Mostrando postagens com marcador Culto privado. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Culto privado. Mostrar todas as postagens

14 janeiro 2024

Oratório da família Teixeira Mendes

Oratório privado da família Teixeira Mendes. 

(Fonte: Teixeira Mendes, Raimundo. 1936. Ensaio sobre o culto público. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil.)




29 agosto 2023

Sacramentos positivos

No dia 17 de Gutenberg de 169 (29.8.2023) realizamos nossa prédica positiva, em que demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua oitava conferência, dedicada à filosofia das ciências superiores (Sociologia e Moral).

Em seguida, apresentamos algumas considerações sobre os nove sacramentos positivos.

A prédica foi transmitida em nossos canais: Positivismo (aqui: https://ury1.com/G4kjX) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/72rZ5). O sermão sobre os sacramento pode ser visto a partir de 49' 56".


*   *   *



Sacramentos positivos 

-        Os sacramentos positivos integram o culto privado

o   No Catecismo positivista, os sacramentos são apresentados e comentados na “Quarta conferência”

o   Os sacramentos estabelecem a particularidade do culto privado, distinguindo-o do culto íntimo e do culto público, ao mesmo tempo que estabelece a ligação entre estes dois cultos

o   Assim, os sacramentos são privados em seu objeto e públicos em sua liturgia

o   Por outro lado, eles constituem a sanção pública para as fases das vidas dos indivíduos

§  Assim, os sacramentos positivos são, acima de tudo, ritos de passagem

-        Os ritos de passagem são momentos importantíssimos na vida coletiva e individual de todas as sociedades

o   Eles regulam a vida dos indivíduos, indicando que eles deixam para trás determinadas situações e ingressam em outras

o   Nessa passagem há a substituição de deveres e prerrogativas, bem como a acumulação com outros pré-existentes

o   Então, por um lado, elas correspondem ao reconhecimento público de que os indivíduos avançam em suas vidas e, com isso, cumprem suas responsabilidades e, por outro lado, elas correspondem aos indivíduos reconhecendo essa passagem e efetivamente assumindo suas responsabilidades

o   Assim, convém notar que os sacramentos são importantes não apenas para a sociedade, mas também para os indivíduos, que, com eles, têm consciência e clareza do que se espera deles em cada fase de sua vida e, com isso, têm também o apoio da coletividade para isso

o   Embora evidentemente a idéia de “religião positiva” não se resuma aos sacramentos, fica bastante claro o sentido dessa concepção a partir dos sacramentos: um sistema geral de regulação da vida humana, pública e privada, coletiva e individual, nos três âmbitos da existência humana (afetivo, intelectual e prático)

-        No Ocidente, o duplo movimento moderno, iniciado após a Idade Média, foi extremamente eficiente em destruir essas marcações sociais e etárias do desenvolvimento individual; o Positivismo institui os sacramentos em bases humanas, históricas, morais e racionais

o   Muitas pessoas rejeitam a noção de sacramentos a partir de preconceitos metafísicos anticlericalistas, confundindo os sacramentos positivos (e os sacramentos em geral) com os sacramentos especificamente teológicos (em particular católicos)

o   Outro motivo para a recusa aos sacramentos, vinculado ao anterior (ainda que indiretamente), mas diferente dele, é o mais puro individualismo, a noção de que a vida de cada é problema só de si mesmo e que não compete a mais ninguém tratar dela

§  Daí, aliás, surge a espantosa concepção de liberdade como ausência de laços, de vínculos, ou seja, a liberdade como a mais completa atomização social – o que, além de impraticável e irracional, é profundamente imoral

§  Uma digressão: é exatamente esse raciocínio imoral e irracional que fundamenta a degradante campanha que a classe média brasileira, a partir do exemplo de sua homóloga estadunidense, promove há duas décadas em favor do consumo das chamadas “drogas recreativas”

o   Evidentemente, ao recusarem os sacramentos, tais indivíduos prejudicam-se de várias maneiras: ao pautarem-se por preconceitos metafísicos; ao recusarem a regulação do avanço de suas próprias vidas; ao recusarem o explícito apoio coletivo ao cumprimento de suas responsabilidades

o   Mas, por outro lado, de maneira muito positiva e extremamente empírica, às vezes inspirados por práticas fetichistas, reconhecendo o valor e a importância dos ritos de passagem, muitos grupos humanistas realizam seus próprios sacramentos

