Este blogue é dedicado a apresentar e a discutir temas de Filosofia Social e Positivismo, o que inclui Sociologia e Política. Bem-vindo e boas leituras; aguardo seus comentários! Meu lattes: http://lattes.cnpq.br/7429958414421167. Pode-se reproduzir livremente as postagens, desde que citada a fonte.
31 março 2023
Live AOP: Carlos Eduardo Oliva: Laicidade e constitucionalidade inconstitucional do ensino religioso
15 março 2023
Anotações sobre a laicidade
Anotações sobre a “laicidade do Estado”
- Um dos temas mais importantes de qualquer organização política moderna é a chamada “laicidade do Estado”
o Vale notar que, apesar de sua importância literalmente fundamental, ela é rotineira e generalizadamente negligenciada, seja pela teoria política, seja pelos políticos práticos
o Essa negligência não me parece casual, pois a laicidade impõe uma auto-restrição que quase ninguém está disposto a assumir (na teoria e/ou na prática)
- O Positivismo desde o início bate-se pelo que se chama de “laicidade do Estado”
o Para o Positivismo, o que se chama de “laicidade do Estado” é um dos princípios fundamentais de qualquer organização política – isso para não dizer que é o princípio fundamental
o Entretanto, para o Positivismo, o que se chama vulgarmente de laicidade é entendido como uma aplicação específica do princípio da separação entre os dois poderes
- Quais são, então, os dois poderes?
o Poder Temporal: responsável pela manutenção da ordem material das sociedades; baseia-se na força física; modifica externamente (objetivamente) a conduta dos indivíduos
o Poder Espiritual: responsável pela formação e manutenção das opiniões, das idéias e dos valores; baseia-se na confiança e no aconselhamento; modifica internamente (subjetivamente) a conduta dos indivíduos
- Historicamente os dois poderes estiveram unidos, ainda que com a subordinação de um ao outro
o Na Idade Média houve um primeiro esboço de separação entre os dois poderes, com a separação entre o Imperador e o Papa
§ Essa separação foi proposta, no âmbito da teologia católica, por São João Crisóstomo (séc. IV)
§ O episódio da “ida a Canossa” (Henrique IV vs. Gregório VII, em 1077) indica tanto a separação entre os dois poderes quanto a subordinação moral do poder Temporal
o As fés absolutas aproximam-se das ordens indiscutíveis; assim, o absoluto filosófico está próximo do autoritarismo político (e/ou do militarismo)
§ Inversamente, a fé relativa aceita e promove a ativa reflexão filosófica, social e política
§ Vale notar que países que têm retrocedido para o autoritarismo são países que, não por acaso, têm negado a laicidade (seus valores e suas práticas)
o Na modernidade os dois poderes devem manter-se separados; a separação entre os dois poderes baseia-se em uma série de considerações morais, intelectuais e políticas inter-relacionadas entre si:
§ O fundamento de cada um dos poderes é diferente: o poder Temporal baseia-se na força física (ou seja, na violência), enquanto o poder Espiritual baseia-se na confiança e no convencimento
§ Cada indivíduo deve escolher suas crenças com liberdade e autonomia e não ser constrangido oficialmente para isso
§ Uma crença que usa o poder Temporal para estabelecer-se torna-se degradada, reconhecendo implicitamente que não tem forças para difundir-se sozinha
§ Um Estado que impõe uma crença determinada ao mesmo tempo indica que carece de legitimidade e estimula a hipocrisia pública
§ Os atributos próprios a cada um dos poderes são diferentes: o orgulho para o poder Temporal, a vaidade para o poder Espiritual
§ As perspectivas de cada um dos poderes são diferentes:
· O poder Temporal visa a mudar materialmente a sociedade, concentrando-se no presente (solidariedade), em operações parciais e sendo objeto de disputas francamente egoísticas;
· O poder Espiritual visa a mudar afetiva e intelectualmente a sociedade, afirmando a continuidade humana ao longo da história, estimulando as visões de conjunto e buscando estimular o altruísmo e regular o egoísmo
§ Com base na separação dos dois poderes, o Positivismo garante a legitimidade do Estado, a dignidade espiritual e rejeita que problemas morais sejam solucionados pela via temporal (somente pela via espiritual, ou seja, pelo aconselhamento e pela educação)
- De um ponto de vista político, a separação dos dois poderes resulta em que os indivíduos têm a mais completa liberdade para formarem e/ou mudarem as suas próprias opiniões
