24 agosto 2012

Daniel Sottomaior: "Oração da vitória"


Artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 24 de agosto de 2012.

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DANIEL SOTTOMAIOR
Oração da vitória
Não deveria haver reza coletiva por atletas em quadra. Um ser onibenevolente não veria mal em esperar 15 minutos até a seleção de vôlei ir ao vestiário
Um hipotético sujeito poderoso o suficiente para fraudar uma competição olímpica merece ser enaltecido publicamente? A se julgar pela ostensiva prece de agradecimento da seleção brasileira de vôlei pela medalha de ouro nas Olimpíadas, a resposta é um entusiástico sim!
Sagrado é o direito de se crer em qualquer mitologia e dá-la como verdadeira. Professar uma religião em público também não é crime nenhum, embora costume ser desagradável para quem está em volta.
Os problemas começam quando a prática religiosa se torna coercitiva, como é a tradição das religiões abraâmicas. Os membros da seleção de vôlei poderiam ter realizado seus rituais em local mais apropriado. É de se imaginar que uma entidade infinita e onibenevolente não se importaria em esperar 15 minutos até que o time saísse da quadra.
Mas uma crescente parcela dos cristãos brasileiros não se contenta com a prática privada: para eles, é importante a ostentação, pois ela demarca o território religioso e, melhor ainda, tem valor de proselitismo. Propaganda é a alma do negócio.
Mas, no caso das olimpíadas, a publicidade é irregular por dois motivos. Primeiro porque, da forma como é feita, deixa em situação constrangedora todos que não partilham da mesma crença. É evidente que a aceitação social está em jogo numa situação dessas. Na prática, a oração se torna uma obrigação que fere a liberdade constitucional de consciência e crença dos jogadores.
Além disso, o Comitê Olímpico Brasileiro é financiado por recursos públicos -2% da arrecadação bruta das loterias federais.
O que os atletas fizeram foi sequestrar aquele privilegiado espaço publicitário, pago com dinheiro de cidadãos brasileiros de todas as crenças e descrenças, para promover atividades sectárias que só beneficiam seus fins particulares, em detrimento de todos os demais cidadãos brasileiros.
Lamentavelmente, a sociedade ainda não presta atenção suficiente a esses abusos.
Hoje em dia, pega muito mal se um cristão for converter à força um negro, um índio ou um judeu, como tanto se fez nesta terra. Mas, no que diz respeito aos poderes públicos, somos todos, sim, cristãos à força: no preâmbulo da constituição, no dinheiro, no cerimonial dos poderes públicos, na simbologia de suas repartições, nas concessões públicas de rádio e TV, na destinação de recursos públicos e até nos esportes olímpicos.
Com a sua atitude, a seleção olímpica do país deixa de representar a mim e aos milhões de brasileiros não cristãos. Ao pessoal da seleção: esse é o resultado da sua oração. Valeu a pena? Sei que muitos dirão que sim. Esse é um dos aspectos mais corrosivos da religião: priorizando pretensos seres metafísicos em detrimento dos humanos de verdade, ela só causa sofrimento.
A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos já denunciou mais de um caso de sentenças judiciais em que magistrados se veem no direito de sentenciar cidadãos brasileiros a práticas religiosas cristãs, assim como a seleção sentenciou o Brasil a uma representação cristã. Desta maneira, não é de se admirar que 42% dos brasileiros vejam ateus com repulsa, ódio ou antipatia, o maior índice de rejeição conhecido no país.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.debates@uol.com.br
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15 agosto 2012

Seção final do artigo de Bernard Plé, “Auguste Comte on Positivism and Happiness”


Seção final do artigo de Bernard Plé, “Auguste Comte on Positivism and Happiness” 
(Journal of Happiness Studies, v. 1, p. 423-445, 2000. P. 442-443).

O artigo em questão é muito interessante. Nos últimos anos, diversos pesquisadores, originários de inúmeras áreas do conhecimento, têm proposto a inclusão da felicidade como parâmetro de desenvolvimento das sociedades; a criação de uma revista dedicada a esse tema ("Journal of Happiness Studies" - "Revista de Estudos sobre a Felicidade") ilustra bem essa tendência.

O trecho abaixo conclui um texto que se dedica a examinar a obra de Augusto Comte à luz dessa questão. Após tratar das características gerais do Positivismo - e, claro, após indicar que o Positivismo de Comte não é o "Positivismo" a que se refere meio-mundo, geralmente em tom negativo e acusatório -, o autor indica de que maneira a proposta política, científica e religiosa comtiana serve para o desenvolvimento da felicidade.

A fim de facilitar para aqueles que não têm fluência em inglês, ajuntei uma pequena tradução, logo após o trecho citado.