-        Antes de apresentar os sacramentos positivos, é necessário indicar um aspecto essencial deles: eles são todos voluntários e de caráter moral

o   O aspecto moral e voluntário deles significa duas coisas:

§  Por um lado, eles ocorrem paralelamente às obrigações legais (de caráter obrigatório)

§  Por outro lado, quem solicita os sacramentos positivos fá-lo porque reconhece a validade desses sacramentos e, em particular, assume como seus os valores e as concepções da Religião da Humanidade, ou seja, assume-se como positivista religioso (isto é, ortodoxo)

-        São nove os sacramentos positivos: (1) Apresentação; (2) Iniciação; (3) Admissão; (4) Destinação; (5) Casamento; (6) Madureza; (7) Retiro; (8) Transformação; (9) Incorporação

-        Apresentação (ao nascer)

o   É a consagração religiosa de cada nascimento, ou melhor, do nascimento de cada novo futuro servidor da Humanidade; o pai e a mãe apresentam ao sacerdócio o bebê e comprometem-se a votá-lo e a orientá-lo para o serviço da deusa real

o   Indicação de padrinhos sob aceitação do sacerdócio – basicamente espirituais mas, se for o caso, também temporais

o   Nomeação: dois nomes, um teórico e outro prático, a partir dos servidores da Humanidade

§  Quando da emancipação, o novo servidor escolherá um terceiro nome

-        Iniciação (aos 14 anos)

o   O servidor passa da educação doméstica e espontânea, com a mãe, para a educação pública e sistemática, com o sacerdote

o   Até então, o sacerdócio dirigia seus conselhos aos pais e aos padrinhos; a partir de então, os conselhos são dirigidos diretamente ao servidor, em particular para prevenir o coração contra os vícios morais e intelectuais próprios à cultura teórica

o   Este sacramento pode ser adiado e, em casos excepcionais, recusado

o   A educação prática pode e deve ser concomitante a essa educação teórica

-        Admissão (aos 21 anos)

o   É a emancipação da pessoa, em que ela torna-se um livre servidor da Humanidade, começando então a retribuir tudo o que recebeu até então e o que recebe de qualquer maneira

o   Embora esse sacramento indique a passagem da meninice (ou da infância) para a vida adulta, nem sempre o servidor já terá definido sua profissão, ou sua carreira: “Só ele pode decidir convenientemente sobre este assunto, em virtude de ensaios livremente tentados e suficientemente prolongados” (Catecismo, “Quarta Conferência”, p. 132)

o   No caso das mulheres, os sacramentos da admissão, da destinação e do casamento ocorrem aos 21 anos

-        Destinação (aos 28 anos)

o   Consagração inicial pública e religiosa de todas as ocupações úteis, públicas ou privadas, por menores que sejam

o   “É o único sacramento suscetível de verdadeira renovação, sempre excepcional” (Catecismo, “Quarta Conferência”, p. 133)

-        Casamento (aos 28 anos para os homens, aos 21 anos para as mulheres)

o   É o principal sacramento e completa o conjunto das preparações

o   A função do casamento é o aperfeiçoamento mútuo do casal

o   Só pode ocorrer após o sacramento da destinação, ou seja, após os 28 anos de idade

§  Augusto Comte recomendava fortemente que a idade máxima de casamento para as mulheres fosse 28 anos e para os homens fosse 35 anos

§  Augusto Comte portanto também sugeria que a diferença de idade entre homens e mulheres fosse de sete anos

o   Baseia-se na monogamia e, portanto exige o estabelecimento da viuvez eterna – a única forma de consagrar e desenvolver efetivamente a vida subjetiva

o   Ocorre três meses após o casamento civil

o   Um mês antes do casamento civil, os nubentes juram manter a castidade durante o trimestre que separa a cerimônia civil da religiosa

o   Um ano e meio após o falecimento de um dos cônjuges, o viúvo deve reafirmar sua viuvez eterna

o   Os casamentos mistos são possíveis, desde que cumpridas algumas condições:

§  Deve haver o compromisso formal de que não haverá tentativas de conversão durante o casamento, em particular da parte da mulher sobre o homem

§  O positivista participará passivamente da cerimônia não positivista

§  Inversamente, o não positivista deve aceitar realizar o voto de viuvez eterna no Templo da Humanidade

