O ensino médio fragmentário, de disciplinas desconexas e que se pautam pela coleção de fatos, não é apenas um erro ao mesmo tempo pedagógico, filosófico e científico: acima de tudo, é um projeto político que visa a tornar o ensino irracional e ilógico, esvaziando a sua importância política.
O ensino que chamamos hoje de “médio” visa, ou deve visar, a fornecer elementos científicos aos estudantes. Esses “elementos científicos” não podem, não devem corresponder à acumulação de “fatos”, “dados”, fórmulas e informações, apresentadas apenas para serem decoradas. O problema não é apenas o decorar (embora, como alguns pensadores têm comentado, o simples decorar é inescapável) e o “empirismo” vulgar e vulgarmente associado a ele: o problema é que a fragmentação do conhecimento, via fragmentação do ensino, mina radicalmente a importância filosófica – e, portanto, política – que o ensino médio deve ter.
Qual essa importância filosófica? Em primeiro lugar, uma visão de conjunto sobre a realidade humana (cósmica e social). Em segundo lugar, a percepção de que o conhecimento humano é 1) relativo, 2) social, 3) histórico e 4) que somente pode existir na medida em que for assim (pois é dessa forma que ele é constituído). Em terceiro lugar, a percepção de que o conhecimento – especificamente científico – não se constitui pela acumulação de “fatos”, “dados” e fórmulas, mas pelas leis que ligam os fenômenos – sendo que tais leis são relações lógicas que os seres humanos criam.
A importância filosófica do ensino médio é, em si mesma, uma forma de utilidade. O conhecimento científico da realidade, por outro lado, oferece elementos para a ação prática; dessa forma, esse programa não é “literário”, no sentido de oferecer apenas elementos “teóricos”, sugerindo com isso que o único conhecimento digno é o da “vida do espírito”; mas também não considera que o único parâmetro válido de utilidade é o do mais grosseiro utilitarismo, em que o conhecimento somente seria válido a partir de sua aplicação prática imediata, na forma de algum tipo de tecnologia oriunda das ciências naturais.
Esse projeto de ensino, filosófico em sua essência e filosoficamente orientado, evita a fragmentação entre, por um lado, as chamadas “humanidades” e as Ciências Humanas e, por outro lado, as Ciências Naturais. O ser humano – ou melhor, a Humanidade – é o sujeito do conhecimento e o objetivo desse conhecimento: o ensino médio deve oferecer uma visão de conjunto disso, incluindo, além da realidade cósmica (Matemática, Astronomia, Física, Química e Biologia), a realidade propriamente humana (Sociologia, línguas, Filosofia e questões de cidadania). Esse programa, longe de ser inexeqüível, é na verdade o ideal a que mais ou menos se almeja atualmente; esse programa é positivista, de Augusto Comte, proposto pelo fundador do Positivismo desde o início de sua carreira madura, em 1830, quando se iniciou a redação do Curso de filosofia positiva – e, na verdade, foi das idéias-mestras de toda a elaboração positivista.
Um programa universalista, que enfatiza o ensino filosófico das ciências conjugado com o conhecimento de realidades humanas e sociais, deixa clara sua preocupação ao mesmo tempo psicológica (ao buscar a harmonia mental do ser humano) e política (ao defender o conhecimento científico da realidade e, portanto, a afirmação de que a ciência é uma forma mais adequada para o conhecimento da realidade e para a intervenção nessa mesma realidade). De passagem, convém indicar que esse programa, laico, é fortemente inspirado pelo Iluminismo e pela Enciclopédia, agregando-se a ele o caráter histórico do ser humano (e, portanto, da razão).
A fragmentação desse ensino, ou melhor, a não realização do projeto acima indicado, não é algo fortuito, bem como não é fortuita a reiterada afirmação de que justamente o ensino fragmentário é “positivista”. Não sendo fortuitos esses acontecimentos, importa saber a quais interesses atendem.
O que parece mais decisivo é a busca da neutralização política do conhecimento positivo, no sentido amplo e integrado indicado acima. A variável importante aqui é religiosa: sendo inescapável o conhecimento racional e humano da realidade, a melhor forma de neutralizá-lo é combater a sua apresentação articulada e coerente, propondo, em seu lugar, uma coleção de fatos e idéias fragmentárias, marcadas por uma racionalidade instrumental bastante rasteira. Essa forma de ensino é mais ou menos independente do “grande capital” e dos “grandes poderes”: tanto em um caso como em outro, o que importa é manter a acumulação de capital ou a dominação, mas eles acontecem em qualquer regime; por outro lado, são auxiliados poderosamente por um ensino (e, daí, por uma visão de mundo) incoerente e que não aponta para lugar algum. Ainda assim, o capital e o poder em si não têm nada a dizer a respeito do ensino, pois o que está em questão são idéias; dessa forma, os “interesses” filosóficos ou “ideológicos” mais atingidos pela visão de mundo científica são aqueles que opinam sobre questões de ensino e, dessa forma, podem combater a visão integrada do ser humano baseada no conhecimento da realidade social e cósmica. Considerando esses elementos, não é difícil perceber que são as forças religiosas, ou melhor, as teológicas aquelas que mais têm a lucrar com a fragmentação do ensino (atuando, secundariamente, como se sabe, como linhas de força favoráveis a interesses econômicos e políticos).
