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04 janeiro 2024

Augusto Comte: "Teoria geral da religião" (SPP II, cap. 1)

Encontra-se digitalizada e disponível para consultar (e para baixar) a tradução do capítulo 1 do volume II do Sistema de política positiva, de Augusto Comte (originalmente publicado em 1852). A tradução foi feita em 2004 pelo positivista paranaense Pedro Bertomé de Mendonça e publicada em edição privada em 2005; ela apresenta uma série de anotações e documentos adicionais explicativos.




24 maio 2023

Teoria positiva da religião

No dia 3 de São Paulo de 169 (23.5.2023) fizemos nossa habitual prédica positiva. Na parte da leitura comentada, demos continuidade e concluímos a "Sexta conferência" do Catecismo positivista, dedicada ao conjunto do dogma; no sermão reapresentamos a teoria positiva da religião.

As anotações que serviram de base para a o sermão estão reproduzidas abaixo.

A prédica pode ser vista nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/sQgY8) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://acesse.one/xdGrS). O sermão começa aos 54' 15".

*   *   *



Sobre a religião

 -        A idéia de religião é um dos mais importantes e centrais do Positivismo; isso não poderia ser diferente, na medida em que o seu nome adequado é “Religião da Humanidade”

-        Antes de vermos o conceito de religião no Positivismo, temos que fazer uma observação prévia fundamental: para o Positivismo, “religião” e “teologia” são coisas muito diferentes

o   A teologia é uma das formas de conceber-se a religião

o   De acordo com a lei dos três estados, todo conceito passa, ao longo do tempo, por três estados – teológico, metafísico e positivo (o que também pode ser entendido como passando do absolutismo para o relativismo) –; assim, a religião começa teológica, assume um aspecto metafísico e, chegando à relatividade, torna-se positiva

o   As religiões teológicas são, pela ordem: o fetichismo (e a astrolatria), o politeísmo, o monoteísmo; as religiões metafísicas são o panteísmo, crenças sobrenaturalistas intelectualistas e espiritualistas de modo geral, as crenças materialistas e até o ateísmo; a religião positiva é, por definição, o Positivismo, ou melhor, a Religião da Humanidade

-        Para o Positivismo, a religião é a instituição que coordena e regula o conjunto da existência humana, em seus vários aspectos: afetivo, intelectual e prático; coletivo e individual; público e privado

o   A religião deve ser entendida em termos de religare, isto é, “re-ligar”, ligar duas vezes

§  Conferir a unidade individual (pelo amor) e ligar cada um de nós aos demais (pela fé)

§  Uma outra forma de ver isso é entender em termos de regrar o ser humano e reunir todos para com todos (em francês: regler e rallier)

-        A organização da natureza humana é a divisão mais básica para entendermos a Religião da Humanidade

o   Cada uma das partes da natureza humana é regulada com instituições específicas: os sentimentos pelo culto, a inteligência pelo dogma, a atividade prática pelo regime

o   Na verdade, a divisão tríplice da natureza humana baseia-se em uma divisão dual anterior: o amor e a , sendo que o amor, por sua vez, divide-se em sentimentos e atividade

o   No que se refere à natureza humana, o aspecto mais importante são os sentimentos; eles são o fundamento da existência humana e o objetivo último de todas as nossas atividades

o   A inteligência indica os meios para satisfação dos sentimentos e, assim, é a ministra do coração; a atividade prática provê os meios para tal satisfação e é o regulador geral da existência humana

-        A religião – ou seja, a coordenação e regulação geral da existência humana – é necessária porque o ser humano tem inúmeras características que, por um lado, exigem regulação e que, por outro lado, exigem coordenação (quando não subordinação)

o   O problema fundamental do ser humano não é nem propriamente o chamado “problema da coordenação”, que é a dificuldade de organizar os muitos indivíduos em ações coletivas; essa dificuldade sempre existe, mas ela é secundária e derivada do problema realmente fundamental

o   O problema fundamental é multiplicidade e maior força dos instintos egoístas e o menor número e a maior fraqueza dos instintos altruístas

