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13 outubro 2025

Recuperar e revalorizar a 1ª República

No dia 13 de outubro de 2025, o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo "Recuperar e revalorizar a I República".

Reproduzimos abaixo a publicação. O original pode ser lido aqui.

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Recuperar e revalorizar a 1ª República

É erro dizer que foi um longo período oligárquico com viés antissocial Por Gustavo Biscaia de Lacerda


Proclamação da República (quadro de Benedito Calixto, domínio público)

Pode parecer estranho, à primeira vista, defender atualmente a 1ª República no Brasil. É bem verdade que, lamentavelmente, na última década, as mais estranhas propostas políticas foram defendidas — desde golpes fascistas até o parlamentarismo, passando pelo retorno da monarquia. Essas propostas devem ser entendidas como aberrantes e, se não vivêssemos uma época de profundas crises morais e políticas, já deveriam ter sido descartadas sumariamente, compreendidas como as tolices que de fato são.

O mesmo já não se dá com a defesa da 1ª República, isto é, com o regime brasileiro de 1889 a 1930. O estranhamento a essa proposta se deve ao sucesso obtido pelas críticas feitas contra a República desde cerca de 1915 — na verdade, considerando a atuação dos monarquistas, desde antes — e, em particular, a partir de 1930. A respeito da I República, temos então que considerar pelo menos: (1) a motivação das críticas dirigidas contra ela e (2) o alto custo político, moral e social dessas críticas.

Bem ou mal, sempre houve e há críticas aos regimes políticos: pensemos na extremamente agressiva campanha levada a cabo em 1954 (suicídio de Vargas) por Carlos Lacerda e seus acólitos, ou na campanha de terra arrasada realizada pela coalizão golpista de procuradores da República, juízes federais, militares e teólogos entre 2014 e 2022.

No que se refere à 1ª República, tão logo ela foi proclamada, em 1889, surgiram críticas — especialmente as dos monarquistas, alguns declarados (como o português Eduardo Prado) e outros vergonhosamente disfarçados, como Oliveira Vianna. A Igreja Católica, da mesma forma, ao perder seus vastos privilégios, fez coro aos reacionários.

A I República durou 40 anos (1889–1930); se ela foi criticada, também foi, e muito mais, apoiada. Na verdade, não faz o menor sentido repetir as críticas habituais de que teria sido um longo período oligárquico com forte viés antissocial, antipopular e antiliberdades. Como comentamos há pouco, esse tipo de crítica também foi feito ao regime de 1946 a 1964, assim como começou a ser esgrimido novamente logo após 1988 e com renovada intensidade depois de 2013 — tanto à direita quanto à esquerda. Precisamos de criticidade sobre essa criticidade.

Assumir que a I República foi um bloco homogêneo em um país oligárquico, com uma população imbecilizada, é degradar a vida nacional — entendida, assim, como eternamente realizada por idiotas incapazes de pensar e atuar com autonomia. Aliás, é assumir que, logo na I República, a população brasileira teria se tornado imbecil e deixado de agir com autonomia e coragem. Deveria ser claro que isso não faz o menor sentido — mas, a começar pela quase totalidade dos historiadores e cientistas sociais brasileiros contemporâneos, essa falta de sentido é ignorada.

Temos que distinguir as críticas que propunham a destruição do regime daquelas que cobravam melhorias e o cumprimento das promessas republicanas. A I República foi proclamada contra — e em substituição — à monarquia, à escravidão, ao misticismo clericalista, à religião oficial de Estado, ao militarismo imperialista, ao subdesenvolvimento, ao centralismo autoritário e à política ultraoligárquica.

Embora estranhamente não se fale nada disso hoje em dia, o passivo social e político do Império era gigantesco — e a mudança de regime, urgente. Assim, a República foi um importante avanço social, político e moral.

A República teve dificuldades, problemas e limitações? Claro que sim. Mudanças sociais são lentas e exigem que a sociedade persista. Basta considerarmos que o novo regime teria de ser conduzido por muitos grupos e políticos vinculados à antiga ordem (como, aliás, ocorreu após 1988 e, agora, mais uma vez depois de 2022), incluindo os adesistas de última hora, ansiosos por manter o poder — como o mistificado Rui Barbosa.

Proclamada para realizar o progresso social, a República foi criticada por vários grupos que desejavam que esse progresso ocorresse: basta ler (com honestidade) as publicações dos positivistas — Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes à frente — ou as de Alberto Torres, para comprovar essa preocupação. Os positivistas publicaram desde 1881 até 1927 e mesmo depois; Torres publicou na década de 1910.

Mas, na década de 1910, começou a publicar também outro autor: Oliveira Vianna. Não sendo da geração que fizera a República, e com uma admiração mística e mistificadora pela monarquia, Oliveira Vianna desprezava a República, suas instituições e suas ações. Admirava o parlamentarismo liberal inglês praticado durante o Império, com seus elementos oligárquicos, antipopulares e autoritários. Não por acaso, com todas as letras e de maneira inequívoca, defendia — mais uma vez, contra a República — o autoritarismo.

Ora, a partir da década de 1920, as crises sociais e políticas aumentaram. As críticas meramente negativas (contra o regime) ganharam cada vez mais espaço, ao passo que as críticas construtivas escassearam. Quando, em outubro de 1930, Getúlio Vargas deu seu primeiro golpe de Estado, os argumentos utilizados a posteriori para justificar suas ações foram de caráter destrutivo: apesar de ter iniciado sua carreira como um importante político da República, sua lealdade ao regime era mínima — para não dizer nula. Depois de novembro de 1937, após o segundo golpe de Estado de Vargas, a justificativa a posteriori para o regime agressivamente autoritário repetia, ipsis litteris, os insidiosos argumentos de Oliveira Vianna.

É espantoso e escandaloso que se repita até hoje a mentalidade celebrada pelos autoritários Oliveira Vianna, Francisco Campos e seus acólitos. Não por acaso, a noção de “República” é desprezada, e fala-se em “República Velha” para referir-se à 1ª República.

Como vimos, mais que uma vitória de longo prazo da mistificação monarquista e autoritária de Oliveira Vianna, o desprezo nutrido desde 1930 pela 1ª República tem graves consequências. A primeira é a dupla mistificação: a favor da monarquia (uma época idílica) e contra a 1ª República (um bloco oligárquico, antipopular e imbecilizante).

A segunda é a ignorância do conceito de República e de suas condições institucionais, sociais e morais, em prol de confusões sobre a “democracia” — que incluem a democracia autoritária de Oliveira Vianna!

A terceira consequência é o entendimento de que a população brasileira teria sido imbecilizada justamente na 1ª República, cessando seu intenso ativismo vigente desde a fase colonial e magicamente retomado após 1930.

A quarta consequência resume as anteriores: não se entende a vida política brasileira com um desenvolvimento ao longo do tempo (com clivagens eventuais), mas como contínuos e renovados erros a serem expurgados a cada 30 anos. O resultado é trágico: falta de memória histórica, de aprendizado coletivo, de ordem política e de progresso social.

Urge recuperarmos e revalorizarmos a 1ª República.

Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.