Sobre o conceito de “funcionalismo público”
- Uma das mais belas e instrutivas expressões de Augusto Comte por vezes é alvo de críticas e confusões, nem sempre originadas da boa-fé dos comentadores
o Essa expressão é que regime normal, todos os servidores da Humanidade devem ser vistos como “funcionários públicos”
o Alguns dos comentários deste sermão, especialmente no final, retomam considerações presentes na postagem “Dois erros sobre o Positivismo: ‘autoritarismo’, ‘funcionalismo público’” (disponível aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2017/03/dois-erros-sobre-o-positivismo.html) e esta, por sua vez, publicou o artigo de mesmo nome, que apareceu na Revista Espaço Acadêmico (Maringá, n. 87, agosto de 2008)
- No Discurso sobre o conjunto do Positivismo, Augusto Comte afirma que somos todos “funcionários públicos”; eis o trecho[1]:
Sob esses diversos aspectos, o princípio
fundamental do comunismo é então necessariamente absorvido pelo positivismo. Ao
fortalecê-lo bastante, a nova filosofia estende-o mais, pois que ela aplica-o a
todos os modos quaisquer da existência humana, indistintamente votados ao
serviço contínuo da comunidade, conforme o verdadeiro espírito republicano. Os
sentimentos de individualismo como as vistas de detalhe tiveram que prevalecer
durante a longa transição revolucionária que nos separa da Idade Média. Mas uns
convêm ainda menos que os outros à ordem final da sociedade moderna. Em todo
estado normal da Humanidade, cada cidadão qualquer constitui realmente um
funcionário público, cujas atribuições mais ou menos definidas determinam por
sua vez as obrigações e as pretensões. Esse princípio universal deve
certamente se estender até a propriedade, em que o positivismo vê sobretudo uma
indispensável função social, destinada a formar e a administrar os capitais por
meio dos quais cada geração prepara os trabalhos da seguinte. Sabiamente
concebida, essa apreciação normal enobrece sua possessão, sem restringir sua
justa liberdade e mesmo a fazendo ser melhor respeitada.
- O trecho acima – cuja parte que para nós importa destacamos com sublinhado – é bastante claro e autoexplicativo:
(1) Nas situações sociais normais cada cidadão deve ver-se como um funcionário público e
(2) É a partir dessa atuação pública que se deve estabelecer suas possibilidades de atuação e de exigências
o Apesar da clareza estilística, convém esclarecermos o conceito de “estado normal” e, em seguida, explorarmos a concepção de “funcionário público”
- Antes de comentar especificamente o trecho acima, é interessante indicar que ele é apresentado no âmbito da discussão sobre o “comunismo”, realizada no capítulo 3 do livro em questão (“Eficácia popular do Positivismo”)
o Nesse capítulo, após indicar quais as relações entre o sacerdócio positivo e o povo e, em particular, após apresentar sua teoria da opinião pública, Augusto Comte passa a comentar o chamado “comunismo”
o Essa reflexão está no âmbito do regime; mas no Discurso sobre o conjunto do Positivismo Augusto Comte adotou outro critério para organização dos capítulos (especificamente, os âmbitos de atuação do Positivismo: filosofia, política, povo, mulheres, artes, religião)
- Passando ao conceito de “estado normal”:
o Podemos dizer que o objetivo do Positivismo é regular as forças humanas, a fim de que atinjamos a harmonia individual e coletiva; para isso, uma série de aspectos devem ser levados em consideração, adotados e/ou respeitados
o A situação de harmonia dinâmica antevista pelo Positivismo é chamada por Augusto Comte de “estado normal”
§ Dito de outra forma, podemos considerar o “estado normal” a realização da utopia positivista
§ A descrição cuidadosa do estado normal e dos passos a serem seguidos até lá corresponde ao v. IV do Sistema de política positiva
o Mas, além da referência à utopia positivista, no trecho acima há a referência aos estados normais, isto é, a uma pluralidade de estados normais
o Nesse caso, a concepção de estado normal refere-se aos períodos históricos orgânicos, em que há efetivamente concepções gerais sobre a realidade, sobre o ser humano coletivo e sobre o ser humano individual
§ Daí a referência à Idade Média e também ao período crítico que prevalece desde o século XIV
- Quais são as características do período crítico que Augusto Comte considera aí?