o   Tanto uns quanto outros existem naturalmente e são reais, são efetivos; mas ao longo da história humana, o egoísmo foi mais forte que o altruísmo (embora o altruísmo ganhe intensidade com o passar do tempo)

o   Além disso, há uma multiplicidade de instintos, sejam egoístas, sejam altruístas; o egoísmo, que se compõe de oito instintos e divide-se em interesse e ambição, tem seus instintos específicos competindo entre si pela primazia o tempo todo, o que gera instabilidades constantes, sejam individuais, sejam coletivas

o   Já o altruísmo tem menos instintos específicos (apego, veneração e bondade) e com menor intensidade, mas eles são harmônicos entre si e, quando devidamente estimulados e orientados, conseguem subordinar e coordenar o egoísmo: daí provêm a nobreza e a força do altruísmo

-        A solução para o problema humano, então, é a primazia do altruísmo e a subordinação do egoísmo a ele

o   A parte da religião que regula e estimula diretamente os sentimentos é o culto

o   O altruísmo é inato; como observou Augusto Comte, apenas o cinismo e o egoísmo poderiam negar essa realidade, seja devido ao egoísmo sacramentado pela teologia, seja devido ao intelectualismo academicista

o   A primazia do altruísmo ocorre tanto pelo estímulo direto dos sentimentos altruístas (subjetivamente) quanto pela vida coletiva (objetivamente)

§  A mera vida coletiva força-nos a limitar o egoísmo e a desenvolver o altruísmo

o   É sempre importante lembrar: subordinar o egoísmo não equivale a negar o egoísmo: este continua existindo, mas é restringido em sua intensidade e, na medida do possível, é satisfeito por vias altruísticas

§  A solução do problema humano e a relação entre altruísmo e egoísmo é dada pela fórmula “viver para outrem”

§  Qualquer aperfeiçoamento exige a admissão prévia de imperfeição, que, por sua vez, exige a admissão de uma perfeição (ideal ou não) que está acima de nós: assim, o aperfeiçoamento sempre exige a submissão

·         A submissão com vistas ao aperfeiçoamento comprime o egoísmo e desenvolve (direta ou indiretamente) o altruísmo

§  Mas é claro que é preferível, ainda que não se possa realizá-lo exclusivamente, o estímulo direto do altruísmo

·         O estímulo do altruísmo é a ternura; a compressão do egoísmo é a pureza

o   Evidentemente, o enunciado teórico, abstrato, do problema humano é bastante simples, mas a solução concreta do problema humano é de solução complicada, pois a subordinação do egoísmo ao altruísmo tem que ser constante e permanente, além de ocorrer ao mesmo tempo em indivíduos e nas coletividades

§  Por isso, todos os esforços possíveis devem ser envidados, o tempo todo, o máximo que se puder, para que o problema humano seja satisfeito

§  A satisfação do problema humano exige a mobilização de toda a natureza humana, ou seja, a inteligência e a atividade prática devem, necessariamente, ajudar ativamente os sentimentos nesse esforço

§  Quando o problema humano é satisfeito e a natureza humana concorre toda ela para sua satisfação, nós temos a harmonia, com a felicidade individual e o bem-estar coletivo

·         Tal satisfação é possível e ocorre mais ou menos em diversas sociedades e ao longo de nossas vidas

o   Vale também lembrar que o estímulo do altruísmo ocorre também por meio da idealização, seja a poética, seja a intelectual (seja mesmo a prática, por meio de projetos)

o   Por fim: o estímulo do altruísmo e a perspectiva social constituem o padrão de moralidade do Positivismo

§  Inversamente, o que dificulta ou nega o altruísmo e/ou o caráter social do ser humano constitui a imoralidade

§  O mais importante desenvolvimento de que o ser humano é capaz é o progresso moral

-        Como indicamos antes, a inteligência é ministra do coração, no dogma

o   Isso quer dizer que a inteligência explica a realidade, esclarece os sentimentos, indica os meios de satisfazer as necessidades afetivas, corrige rumos: tudo isso é, de fato, muita coisa; mas ser “muita coisa” não equivale a que a inteligência seja a fonte ou a destinação da existência humana

o   Sempre que se considera que a inteligência é a origem das orientações fundamentais do ser humano, o resultado é que a inteligência permanece ministra do coração, mas o coração passa a obedecer – sem que se reconheça isso – ao egoísmo, geralmente ao orgulho e/ou à vaidade

