.

Mas o presente início do século XXI indica que existem vários outros problemas adicionais na crítica do internacionalismo de classes às lealdades nacionais, baseada no maniqueísmo marxista. Por um lado, por mais que se diga que o “capitalismo” – esse conceito profundamente metafísico – é internacional, o fato é que as disputas entre os países ocorrem em bases nacionais, não internacionais. Por outro lado, após a II Guerra Mundial o mundo organizou um sistema coletivo internacional de gerenciamento das crises políticas; um sistema imperfeito, não há dúvida, mas que minora muitos dos defeitos do anterior sistema baseado exclusivamente nos nacionalismos e em suas rivalidades mútuas; entretanto, como esse sistema coletivo surgido após 1945 não é proletário e, portanto, é burguês, esse sistema é visto como intrinsecamente ruim.

Além disso, as duas críticas acima reforçam por um lado uma perspectiva sociológica e moralmente particularista e, por outro lado, minam os esforços coletivos de coordenação dos assuntos internacionais: isso integra e/ou faz par, de pleno direito, ao particularismo nacionalista e identitário que elegeu Donald Trump como Presidente dos EUA, bem como inúmeros demagogos de extrema-direita mundo afora.

Por fim, considerando uma perspectiva um pouco diferente, o maniqueísmo marxista e seu universalismo proletário negam a possibilidade de projetos nacionais legítimos de desenvolvimento nacional, em que a responsabilidade pessoal esteja direcionada de verdade para o bem-estar coletivo (nacional e internacional) e para a melhoria das relações sociais. Em particular, a atual pandemia exige uma coordenação internacional, mas ela está sendo enfrentada em termos nacionais, o que é inescapável diga-se passagem; além disso, esse enfrentamento evidencia a importância de estados nacionais ativos, fortes, articulados e capazes de implementar com eficiência políticas públicas – no caso do Brasil, por meio do SUS e do Programa Nacional de Imunizações. Nada disso teria lugar ou é justificado pelo maniqueísmo marxista e por seu rasteiro universalismo proletário.

No evento de que participei, como o objetivo não era um expositor criticar as perspectivas dos outros, não me manifestei a respeito dessa série inacreditável de sofismas e simplismos morais, sociológicos, históricos e filosóficos. Mas, ao mesmo tempo, fico pensando em como seria difícil expor oralmente, em alguns minutos, essa série de raciocínios que expus por escrito acima.

Enfim, mais uma vez registro meu espanto: o público que assistia às nossas exposições era composto por jovens estudantes universitários, todos eles devidamente burgueses mas, ao mesmo tempo, muitos deles piamente convencidos desses sofismas marxistas.

(Cá entre nós, não é à toa que o atual Presidente do Brasil tem uma base fiel e fanática: são discursos igualmente superficiais, simplistas, maniqueístas, adotados por pessoas ávidas de discursos desse tipo. A diferença entre uns e outros nem ao menos é de classe social, mas de “âmbito”: como observei, o marxismo afirma-se internacionalista, ao passo que o atual “nacional-populismo”, ou (neo)fascismo, é resolutamente nacionalista e anti-internacionalista.)

07 maio 2020

Lamento por uma burguesia abaixo do mínimo político-moral


Quando eu era aluno de graduação, do mestrado e do doutorado, sempre que ouvia falar em "burguesia" ficava irritado: essa palavra quase sempre era proferida por marxistas, que de fato têm uma escabrosa metafísica político-moral. Para o marxismo, a "burguesia" é uma entidade e sempre é ruim, sempre é maléfica.

Entretanto, se deixarmos de lado a metafísica marxista e entendermos de maneira concreta a palavra "burguesia", ela assume um caráter descritivo. Nesse caso, a burguesia nacional é o conjunto dos grandes capitalistas brasileiros, isto é, dos donos de lojas, de fábricas, de empresas de investimento, dos especuladores financeiros.

Sem dúvida que também há a pequena burguesia, isto é, os micro e pequenos empresários, além dos empresários individuais; da mesma forma, podemos incluir na categoria geral de burguesia a classe média profissional, isto é, os profissionais liberais, aqueles que têm sua renda e seu status social ligados a um diploma universitário: médicos, engenheiros, advogados, professores universitários, consultores etc. Creio que atualmente os "youtubers", os "influenciadores" também entram nessa categoria.

Mas deixemos de lado a pequena burguesia e os profissionais liberais; o que me interessa aqui é a burguesia, isto é, o grande capital.

Se até 2018 eu tinha paciência e boa vontade com a burguesia brasileira, desse ano em diante não dá mais para levá-la a sério.

Não me incomoda o fato de que a burguesia é rica e que, por isso, tem poder e/ou influência. A vida, a sociedade são assim; se não fossem, seria estranho.

Mas quem é rico tem responsabilidades coletivas. Ao contrário do que diz a metafísica liberal e individualista, cujo grande centro de difusão atualmente são os EUA, a riqueza não é sinal de mérito individual e não existe para prazer dos ricos. A riqueza é um fardo, pois implica sempre e necessariamente responsabilidades gigantescas: os donos do capital não têm que ficar sempre e cada vez mais ricos, eles têm que produzir mais riqueza para sempre e cada vez mais alimentar (e vestir e educar e entreter) a população, seja por meio da geração de empregos - esse deveria ser o seu principal instrumento e, portanto, a sua principal preocupação -, seja por meio de ações sociais diretas (como deveria ser a ação do Sistema S), seja por meio do pagamento de impostos.