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I have sought to show that in identifying the natural order of the sciences as the frame of a new conception of the ‘world’, Comte embarks on the task of leading the way to a state of happiness. I have argued that in his quest for happiness, Comte insists on connecting scientific certainty with religious affections like love, veneration and reverence. Furthermore, I have argued that in stressing the importance of this consensus, Comte regards the state of happiness as a right living in the true order, first, of the world of which it is a part, and second, of the civilization in which it goes on evolving. In developing both arguments, I have been led to focus on the new science of life as the final step towards the state of happiness. What Comte regards as its ‘sacred’ mission is to show the fashion in which man’s power is being exerted in accordance with the world of law, and, at the same time, to remind modern man of the twofold heredity he continuously receives through the accumulated modifications both of the natural world and of the civilization he lives in. By leading modern man to gain clear insight into his position as part of a natural and social history, Comte seeks to reveal to the citizens of a new Republic the sphere of their dignity as well as of their happiness.

There are some important aspects in which my argument fits the fourfold matrix that Ruut Veenhoven has recently developed in order to analyse four main ‘qualities of life’[1]. Happiness as understood by Comte’s positivism can be conceived of as unifying all of these qualities. In the first place, it appears to be a far-reaching attempt, both scientific and political, aiming at ensuring not only the ‘liveability’ of the natural environment as a fruit of human intervention but also man’s ‘life-ability’ as knowledge of the natural limits within which his civilization may progress and modify the natural milieu it lives in. In the second place, such state of happiness appears to be a subjective ‘appreciation of life’ inasmuch as it represents a state of mental health and the fulfilment of modern man’s quest for certainty as to the order in which he lives. Finally, happiness appears to be the awareness of what Veenhoven’s matrix classifies as ‘utility of life’, that is, our awareness of being related both to the social order and to the natural milieu we inherit from the past. It is precisely here that happiness is to become noble, public and religious or, as Comte puts it, “le salut intellectuel de la société”.


Tradução:


Eu procurei apresentar que identificando a ordem natural das ciências como o quadro de uma nova concepção do “mundo”, Comte iniciou a tarefa de indicar o caminho para um estado de felicidade. Argumentei que nessa busca de felicidade, Comte insiste em conectar a certeza científica com os afetos religiosos como o amor, a veneração e a reverência. Além disso, argumentei que ao enfatizar a importância desse consenso, Comte percebe o estado de felicidade como um direito vivendo na verdadeira ordem, em primeiro lugar, do mundo de que é parte e, em segundo lugar, da civilização que se desenvolve. Ao desenvolver ambos esses argumentos, levei-me a focalizar na nova ciência da vida como a etapa final em direção ao estado de felicidade. O que A. Comte percebe como sua missão “sagrada” é mostrar a forma como o poder do ser humano está sendo exercido de acordo com o mundo da lei [natural] e, ao mesmo tempo, lembrar ao homem moderno da dupla hereditariedade que ele continuamente recebe por meio das modificações acumuladas, tanto do mundo natural quanto da civilização em que ele vive. Ao indicar ao homem moderno como obter perspectivas mais claras a respeito de sua posição como parte de uma história natural e social, Comte procura revelar aos cidadãos de uma República a esfera de sua dignidade, assim como de sua felicidade.

Há alguns importantes aspectos em que o meu argumento enquadra-se na matriz quádrupla que Ruut Veenhoven elaborou recentemente a fim de analisar quatro principais “qualidades de vida”[2]. A felicidade como entendida pelo Positivismo de Comte pode ser concebido como unificando todas essas qualidades. Em primeiro lugar, ele aparece como sendo uma tentativa de amplo escopo, tanto científica quanto política, com o objetivo de garantir não apenas a “vidabilidade” do ambiente natural como fruto da intervenção humana, mas também a “vida-habilidade” humana como conhecimento dos limites naturais em que sua civilização pode progredir e modificar o meio ambiente natural em que vive. Em segundo lugar, esse estado de felicidade aparece como uma “apreciação da vida” subjetiva, tanto quanto ela representa um estado de saúde mental e a realização da busca do homem moderno por certeza na ordem em que ele vive. Finalmente, a felicidade aparece como sendo a consciência do que a matriz de Veenhoven classifica como “utilidade da vida”, ou seja, nossa consciência de estarmos relacionados tanto à ordem social quanto ao ambiente natural que herdamos do passado. É precisamente aqui que a felicidade torna-se nobre, pública e religiosa, ou, como Comte diz, “a saúde intelectual da sociedade”.



[1] For this conceptual analysis, see Ruut Veenhoven, The Four Qualities of Life. Ordering Concepts and Measures of Good Life, in Journal of Happiness Studies, Vol. 1, nr 1 2000; especially §1.3 and §2.
[2] Para essa análise conceitual, cf. Ruut Veenhoven, The Four Qualities of Life. Ordering Concepts and Measures of Good Life, in Journal of Happiness Studies, Vol. 1, nr 1 2000; especially §1.3 and §2.