§  Essa relação é dada pela fórmula “agir por afeição e pensar para agir”

o   A parte da religião que regula a inteligência é o dogma; o dogma, por sua vez, deve ser entendido como tendo pelo menos duas grandes partes: uma primeira, concreta e abstrata, relativa ao conjunto dos conhecimentos humanos mais ou menos dispersos, e uma segunda parte, abstrata e filosófica: esta segunda parte é chamada de “síntese” e corresponde ao trabalho intelectual que constitui a religião

o   Além de auxiliar os sentimentos e a atividade prática, a inteligência também pode e deve, ela mesma, tornar-se mais altruística

§  Isso se dá por meio das idealizações intelectuais, na medida em que toda abstração consiste em idealizações da realidade

§  Uma forma indireta, mas fundamental, de tornar altruística a inteligência é assumir o relativismo dos conhecimentos humanos, rejeitando o absolutismo e as preocupações absolutas

§  Também é importante lembrar que todos os conhecimentos humanos convergem para a Moral, seja como ciência, seja como arte

-        A atividade prática é regulada pelo regime

o   É importante notar que, ao mesmo tempo em que o regime deve ser, por si só, regulado, ele também é um importante regulador, tanto dos sentimentos quanto, principalmente, da inteligência

§  Vale notar que a inteligência submete-se duplamente: aos sentimentos e à atividade prática

o   A importância da atividade prática é mais ou menos evidente: apenas por meio das atividades práticas é que o ser humano relaciona-se com outros seres humanos e que pode realmente satisfazer suas necessidades

§  Mesmo os sentimentos só têm valor quando resultam em ações concretas, no sentido de que os atos sempre contam mais que as intenções

o   É por meio da atividade prática que se realiza principalmente o caráter coletivo do ser humano: logo, é sempre imperativo tratar com grande atenção desse âmbito, para que o problema humano seja satisfeito também coletivamente

o   A atividade prática também confere uma utilidade e, daí, uma orientação efetiva para a inteligência – que, como sabemos, entregue a si mesma, descaminha-se com enorme facilidade

o   É devido às íntimas relações, às vezes indiretas, entre os sentimentos e a atividade prática (em particular em contraposição à inteligência, ou seja, à “fé”), que esses dois aspectos da natureza humana correspondem ao âmbito geral do “amor” na religião

o   O regime é regulado por diversas fórmulas, mas a que é especialmente dedicada à atividade prática é o “viver às claras”

§  Outras fórmulas do regime: a já indicada “agir por afeição e pensar para agir”; “o capital é social em sua origem e deve ser social em sua destinação”; “dedicação dos fortes pelos fracos, devotamento dos fracos pelos fortes”

-        Todos esses aspectos são coordenados no Positivismo, na síntese subjetiva positivista; entretanto, a síntese por si só é uma elaboração intelectual, faltando então uma concepção que congregue a síntese intelectual com a simpatia afetiva e a sinergia prática: essa concepção é a “Humanidade” – daí a “Religião da Humanidade”

o   A Humanidade deve ser entendida como o conjunto de seres humanos passados, futuros e presentes, de tal modo que a continuidade humana, dada pelas populações subjetivas, seja sempre afirmada sobre a solidariedade, dada pelos agentes presentes

§  Os animais, especialmente os domésticos e os mais diretamente úteis, integram a Humanidade; da mesma forma, por meio do neofetichismo, o meio ambiente (a Terra, o Sol, a Lua) e muitos objetos também integram a Humanidade

o   A Humanidade é um ser compósito e subjetivo: ele é composto por muitos pequenos agentes, que atuam de maneira coletiva e que se reúnem subjetivamente para cada um de nós

o   A Humanidade não é um ideal distante de nós (embora, por meio da idealização, esteja distante das paixões): cada um de nós tem acesso direto a representantes concretos, objetivos, do Grande Ser: mães, esposas, irmãs; famílias, grupos de amigos, pátrias (ou melhor, mátrias)

o   Rigorosamente, os seres humanos vivos não integram a Humanidade: a incorporação é um sacramento póstumo, realizado sete anos após a transformação de cada agente concreto