o Evidentemente, como já indicamos, qualquer opinião baseia-se sempre na confiança depositada pelo crente em um órgão espiritual qualquer
o De maneira concreta, a separação entre os dois poderes realiza-se na forma da “laicidade do Estado” e é completada por três liberdades fundamentais: (1) de consciência, (2) de expressão e (3) de associação
- Do exposto acima, torna-se claro que a laicidade do Estado não é:
o Não é o estabelecimento de Estado ateu
o Não é o estabelecimento de Estado pluriconfessional
o Não é anticlericalismo
- Há alguns detalhes adicionais sobre as diversas fases da transição derradeira, para Augusto Comte, em particular a ausência de qualquer financiamento teórico (igrejas teológicas, universidades metafísicas e mesmo a igreja positiva)
- Na teoria política mais recente (não por acaso especificamente francesa), a laicidade do Estado é afirmada em termos de cidadania:
o A atual teoria política francesa da laicidade baseia-se na obra de Condorcet, que, antes de Augusto Comte, foi o maior teórico francês do tema
o A laicidade assegura que, para a cidadania, requer-se apenas o respeito às leis do país
o Inversamente, com a laicidade não se requer a adesão a nenhuma doutrina específica (e, conseqüentemente, nem a filiação a nenhuma organização específica)
o No que se refere ao serviço público, isso gera uma ética específica: tudo aquilo que tem a participação do Estado, direta ou indireta, tem que se manter neutro em termos doutrinários
- Há diferenças entre laicidade e tolerância:
o Para o que nos interessa, a tolerância é a aceitação, mais ou menos ampla, da parte dos governantes em relação às crenças dos cidadãos que não comungam da doutrina oficial de Estado (a liberdade de crença é uma concessão do Estado e/ou do governante e, como concessão, pode ser mantida ou suprimida)
o A laicidade é a afirmação da cidadania apenas no respeito às leis e não depende da boa vontade do Estado e/ou do governante (a liberdade de crença é o fundamento das liberdades públicas e da cidadania)
- Laicidade de princípio e laicidade de compromisso:
o Laicidade de princípio: é estabelecida considerando que ela é o fundamento das liberdades e da cidadania; ela fundamenta efetivamente uma organização social e política
o Laicidade de compromisso: estabelece-se a laicidade porque nenhuma seita específica tem poder suficiente para impor-se sobre o conjunto da população; é claro que ela é instável
- No Brasil a laicidade foi estabelecida plenamente apenas em 1890 e até 1931
o Não por acaso, a laicidade na I República foi estabelecida graças à ativa e difundida propaganda do Positivismo
o Antes de 1890 e após 1931 o país viveu momentos de religião oficial (colônia, império), religião semioficial e Estado para-pluriconfessional (após 1931, até hoje)
- No Brasil atual a “discussão” sobre laicidade apresenta-se da seguinte forma:
o A direita é claramente contra a laicidade ou é cinicamente alheia a ela
o A esquerda oscila entre a rejeição e o alheamento (como a direita) ou – no caso da esquerda identitária – adota uma visão pobre e instrumentalista da laicidade para justificar o anticlericalismo tópico
o Há serviços públicos realmente universais e ligados apenas à cidadania (SUS), mas há serviços públicos que exigem a adesão explícita a um determinado credo oficial (vestibulares de IFES)
o A Constituição Federal de 1988 é extremamente contraditória:
§ Afirma a ausência de apoio, subvenção ou embaraço público às religiões (Art. 19, I)
§ Proclama a Constituição “em nome de deus” (Preâmbulo) e afirma a colaboração do Estado com igrejas em nome do interesse público (Art. 19, I)
o Os doutrinadores jurídicos justificam essa aberração político-intelectual por meio das categorias (igualmente aberrantes) “Estado colaborador” ou “laicidade atenuada”
§ Vale notar que a laicidade não é uma questão de quantidade, mas de qualidade; ela seria uma categoria discreta (sim/não, presente/ausente) e não uma categoria contínua (mais/menos)
§ Assim, nenhuma dessas categorias jurídico-políticas a posteriori realmente faz sentido
15 dezembro 2021
Um ministro "terrivelmente evangélico" contra a República
O artigo abaixo critica inicialmente a indicação e, depois, a aprovação em sabatina de André Mendonça para ministro do Supremo Tribunal Federal. Como se sabe, essa indicação foi feita com base no predicado de que ele seria um ministro "terrivelmente evangélico", o que deveria ser encarado como um descalabro por todos aqueles que se preocupam com a República.