Em termos mais concretos, não é difícil perceber que as igrejas teológicas exercem de fato uma atividade desse tipo no Brasil republicano: desde pelo menos a Revolução de 1930, a Igreja Católica e, nas últimas décadas, também as igrejas evangélicas pentecostais têm exercido uma pressão crescente sobre o Estado brasileiro, tanto a favor de privilégios religiosos oficiais (especialmente no caso da Igreja Católica), quanto a favor seja do “ensino religioso” oficial e obrigatório nos currículos, seja de uma visão de mundo teológica nos currículos. Isso é perceptível pela presença maciça de representantes das igrejas nas mais variadas instâncias decisórias da educação de membros das várias igrejas cristãs presentes no Brasil.
A realidade desses fatos é mascarada nas discussões acadêmicas e políticas sobre ensino no Brasil por duas séries de motivos, que não poucas vezes unem-se em uma terceira série. A primeira e mais evidente é que, sendo muitos dos operadores e dos “analistas” de questões educacionais no Brasil vinculados (passiva ou ativamente, implícita ou explicitamente) a essas igrejas, o favorecimento a elas fica obscurecido ou escamoteado. Em segundo lugar, há no Brasil também uma tradição analítica que enfatiza os elementos “materiais” (políticos e, acima de tudo, econômicos) na compreensão da realidade social, de tal sorte que as questões especificamente intelectuais e morais – educacionais, em outras palavras – são “contraditoriamente” postas em segundo plano, pois consideradas como variáveis dependentes. (Essa visão de mundo, claro, é basicamente marxista, mas há uma série de derivações filosóficas que se informam nela mas sem serem propriamente marxistas: Habermas entraria nessa categoria, assim como, até certo ponto, Lyotard e vários pós-modernos.) A terceira série de motivos é a fusão das duas séries anteriores, em que há cristãos ocultando ou disfarçando suas motivações profundas a partir de perspectivas “críticas” (“contra o capitalismo e a exploração”): não é difícil perceber esses gêneros de discurso e de prática nas universidades e nos conselhos de educação.
Essas atuações político-pedagógicas são visíveis de uma perspectiva que enfatiza as instituições, mas o fato é que não podemos deixar de lado as simples modas acadêmicas e intelectuais que a cada momento desempenham seu papel. Nesse sentido, uma das modas intelectuais atuais é o pós-modernismo, com seu elogio da fragmentação intelectual e política como virtudes sociais e lógicas – e, daí, com o irracionalismo, com uma posição contrária à ciência e com o seu conservadorismo. O pós-modernismo tornou-se aliado da teologia, ao associar a ela o multiculturalismo como afirmação ultrarrelativista de que todos os conhecimentos têm epistemologicamente o mesmo valor e que, portanto, suas validades teóricas e políticas são idênticas para a sociedade. Isso é diferente do respeito devido às diferentes culturas, sejam elas próprias à nossa sociedade, sejam elas de culturas estrangeiras: é a afirmação social, política e científica de que a ciência não tem maior valor que outras formas de “conhecimento” e, não raras vezes, que a ciência é “irracional”. Bem percebidas as coisas, isso tudo equivale a que o obscurantismo deve ser cientificamente validado.
Há um outro aspecto das filosofias pós-modernas que se baseia nesse irracionalismo e que produz conseqüências diretas para os currículos, em particular no sentido que vimos discutindo e criticando até aqui: a idéia de que tudo é luta e apenas luta (pelo poder), não havendo espaço para a discussão racional e para uma visão racional, coerente e positiva da realidade; na verdade, essa perspectiva considera que a visão racional e generosa é apenas mais um instrumento na disputa pelo poder de uns grupos sobre outros. Se a lei da jungle é o que regula a sociedade, não há porque pretender que os currículos caracterizem-se por qualquer tipo de coerência ou racionalidade; no final das contas, eles serão refletirão apenas e tão-somente os resultados instáveis das lutas pelo poder, representando as visões de mundo dos dominadores de plantão.
Tornando-se fragmentário e sem sentido, o ensino médio torna-se mais vulnerável a ser modificado em função do vestibular. Evidentemente, o vestibular tem que se basear nos conhecimentos adquiridos pelos candidatos a vagas nas universidades durante o ensino médio; por outro lado, como os estudantes universitários devem estar minimamente preparados em termos teóricos e metodológicos para ingressar no ensino superior, é claro que o ensino médio não pode ignorar as exigências do ingresso na universidade. Todavia, uma coisa é reconhecer essas relações entre ensino superior e ensino médio; outra coisa, muito distinta, é orientar o ensino médio para a realização do vestibular. Ora, o ensino médio tem uma função filosófica (pedagógica e cívica) toda própria, que deve ser respeitada; além disso, nem todos os estudantes secundaristas querem seguir estudos de nível superior. Dessa forma, não há justificativa para modelar um complexo programa de estudos em função de uma prova seletiva a que apenas alguns estudantes desejam submeter-se: bem ao contrário, é o vestibular que, a partir das habilidades requeridas para o acesso ao nível superior, tem que se adequar aos conhecimentos do ensino médio[1].
[1] Um exemplo de perspectivas que vão em parte na direção oposto ao que esboçamos acima é a recente decisão do Conselho Estadual de Educação de Minas Gerais a favor da criação de duas linhas para o ensino médio mineiro – uma voltada para as humanidades, outra para as ciências naturais –, em função dos cursos superiores a que os secundaristas podem, talvez, concorrer. Essa decisão fragmenta da pior maneira possível o ensino médio, ao opor duas séries de conhecimentos que têm validade intrínseca e que devem ser ensinados em conjunto, além de independentemente do vestibular.