§  Em outras palavras, devemos merecer a incorporação à Humanidade

o   A Religião da Humanidade só foi possível graças ao desenvolvimento histórico do ser humano, em termos de culto, dogma e regime

§  Antes de um limiar de desenvolvimento do ser humano simplesmente não era possível a Religião da Humanidade, embora tenham havido antes ensaios mais ou menos próximos desse ideal

·         Para que fosse possível a instituição da Religião da Humanidade, as diversas forças e capacidades humanas tiveram que se desenvolver: o dogma positivo teve que ser completado, o relativismo teve que se afirmar em sua totalidade, a atividade pacífico-industrial teve que se sobrepor crivelmente à guerra, a noção planetária de humanidade teve que se tornar possível em face das famílias e das pátrias

o   Isso tudo só ocorreu a partir do século XIX e, em particular, na Europa Ocidental

·         Os ensaios prévios foram a Roma antiga (da instituição da República até o final do século II) e, em menor grau, a China confuciana

29 março 2022

Curso livre de política positiva: roteiro da 3ª sessão

Reproduzo abaixo o roteiro da terceira sessão do Curso livre de política positiva, ocorrida no dia 22 de março, transmitida no canal Facebook.com/ApostoladoPositivista e também disponível no canal The Positivism (aqui).

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Súmula

Preliminares à Política Positiva III: Estática e Dinâmica; a síntese subjetiva; o estado normal

Sociologia Estática I: teoria da religião: concepções e regulações gerais da existência humana

 

Roteiro

-        Preliminares à Política Positiva III:

o   Estática e Dinâmica

§  São duas perspectivas complementares

·         Diretamente derivadas da concepção de lei natural: relações constantes em termos de coexistência ou de sucessão

·         É a constância na variedade

·         Esboçadas na Biologia, essas duas perspectivas são aplicáveis a todas as ciências

§  Divisão de perspectivas

·         A Estática representa os elementos fundamentais de cada sociedade, presentes em toda sociedade

·         A Dinâmica representa o desenvolvimento encadeado desses elementos ao longo do tempo, com suas inter-relações

§  Elementos da Estática Social: religião, propriedade, família, linguagem, governo (temporal e espiritual); teoria das variações

·         São definidos como os tipos fundamentais para os quais tendem esses elementos no estado normal

§  Elementos da Dinâmica: as três leis dos três estados; lei de classificação das ciências; marcha própria ao Ocidente (fetichismo, teocracia; Grécia, Roma, Idade Média; transição revolucionária; Positivismo)

o   A síntese subjetiva:

§  Visão de conjunto (em termos de natureza humana, de concepções e de objetivos): filosofia, arte, indústria, política, ciência

·         Essa visão de conjunto baseia-se no primado da moral sociológica sobre a existência humana

·         Todos devem entendimentos gerais sobre tudo; em contraposição, a atuação prática é sempre parcial

§  Subordinação da inteligência à afetividade e à atividade prática

·         Relações íntimas entre simpatia, síntese e sinergia

§  Concepções que explicam e regulam o conjunto das realidades humanas e cósmica

§  Afirmação da preponderância normal das ciências superiores (Sociologia e Moral) sobre as ciências inferiores (Matemática até a Biologia), ao mesmo tempo em que “os fenômenos mais nobres subordinam-se aos mais grosseiros”

·         Isso naturalmente estabelece o que se chama hoje de “multi” e “transdisciplinaridade”

·         O altruísmo e o egoísmo são inatos (ou seja, são naturais); mas: a maior fraqueza do altruísmo e o desenvolvimento histórico da paz, da indústria e da ciência exigem o emprego constante e permanente de todos os recursos sociais e individuais disponíveis para a afirmação do altruísmo

§  Unidade da ciência: estabelecida subjetivamente (isto é, filosoficamente); multiplicidade e autonomia das ciências; homogeneidade de método e de doutrina

§  Estabelece não apenas o que se pode conhecer e fazer, mas, acima de tudo, o que se deve fazer (ou não fazer)