Infelizmente, poucas foram as pessoas e as instituições que se manifestaram contra esse descalabro; a maioria dos "formadores de opinião" no Brasil permaneceu quieta (e, portanto, omissa) ou apoiou (e, portanto, é cúmplice) desse verdadeiro crime de lesa-república. O artigo explica, em poucas linhas, os inúmeros problemas teóricos e práticos causados por essa indicação clericalista.
Vale notar que todas as manifestações públicas de André Mendonça antes e, principalmente, depois da sabatina no Senado Federal confirmam os meus argumentos abaixo.
O texto foi publicado no jornal carioca Monitor Mercantil em 8 de dezembro de 2021 (disponível aqui, com acesso aberto) e no jornal curitibano Gazeta do Povo em 14 de dezembro de 2021 (disponível aqui, para assinantes).
* * *
Um ministro "terrivelmente evangélico" contra a República
No dia 1° de dezembro de 2021, André Mendonça, ex-ministro da Justiça do Governo Bolsonaro, foi sabatinado pelo Senado Federal para a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A sabatina, que terminou por aprovar a indicação, e a própria indicação constituem episódios lamentáveis na vida política brasileira, no sentido de que são atentatórios contra o conjunto da República e, em particular, contra a laicidade do Estado. Sem nos deter em detalhes, vejamos os problemas.
Antes de mais nada, temos que dizer com todas as letras: a indicação pelo presidente da República e a aprovação pelo Senado Federal – mesmo que quase cinco meses depois da indicação – de alguém que foi indicado apenas por ser “terrivelmente evangélico” é um retrocesso político e social no Brasil.
O problema não está exatamente nas crenças íntimas de André Mendonça, mas no motivo da indicação e também no fato de que o próprio indicado jamais renegou esse motivo. Se o Estado é laico – e se ele deve ser e deve manter-se laico – a condição religiosa dos ministros é completamente irrelevante: o que importa é se o indicado valoriza as instituições republicanas e seus valores fundantes (liberdades públicas, inclusão social, fraternidade e paz universais etc.). Se o indicado respeitar e, mais do que isso, se ele valorizar de fato as instituições e os valores republicanos, não importa se ele é católico, ateu, budista, presbiteriano, umbandista, cardecista, positivista, luterano, satanista ou evangélico.
Antes de seguirmos adiante, uma pequena digressão. Ao contrário do que prega a mistificação parlamentarista, o parlamento não é uma instituição de “debates” e serve mal para a defesa das garantias e das liberdades públicas. Se o Congresso Nacional, representado pelo Senado, quisesse de fato garantir as instituições republicanas, deveria ter dado uma resposta institucional e reprovado a cínica indicação clericalista do ministro “terrivelmente evangélico”; essa recusa teria um peso e um impacto muito maiores que a mera decisão individual de David Alcolumbre de postergar por cinco meses a sabatina de André Mendonça.
Aliás, o concomitante desprezo do conjunto do Congresso Nacional pela ordem do próprio STF para tornar público o “orçamento secreto” – que é o instrumento atual da corrupção política em favor dos parlamentares – deveria bastar para pôr abaixo todas as pretensões parlamentaristas, apesar da retórica diversionista que trata do “presidencialismo de coalizão”.
Enfim, a futura nomeação do ministro do STF “terrivelmente evangélico” coroa paradoxalmente uma política seguida desde sempre pela... Igreja Católica. Essa instituição combateu a laicização do Estado em 1889-1891, voltou orgulhosa ao poder em 1931 e, sempre que pode, reafirma suas pretensões a religião oficial do país, bem como um sem-número de privilégios políticos, fiscais, pedagógicos (como no caso da Concordata de 2008, assinada por Lula).