§  Os ateus militantes e, de qualquer maneira, todos aqueles que rejeitam a regulação da vida humana são proscritos do casamento positivista

o   Cerimônias positivistas de casais que se converteram ao Positivismo depois de casados só podem ocorrer três anos após as cerimônias iniciais

-        Madureza (aos 42 anos para os homens)

o   Corresponde ao início da segunda vida objetiva do servidor, a que realmente importa para a imortalidade subjetiva

o   “Durante os 21 anos que o separam do sétimo [sacramento], o homem desenvolve sua segunda vida objetiva, única decisiva para sua imortalidade subjetiva. Até então, a nossa existência, essencialmente preparatória, naturalmente suscitou desvios, algumas vezes graves, porém sempre reparáveis. Daí por diante, pelo contrário, as nossas novas faltas não comportam quase nunca uma compensação suficiente, seja exterior, [seja] mesmo interior. Importa, pois, impor de um modo solene ao servidor da Humanidade a inflexível responsabilidade que vai começar para ele, tendo especialmente em vista sua função própria, já plenamente apreciável” (Catecismo, “Quarta Conferência”, p. 135-136)

-        Retiro (aos 63 anos para os homens)

o   Ocorre quando o servidor da Humanidade deixa suas atribuições práticas

o   Ao realizar o retiro, o último ato prático do servidor consiste em indicar seu sucessor em sua função

o   Ao retirar-se, o servidor substitui suas atividades práticas pelo aconselhamento, ou seja, passa a colaborar com o poder Espiritual

-        Transformação (ao falecer)

o   É a celebração da vida do morto: “Ele deve substituir a horrível cerimônia em que o catolicismo, entregue sem freio ao seu caráter antissocial, arrancava abertamente o moribundo a todos os afetos humanos, para o transportar isolado ao tribunal celeste. Em nossa transformação, o sacerdócio, juntando os pêsames da sociedade às lágrimas da família, aprecia dignamente o conjunto da existência que termina” (Catecismo, “Quarta Conferência”, p. 137)

o   Pode ocorrer em várias etapas: nos momentos finais da vida do servidor; durante o velório; na celebração fúnebre três semanas após a morte

-        Incorporação (sete anos após a transformação)

o   Consiste na avaliação da vida do servidor, feita pelo sacerdócio; a partir dessa avaliação, ocorre a decisão de se o servidor será ou não incorporado à Humanidade, isto é, se será ou não objeto de culto sistemático

o   Mais que qualquer outro sacramento, este deve ser solicitado com a mais completa liberdade pelo servidor, mesmo durante o sacramento da transformação; além disso, a família deve confirmar o desejo em realizar esse sacramento

o   No quarto ano após a morte, o sacerdócio emitirá um juízo provisório

o   A avaliação sacerdotal deverá considerar não apenas a atividade objetiva e subjetiva do servidor, mas também a contribuição da esposa, da mãe, das irmãs, das filhas e também dos animais que o auxiliaram

§  As mulheres também podem ser avaliadas

o   Caso o servidor seja de fato incorporado à Humanidade, seus restos mortais serão levados para o Bosque Sagrado e homenageados com inscrições, bustos ou estátuas

o   Caso a incorporação seja recusada, o servidor em análise será levado para o (ou permanecerá no) cemitério civil

o   Os supliciados (isto é, os condenados à morte), os suicidas e os duelistas devem ser recusados 

21 dezembro 2022

Anotações sobre as liberdades política e filosófica

No dia 20.12.2022 realizamos a nossa prédica positiva - a última do ano -, na qual terminamos a leitura comentada da teoria do culto privado, com a exposição dos últimos quatro sacramentos positivos (madureza, retiro, transformação e incorporação).
Em seguida, nas reflexões semanais, apresentamos alguns elementos da teoria positiva da liberdade. O primeiro aspecto exposto foram alguns conceitos de liberdade política conforme são estudados atualmente (negativa, positiva e republicana): Augusto Comte propõe e defende concepções próprias a cada uma dessas modalidades.

Na sequência, abordamos a chamada "liberdade moral", ou "liberdade filosófica": a concepção de Augusto Comte a esse respeito muitas vezes é criticada. Todavia, o exame detalhado da concepção própria a Augusto Comte e, ainda mais, das críticas que lhe são dirigidas deixa claro que tais críticas celebram a arbitrariedade e os caprichos: em outras palavras, tais críticas celebram não a liberdade humana, mas a imaturidade e o infantilismo do ser humano (seja individual, seja coletivamente).