§  Definição da moralidade: estímulo e prática do altruísmo (ternura), compressão do egoísmo (pureza)

o   O “estado normal”

§  O estado normal consiste em uma idealização que considera equilíbrios dinâmicos da natureza humana (individual e coletivamente)

·         Essa idealização é uma prescrição que, por sua vez, baseia-se nas descrições da Sociologia e da Moral por meio da síntese subjetiva

·         Até certo ponto, é aceitável considerar que o estado normal é uma utopia positivista – mas convém notar que Augusto Comte reserva a palavra utopia para uma outra elaboração específica

§  Esses equilíbrios dinâmicos mantêm os três elementos da natureza humana (sentimentos, inteligência e atividade) coordenados

§  Não se trata mais de manter um equilíbrio estático (como nas teocracias iniciais) nem de desenvolver apenas um elemento da natureza humana às expensas dos outros (como na Grécia, em Roma e na Idade Média)

§  O caráter dinâmico desse equilíbrio indica que ele modifica-se continuamente ao longo do tempo e que, portanto, tem que ser restabelecido continuamente

·         A permanência desses equilíbrios é um dos argumentos que justificam a existência e a permanência da Religião da Humanidade, isto é, do novo poder Espiritual adequado a tal situação

§  Na medida em que é um equilíbrio dinâmico e que é uma idealização, aproximamo-nos mais ou menos dele, sem jamais o atingir plenamente

·         Augusto Comte usa a metáfora da reta assintótica: um limite para o qual tendemos continuamente, sem jamais o atingir

·         Considerando a plena positividade, a noção do “estado normal” justifica a máxima segundo a qual “o ser humano torna-se cada vez mais religioso”

§  A palavra “normal”, no âmbito do Positivismo, refere-se portanto ao “estado normal”

-        Estática Social: teoria da religião

o   Observação preliminar: para o Positivismo, “religião” é diferente de “teologia”

o   A religião é o estado de unidade humana individual e social; afetiva, intelectual e prática; por seu turno, a teologia é uma das formas de entender a religião

§  A confusão entre religião e teologia é a mesma que se dá entre os fins (a unidade humana) e os meios (as sínteses teológicas)

§  A idéia de “síntese”, portanto, sugere do ponto de vista intelectual o que a religião propõe para o conjunto da existência humana

§  Como a religião refere-se à unidade do conjunto da existência humana e como essa existência refere-se também, necessariamente, à existência prática, é necessário falar em religião para entender-se a “política positiva” (seja em termos científicos, seja em termos “políticos”)

§  Augusto Comte sugere que a religião é um consenso da alma

§  No início do cap. 1 da Política positiva, Augusto Comte faz uma belíssima retrospectiva histórica das variedades de religião: espontâneas, inspiradas, reveladas, demonstrada: fetichismo, politeísmo, monoteísmo, positivismo

o   A noção de religião regular e une efetivamente as existências individual e coletiva

§  Para o Positivismo, portanto, não faz sentido a oposição absoluta entre sociedade e indivíduo

§  A ligação entre sociedade e indivíduo via religião dá-se por meio das duas funções específicas da religião: regrar e religar (em francês: regler et rallier)

·         A religião regra o indivíduo e religa-o aos demais

·         Para Comte, não por acaso, a etimologia de religião é o latim religare

§  Os vínculos indivíduo-sociedade são variáveis de acordo com a fase histórica considerada

o   A noção de uma realidade externa, objetiva, independente da vontade humana é necessária para o desenvolvimento da religião, em particular no que se refere à parte de regrar (por meio da veneração)

§  A harmonia individual baseia-se sobre uma base dupla: na subordinação do egoísmo ao altruísmo (afetivamente) e na preponderância da realidade exterior (intelectual e praticamente)

o   A ciência suprema é a Moral, mas a base da moralidade positiva é sociológica (e não individual)

§  Uma forma de entendê-lo é por meio da fórmula: “entre o homem e o mundo é necessária a Humanidade”

§  Assim, a noção de Humanidade é o centro da concepção de religião positiva

·         Amor, Ordem, Progresso: aptidão afetiva, natureza intelectual, destinação ativa

25 março 2022

Curso livre de política positiva: vídeo da 3ª sessão

No dia 22 de março ocorreu a terceira sessão do Curso livre de política positiva, com transmissão ao vivo no canal do Facebook Apostolado Positivista: Facebook.com/ApostoladoPositivista.