Em face disso, os evangélicos sempre foram ambíguos: defendem a laicidade apenas para opor-se aos católicos, mas, quando percebem que podem ganhar, aliam-se despudoradamente aos inimigos da véspera (novamente, a Concordata de 2008 é exemplar). Não se trata, portanto, de respeito doutrinário à laicidade do Estado ou às instituições republicanas: é a mais rasteira conveniência política.
A aprovação do ministro “terrivelmente evangélico” – indicado pelo “católico” Jair Bolsonaro – é também a vitória da política identitária. O identitarismo opõe-se violentamente aos universalismos republicanos, ao defender uma política de representação das identidades, em termos de proporcionalidade demográfica.
Em outras palavras, o identitarismo rejeita a concepção de que a República é composta por cidadãos e que se constitui de regras universais; ao mesmo tempo, o identitarismo defende a concepção de que a política serve para representar os particularismos e que a República é apenas a justaposição desses grupos particularismos, que teriam direito a nacos do Estado com base nas proporções demográficas da população brasileira – idealmente, por meio de… cotas. Sem tirar nem pôr, foram exatamente essas as justificativas de Bolsonaro ao fazer a indicação do ministro “terrivelmente evangélico”.
Mas também é importante realçar que a política identitária é indiferente ou até hostil à laicidade do Estado, defendendo-a apenas se e quando lhe convém, sem maior engajamento filosófico e político. E mais do que isso: embora o identitarismo seja atualmente instrumento da esquerda, dos chamados “progressistas”, o fato é que a política identitária é uma invenção da direita, na Alemanha das décadas de 1920 e 1930, cuja expressão máxima coube a um cabo e pintor de rua que obteve o poder. Enfim, os efeitos nefastos do identitarismo deveriam agora, mais do que nunca, estar claros para todos, na medida em que o identitarismo foi aplicado à perfeição no Brasil.
Indicado contra a laicidade e a República, a partir de uma concepção identitária, André Mendonça já deixou claro que não entende o que é a laicidade – e, portanto, o que é a República. Para ele, respeitar o Estado laico significa limitar-se a não fazer orações no plenário ou no ambiente do STF... isso é mais ou menos o mesmo que dizer que um servidor público deve respeitar o Código de Ética e que isso significa não andar pelado nas repartições públicas.
A laicidade é não conceder privilégios para as doutrinas e suas igrejas; é não restringir a cidadania aos adeptos de uma determinada instituição; é não ser indicado para a vaga de ministro do STF por ser pastor de uma igreja; é não deturpar a belíssima frase de Neil Armstrong para comemorar o particularismo identitário da sua aprovação como futuro integrante do STF.
Para concluir, é importante lembrar: o Positivismo (como filosofia social e política) e os positivistas (como cidadãos brasileiros) são uns dos poucos, se não forem simplesmente os únicos, que defendem a laicidade do Estado e o universalismo da República, como elementos da Ordem e do Progresso do Brasil e da Humanidade.
Desde o início de suas atividades no Brasil, na década de 1870, os positivistas sempre deixaram claro que laicidade e republicanismo andam juntos, apoiam-se e reforçam-se; combater um é combater o outro, necessariamente. Assim, é como positivista e, portanto, como cidadão brasileiro que observo: o presidente da República que, com base em uma concepção de identitarismo clericalista, indicou um “ministro terrivelmente evangélico”; o Congresso Nacional, que atuou como cúmplice na sabatina desse indicado; o próprio pastor terrivelmente evangélico – todos atuam contra a laicidade e contra a República; contra a ordem e o progresso.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.
03 dezembro 2021
Estado laico acima de tudo, Humanidade acima de todos
15 agosto 2019
Artigo "Laicism in Brazil"
Pois bem: seguindo os parâmetros editoriais da Springer, podemos tornar público o artigo em sua versão preliminar, isto é, sem a formatação da editora e sem a paginação.
Assim, o texto inicial está disponível abaixo.
As referências bibliográficas para consulta efetiva são estas:
Biscaia de Lacerda G. (2019) Laicity in Brazil. In: Gooren H. (eds) Encyclopedia of Latin American Religions. Religions of the World. pp 821-825, Springer, Cham, pp 821-825* * *