Ora, desde 2018 a burguesia brasileira aderiu a um projeto político-social fascista, de desprezo sistemático aos trabalhadores, de destruição das sociedades indígenas, de destruição das nossas florestas, de venda do patrimônio nacional, de redução sistemática dos salários, de precarização sistemática das condições de trabalho. Em outras palavras, a burguesia brasileira faz tudo o que é possível para destruir o que há de civilizado no país, mesmo que tenha a audácia de conspurcar as palavras "modernidade" e "progresso".

(Diga-se de passagem que "fascismo" é outra palavra que o marxismo e a esquerda degradou, ao usar de maneira cínica contra tudo o que não era marxismo e esquerda. Mas, ainda assim, a palavra "fascismo" tem um conteúdo descritivo que resiste à sua degradação pelo marxismo; é considerando esse conteúdo que eu emprego, de maneira concreta, para referir-me a um governante que é, sim, fascista.)

Aliás, o governo fascista insiste em degradar outra bela expressão de que os brasileiros têm a honra de tomar como divisa política; em outras palavras, os fascistas degradam e conspurcam o belo "Ordem e Progresso".

Para a burguesia nacional é ótimo dizer-se contra o "marxismo cultural"; a burguesia não se importa com o conteúdo específico dessa corrente, mas também não deseja ser criticada como parasitária, como irresponsável, como... inútil. (Não por acaso, essa burguesia emprega um especulador financeiro altamente suspeito como porta-voz, para dizer que os servidores públicos é que seriam parasitários.)

Mas a verdade é que, como observei acima, o marxismo consiste em uma enorme metafísica político-moral; sua acusação à "burguesia" no final não passa de indignação política para adolescentes rebeldes.

Agora, dizer com clareza que a nossa burguesia é mesquinha, é egoísta, é covarde, é irresponsável - isso é muito pior e muito mais duro. Dizer que a nossa burguesia resolveu embarcar - quando não assumir - no fascismo para justificar seu individualismo antissocial é tudo o que ela não deseja. O que a nossa burguesia deseja é ser sempre e cada vez mais exploradora da população, insensível aos seus problemas, irresponsável em seus comportamentos.

O Positivismo, aquela mesma filosofia que formulou o belo "Ordem e Progresso", afirma que o capital, a riqueza, tem origem social e que, portanto, ela tem que ter destinação social. É o Positivismo que afirma que a destinação social da riqueza impõe pesadas responsabilidades sobre os ombros dos ricos, isto é, da burguesia. É o Positivismo que rejeita como mesquinha, como imoral, a idéia de que a riqueza por si só é sinal de mérito e que os ricos não têm nenhuma obrigação para com ninguém, exceto serem cada vez mais ricos.

(Não é por outro motivo que os representantes histérico-ideológicos dessa burguesia têm mirado cada vez mais no Positivismo, tornando-o o alvo preferencial de seu ódio e de suas mentiras, deixando de lado a lenga-lenga sobre o "marxismo cultural".)

Desde 2018, cada vez mais eu vejo a burguesia brasileira - os donos de grandes lojas, de grandes empresas, de grandes indústrias; os presidentes dessas empresas, os administradores de fundos de especulação - fazendo questão de defender o "direito" de ser mesquinha e inútil.

O comportamento degradante de nossa burguesia, que já seria extremamente condenável somente pelo seu ignóbil apoio ao fascismo, tem-se aprofundado nesta crise de saúde pública. A nossa burguesia, em vez de assumir republicanamente, civicamente, humanamente, que o isolamento social é a medida mais efetiva para combater as mortes; em vez de assumir esse fato e pagar para isso, o que nossa burguesia insiste em fazer é querer que os trabalhadores e a população continuem a trabalhar como se não houvesse nenhuma violenta emergência de saúde. Para essa burguesia, se a classe média e os trabalhadores morrerem nos hospitais, não há problema: essa mesma burguesia não tem vergonha de dizer que hoje, quando estamos longe do pico da epidemia no país, esse pico já foi ultrapassado para os ricos! Esses mesmos ricos têm a ilusão de que a pandemia não os atingirá apenas porque eles são ricos e porque, caso contraiam a doença, eles podem viajar em UTIs aéreas para os mais caros hospitais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Essa mesma burguesia tem até mesmo um representante no Ministro da Saúde!

É com um misto de crescentes tristeza e raiva que cada vez mais me convenço de que a burguesia brasileira tem um comportamento desprezível. Ricos, eles querem apenas ser mais ricos às custas da vida e da dignidade de nossa população; com influência política, eles apóiam o fascismo; com capacidade de manter empregados sem trabalhar por meses (como donos de cadeias de lojas e lanchonetes já se gabaram), eles insistem que "todos" (isto é, todos os outros) devem trabalhar normalmente, como se não houvesse uma pandemia mortal. Com influência moral, eles repetem discursos desprezíveis, que passam a ser os discursos da pequena burguesia, da classe média profissional e - isso é o mais chocante - mesmo dos trabalhadores!

Quando tudo isso acabar - isto é, quando a pandemia for passado e o fascismo tiver sido varrido do Brasil -, será que ainda haverá algum país para que essa burguesia possa agir?  Ou, de maneira mais importante: será que nossa burguesia terá aprendido a ser decente, responsável, humana, altruísta? Pessoalmente, eu acredito que não; entretanto, é como dizem: a esperança é a última que morre.