Nessa sessão apresentamos os conceitos de Estática e Dinâmica; método subjetivo; estado normal; teoria da religião.

Houve alguns problemas na transmissão, que teve que ser interrompida e reiniciada. Apesar dessa dificuldade, reuni as duas partes da exposição em um único vídeo, disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=8Yjp1UDuoeg.

A programação completa do Curso pode ser vista aqui.



28 junho 2020

Augusto Comte: o cão doméstico e o leão enjaulado

O trecho abaixo é um dos mais famosos escritos pela pena de Augusto Comte. Ele foi redigido em 1852 no v. 2 do seu Sistema de política positiva, que foi dedicado à exposição da estática social, isto é, da teoria da ordem; em particular, ele está no cap. 1, que por sua vez é dedicado à teoria geral da religião, ou "teoria positiva da unidade humana". 

(Vale notar que a teoria positivista da religião é de fato uma teoria geral da religião, pois não se limita a considerar que a "religião" é apenas a teologia, como aliás todos os filósofos e cientistas sociais fazem quase desde sempre: para Augusto Comte, a religião é o "re-ligare", é cada indivíduo ligar-se duas vezes, a primeira internamente (produzindo a harmonia mental individual) e a segunda externamente (resultando na harmonia social). Nesses termos, a religião para Augusto Comte pode ser teológica, metafísica ou positiva: a religião positiva, ou seja, o Positivismo, a Religião da Humanidade, é uma religião humanista, imanente, altruísta, histórica, relativa... todos esses predicados permitem que ela consagre o progresso social sendo também um elemento da ordem.)

O trecho abaixo apresenta uma belíssima comparação entre o cachorro doméstico e o leão enjaulado, a título de ilustrar a idéia de que a verdadeira harmonia mental e moral, por um lado, tem que ser voluntária e, por outro lado, tem que incluir a veneração pelos mais velhos, pelos superiores, pelos mais fortes. O caráter voluntário é condição para que a veneração não se torne abjeta nem desprezível; inversamente, a submissão dos mais fracos, dos inferiores e dos posteriores tem que ser complementada sempre e necessariamente pelo respeito e pela dedicação dos mais fortes, dos superiores e dos anteriores. Em outras palavras, a submissão - como todos os verdadeiros laços sociais - implica sempre um sistema de mútuos deveres, de complementaridades.

A comparação entre o cachorro doméstico - que é um dos melhores, se não o melhor, exemplo de dedicação voluntária de um animal para seu dono - e o leão enjaulado serve de ilustração preparatória para a comparação entre os proletários antigos (isto é, da Antigüidade clássica, greco-romana) e modernos. A referência aos animais não busca degradar os trabalhadores, como deve(ria) ser evidente; o que importa aí é indicar que as características afetivas e morais do ser humano são compartilhadas por vários animais superiores e que, assim, é possível ao mesmo tempo entendermos um pouco de nossa própria natureza ao comparar-nos com alguns animais superiores e também deixar de lado o orgulho - de origem teológica e mantido pela metafísica - de que apenas o ser humano teria características morais (o que é vertido pela teologia na concepção de que apenas os seres humanos, e apenas algumas "raças" entre nós, teriam "alma").

Adicionalmente, o trecho abaixo expõe de maneira clara que o Positivismo não é uma forma de mecanicismo moral e social, que ele não é contra a afetividade, que ele não é contra a subjetividade, que ele não é contra o estudo das intencionalidades humanas - mais uma vez, ao contrário do que diz a quase totalidade dos filósofos e cientistas sociais que se referem ao Positivismo e que apenas fingem conhecê-lo.

Após a citação em português incluímos o texto original em francês.