o Por um lado, de maneira explícita, “os sentimentos de individualismo” e “as vistas de detalhe”
o Por outro lado, de maneira implícita, as concepções de que cada indivíduo vive para si mesmo, que somente as suas preocupações particulares e exclusivas realmente importam; que não há concepção de bem comum vigente, que a propriedade privada é gerida de maneira absoluta e com vistas apenas à satisfação pessoal (ou seja, ao enriquecimento contínuo às expensas dos trabalhadores)
o Além disso, Augusto Comte observa que o individualismo e as vistas de detalhe – convergentes entre si, especialmente contra as vistas gerais que estabelecem o real bem comum – foram fatais e mesmo necessárias desde o fim da Idade Média, como meios para destruir a antiga ordem social
- O que Augusto Comte afirma, então, no trecho acima, é que devemos ultrapassar a fase crítica e estabelecer os hábitos e os valores próprios ao estado normal, em particular ao estado normal positivo
- Ora, em um estado normal existe de verdade uma noção de bem comum; essa noção de bem comum – que, aliás, é uma concepção geral e não particular – organiza efetivamente a sociedade e permite que cada indivíduo saiba quais são suas responsabilidades, seus deveres, os meios de ação necessários e também os justos reclamos de recompensa
o Assim, a partir de uma real concepção de bem comum – que Augusto Comte relaciona à idéia de república –, como cada qual tem clareza de qual sua participação na vida pública, importa se trabalhamos para empresas privadas, para o Estado ou para organizações sem fins lucrativos; se nossas atividades são teóricas ou práticas; se atuamos na economia “pública” ou se atuamos em atividades domésticas: toda atuação tem um caráter público
§ É devido ao caráter público de toda atividade estado normal que Augusto Comte afirma que os servidores da Humanidade são cidadãos e que devem perceber-se como funcionários públicos, isto é, como participantes de um grande empreendimento público
- Outro aspecto implícito nos comentários acima é a relativização da divisão entre público e privado:
o Evidentemente, existe uma área da vida social que corresponde àquilo que é específico de cada um e de cada família: esse é o âmbito do que se chama de “privado” ou de “particular”
o O que a noção normal de funcionário público afirma é que não há, nem pode haver, uma cisão entre o “público” e “privado”: claro que são âmbitos diferentes, mas essa diferença não se pauta pela duplicidade de critérios morais e intelectuais
o Deve haver o respeito ao âmbito privado e às suas particularidades, mas os critérios gerais que orientam a conduta humana são os mesmos
§ A continuidade dos parâmetros fica evidente no “viver às claras”, especialmente no sentido de adotar comportamentos publicamente justificáveis
§ Além disso, o “viver para outrem” também evidencia a continuidade dos critérios de conduta
o Enquanto o individualismo estabelece uma rígida separação entre o público e o privado; em que o público é mais ou menos o que sobra do privado e os parâmetros de conduta privadas são absolutos, todo estado normal estabelece que, mesmo quando atuam no âmbito privado, os indivíduos devem entender-se como cidadãos cujas atividades integram uma concepção geral de bem comum
§ No estado normal, portanto, as famílias preparam os indivíduos para serem cidadãos atuando na república
o Dito de outra forma, no estado normal, mesmo as atividades privadas são claramente percebidas como contribuindo – e, mais do que isso, como devendo contribuir – para o bem comum
§ Assim, a ação de todos assume uma dupla característica: a atividade privada tem sempre um aspecto público
§ Ou melhor, sendo mais correto e mais preciso: a atividade privada é orientada pelo bem público e, filosoficamente, o particular é englobado no público
o Todas essas concepções tornam-se ainda mais claras quando, algumas páginas adiante, Augusto Comte observa que “O verdadeiro princípio republicano consiste a fazerem sempre concorrer para o bem comum todas as forças quaisquer”[2]
§ É claro que o “bem público”, o “bem comum”, a “república” etc. não são concepções vagas: elas são concepções claramente definidas pelo Positivismo e aplicadas e atualizadas pelo sacerdócio positivo
§ A afirmação do bem comum e a subordinação das atividades privadas ao bem público é o que estabelece o caráter específico da república sociocrática (e, em particular, é o que permite identificar o que há de extremamente metafísico nas concepções usuais de “república democrática”)
-
Dissemos no início que a expressão “funcionários
públicos” por vezes é mal interpretada e/ou produz confusão: de que maneira?
o
Tomar o “funcionário público” como
“funcionário do Estado”
o
Esse erro tem sua origem lógica em uma
interpretação especificamente jurídica da palavra “público”, na medida em que,
no Direito, o que se opõe ao “privado” é o “público” cuja representação
empírica é apenas e tão-somente o Estado
o
Essa confusão empobrece o pensamento social ao
pressupor que apenas no Estado ou por meio dele é possível existir uma vida
“pública”
§ Alfredo
Bosi[3]
cometeu esse erro, considerando que os “funcionários públicos da era normal”
seriam uma justificativa para o aumento do aparelho estatal
§ Além
disso, Olavo de Carvalho[4]
usou a concepção comtiana para afirmar que o Positivismo seria a favor de
alguma coisa como uma “estatolatria” e/ou do “Estado total”
o
Vale notar que o Positivismo favorece um forte, com
capacidade de intervenção na sociedade, seguindo esta recomendação geral: o
Estado deve ser o menor possível, de modo a não onerar em demasia a sociedade
§ Mas
um Estado que seja “o menor possível” não equivale a “Estado mínimo”, conforme
defendido pelos liberais
-
Em suma:
o O conceito de “funcionário público” no
estado normal refere-se à concepção de todos devem orientar suas condutas,
sejam públicas, sejam privadas, para o bem comum
o Ao orientar suas condutas pelo bem comum na
sociocracia, é totalmente natural que todos os cidadãos percebam-se como
colaborando com o benefício coletivo e, dessa forma, que se percebam como
funcionários públicos
[1] Auguste Comte. 1851. Discours préliminaire sur l’ensemble du Positivisme. In : _____. Système de politique positive, ou traité de sociologie instituant la Religion de l’Humanité. Paris : L. Mathias. P. 156, disponível aqui: https://archive.org/details/systmedepolitiq07comtgoog/page/156/mode/2up.
Vale notar que esse livro foi publicado duas vezes: a primeira, em 1848, sob o título Discours sur l’ensemble du Positivisme; a segunda em 1851, como um prefácio geral ao Sistema de política positiva, sob o título indicado acima (Discours préliminaire...). A versão de 1851 contém algumas alterações em relação à de 1848, especialmente em termos de referências temporais e de acontecimentos correntes à época.
[2] Auguste Comte. 1851. Discours préliminaire sur l’ensemble du Positivisme. In : _____. Système de politique positive, ou traité de sociologie instituant la Religion de l’Humanité. Paris : L. Mathias. P. 163, disponível aqui: https://archive.org/details/systmedepolitiq07comtgoog/page/162/mode/2up?view=theater.
[3] BOSI, Alfredo. 2007. A arqueologia do Estado-providência: sobre um enxerto de idéias de longa duração. In: TRINDADE, Helgio. (org.). O Positivismo. Teoria e prática. 3ª ed. Porto Alegre: UFRS.
[4] CARVALHO, Olavo. 1999. O jardim das aflições. São Paulo: É Realizações.