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“Para melhor caracterizá-la [a disposição afetiva e coletiva do ser humano], retomemos por um momento a disposição teórica que prevaleceu mais ou menos até a época muito recente em que a Biologia demonstrou suficientemente a existência natural das afeições benevolentes. A unidade moral não poderia então resultar senão de um princípio egoísta. Ora, já provei suficientemente a inaptidão espontânea de um tal regulador. O sentimento de dependência exterior não poderia realmente o substituir. Por mais profunda que possa ser essa crença, ela inspira no máximo uma resignação forçada, se o exterior opuser uma resistência evidentemente intransponível. Mas essa triste situação moral difere muito da verdadeira disciplina afetiva, que deve sempre ser livre para tornar-se plenamente eficaz. É fácil senti-lo ao comparar o estado moral de um cachorro doméstico com o de um leão cativo. Quando uma longa experiência inspira ao segundo uma resignação passiva, a unidade moral não existe nele: ele flutua sem cessar entre uma luta impotente e um ignóbil torpor. Ao contrário, o desenvolvimento emocional do primeiro torna-se direto e contínuo assim que ele é capaz de subordinar suas inclinações egoístas aos seus instintos simpáticos. A comparação torna-se ainda mais decisiva ao opor-se o escravo antigo ao proletário moderno. Ainda que ambos, em termos materiais, apresentem quase a mesma existência pessoal, tanto ativa quanto passiva, a liberdade deste é unicamente o que o torna suscetível à verdadeira unidade moral, ao permitir o desenvolvimento de seus afetos benevolentes. A condição mais dura da escravidão antiga consistia, nas belas almas, em não poder nunca realmente viver para outrem, suas funções sendo sempre forçadas ou, pelo menos, sendo supostas assim. Também sentimos até que ponto a convicção usual da sujeição externa está longe de bastar para a unidade humana, embora seja indispensável até certo ponto. Afinal, quando essa dependência torna-se intensa demais, ela impede mesmo a disciplina afetiva que tende a resultar de um desenvolvimento espontâneo dos instintos altruístas. A felicidade e a dignidade de todos os seres animados requerem, portanto, o concurso habitual de uma necessidade sentida e de uma livre simpatia” (Augusto Comte, Sistema de política positiva, 1929 (1852), v. II, p. 15).


“Afin de mieux caractériser, reprenons un moment la disposition théorique qui prévalut plus ou moins jusqu’à l’époque trés-récente où la biologie démontra suffisamment l’existence naturelle des affections bienveillantes. L’unité morale ne pouvait alors résulter que d’un principe égoïste. Or, j’ai assez prouvé déjà l’inaptitude spontanée d’un tel régulateur. Le sentiment de la dépéndance extérieure ne saurait y suppléer réellement. Quelque profonde que puisse être cette croyance, elle inspire tout au plus une résignation forcée, si le dehors oppose une résistance évidemment insurmontable. Mais cette triste situation morale diffère beaucoup d’une véritable discipline affective, qui doit toujours être libre pour devenir pleinement efficace. Il est aisé de le sentir en comparant l’état moral d’un chien domestique avec celui d’un lion captif. Quand une longue expérience inspire au second une passive résignation, l’unité morale n’existe point en lui : il flotte sans cesse entre une lutte impuissante et une ignoble torpeur. Au contraire, l’essor affectif du premier devient direct et continu aussitôt qu’il a pu subordonner ses penchants égoïstes à ses instincts sympathiques. La comparaison se trouve encore plus décisive en opposant l’esclave antique au prolétaire  moderne. Quoique tous deux, sous le rapport matériel, présentent à peu près la même existence personnelle, tant active que passive, la liberté de celui-ci le rend seul susceptible d’une véritable unité morale, en permettant l’essor de ses affections bienveillantes. La plus dure condition de l’ancien esclavage devait consister, chez les belles âmes, à ne pouvoir jamais vivre réellement pour autrui, leur office étant toujours forcé, ou du moins supposé tel. On sent aussi combien la conviction habituelle de l’assujettissement extérieur est loin de suffire à l’unité humaine, quoiqu’elle y soit indispensable à un certain degré. Car, lorsque cette dépendance devient trop intense, elle empêche même la discipline affective qui tend à résulter d’un essor spontané des instincts altruistes. Le bonheur et la dignité de tout être animé exigent donc le concours habituel d’une nécessité sentie et d’une libre sympathie”.