Apresentamos abaixo as anotações que utilizamos para a exposição da teoria positiva da liberdade.

A prédica foi gravada ao vivo no canal Apostolado Positivista (disponível aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/2375938302773412) e no canal Positivismo (disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=DyELzJqcw3w). Os comentários sobre a liberdade estão disponíveis no vídeo do Apostolado Positivista a partir de 50' 15".


* * *

Anotações sobre a liberdade

 

-        A liberdade é um dos temas mais clássicos de reflexão filosófica, política e social

o   Para o que nos interessa, podemos considerar aqui dois tipos gerais de liberdade, a “filosófica” e a “política”

§  Antes de mais nada: não trataremos aqui da liberdade econômica

o   Augusto Comte evidentemente trata de ambas

§  Mais do que tratar de ambas, Augusto Comte relaciona uma à outra de maneira íntima

§  Na presente exposição, trataremos antes da liberdade política e, com os seus elementos, trataremos da liberdade “filosófica”

-        Em termos de liberdade política, eis o que podemos comentar:

o   O conceito mais básico e elementar é o de Thomas Hobbes, que entende a liberdade como a capacidade de realizar coisas sem sofrer obstrução

o   O sentido básico que Augusto Comte dá à liberdade segue esse conceito de Hobbes

-        Entre os séculos XVII e início do século XIX, a partir da chamada “querela dos antigos e dos modernos”, estabeleceu-se uma distinção entre a “liberdade dos antigos” e a “liberdade dos modernos”; no século XX essa distinção recebeu uma nova elaboração, entre “liberdade negativa” e “liberdade positiva”

o   A liberdade negativa consiste em fazer o que se deseja, sem que nada ou ninguém ofereça obstáculos ou resistências

o   A liberdade positiva consiste na autonomia da decisão

o   Na década de 1990, após o fim do comunismo, revalorizou-se o republicanismo (e a cidadania) e, a partir disso, propôs-se também a “liberdade republicana”, que é a ausência de arbitrariedade nas relações políticas

§  O propositor da liberdade republicana, Phillip Pettit, inspira-se no constitucionalismo da antiga república romana, mas no geral ele tem uma concepção bem restrita e pobre de “república” (ele rejeita os aspectos que as repúblicas costumam e que devem ter: antimonarquia, afirmação das liberdades, caráter social das repúblicas)

·         Pettit afirma que essa modalidade de liberdade é uma variação da liberdade negativa; assim, ele acaba aproximando-se mais do liberalismo (liberdade negativa) e afastando-se da “democracia” (liberdade positiva)

·         Convém lembrar que o liberalismo é uma degradação do republicanismo, especialmente na Inglaterra do século XVII; em outras palavras, não é o republicanismo que seria uma alternativa atual e meio esquisita ao liberalismo

§  Embora tenha sérias limitações filosóficas, a proposta de Pettit – de que a liberdade consiste na ausência de arbitrariedade nas relações políticas – é uma concepção fundamental e em si mesma muito acertada

·         De modo central, a ausência de arbitrariedade significa que ser livre não é o mesmo que fazer qualquer coisa quando e do jeito que se desejar

-        Augusto Comte fala em liberdade considerando sempre a autonomia decisória individual e coletiva (liberdade positiva) e a ausência de obstáculos (liberdade negativa); também defende a ausência de arbitrariedade (liberdade “republicana”):

o   A autonomia nas decisões e o respeito tanto à autonomia quanto às decisões é o que confere dignidade nas relações sociais

o   As liberdades de consciência, expressão e associação são as liberdades fundamentais da vida política moderna

o   O pacifismo, o relativismo e a fraternidade evitam a arbitrariedade nas relações sociais e políticas; além disso, a república deve ter um caráter social mais que político

-        No que se refere à “liberdade filosófica”: é a respeito dela que as considerações de Augusto Comte sobre a liberdade são mais conhecidas:

o   Popularmente, quando há referências ao conceito positivista de liberdade, menciona-se apenas um pequeno trecho específico (um parágrafo, na verdade) do Catecismo positivista

§  Nesse trecho, muito famoso, Augusto Comte afirma que não temos liberdade de desobedecermos às leis naturais:

 

O Sacerdote – [...] Longe de ser por qualquer forma incompatível com a ordem real, a liberdade consiste por toda a parte em seguir sem obstáculos as leis peculiares ao caso correspondente. Quando um corpo cai, a sua liberdade manifesta-se caminhando, segundo sua natureza, para o centro da Terra, com uma velocidade proporcional ao tempo, a menos que a interposição de um fluido não modifique a sua espontaneidade. Do mesmo modo, na ordem vital, cada função, vegetativa ou animal, é declarada livre se ela se efetua de conformidade com as leis correspondentes, sem nenhum empecilho exterior ou interior. Nossa existência intelectual e moral comporta sempre uma apreciação equivalente que, diretamente incontestável, quanto à atividade, se torna, por conseguinte, necessária para seu motor afetivo e para seu guia racional” (Augusto Comte, Catecismo positivista, 4ª ed., Rio de Janeiro, 1934, “Oitava conferência”, p. 243-244)

 

o   Esse trecho tornou-se famoso porque os críticos do Positivismo atribuem-lhe vários aspectos negativos: cientificismo, determinismo, ausência de liberdade

o   Vale reforçar: esse trecho é famoso porque os “críticos” de Augusto Comte limitam-se apenas a esse trecho, que é um pequeno parágrafo de uma obra de divulgação de Comte: as reflexões e as obras propriamente políticas (Opúsculos de filosofia social, Sistema de política positiva, Apelo aos conservadores) são desprezadas

o   Mas a leitura do trecho completo, isto é, a leitura integral dos parágrafos anteriores e posteriores em que se insere a citação acima evidencia que as interpretações negativas são extremamente superficiais, quando não de má-fé:

 

A Mulher – Antes de encetarmos o melhor domínio teórico, eu devo, meu pai, submeter-vos um escrúpulo geral devido às objeções metafísicas que com freqüência tenho ouvido formular contra esta extensão decisiva do dogma positivo. Toda sujeição do mundo moral e social a leis invariáveis, comparáveis às da vitalidade e da materialidade, é agora apresentada, por certos argumentadores, como incompatível com a liberdade do homem. Posto que estas objeções me tenham sempre parecido puramente sofísticas, nunca eu soube destruí-las nos espíritos, ainda muito numerosos, que se deixam, assim, estorvar em sua marcha espontânea para o positivismo.

O Sacerdote – É fácil, minha filha, superar este embaraço preliminar, caracterizando diretamente a verdadeira liberdade.

Longe de ser por qualquer forma incompatível com a ordem real, a liberdade consiste por toda parte em seguir sem obstáculos as leis peculiares ao caso correspondente. Quando um corpo cai, a sua liberdade manifesta-se caminhando, segundo sua natureza, para o centro da terra, com uma velocidade proporcional ao tempo, a menos que a inter-posição de um fluido não modifique a sua espontaneidade. Do mesmo modo, na ordem vital, cada função, vegetativa ou animal, é declarada livre, se ela efetua de conformidade com as leis correspondentes, sem nenhum empecilho exterior ou interior. Nossa existência intelectual e moral comporta sempre uma apreciação equivalente, que, diretamente incontestável, quanto à atividade, se torna, por conseguinte, necessária para seu motor afetivo e para seu guia racional.

Se a liberdade humana consistisse em não seguir lei alguma, ela seria ainda mais imoral do que absurda, por tornar-se impossível um regime qualquer, individual ou coletivo. Nossa inteligência manifesta sua maior liberdade quando se torna, segundo seu destino normal, um espelho fiel da ordem exterior, apesar dos impulsos físicos ou morais que possam tender a perturbá-la. Nenhum espírito pode recusar seu assentimento às demonstrações que compreendeu. Mas, além disto, cada qual é incapaz de rejeitar as opiniões assaz acreditadas em torno de si, mesmo quando ignora os verdadeiros fundamentos em que assentam, a menos que não esteja preocupado de uma crença contrária. Podemos desafiar, por exemplo, os mais orgulhosos metafísicos a que neguem o movimento da terra, ou doutrinas ainda mais modernas, posto que eles ignorem absolutamente as provas cientificas de tais doutrinas. O mesmo acontece na ordem moral, que seria contraditória se cada alma pudesse, a seu bel-prazer, odiar quando cumpre amar, ou reciprocamente. A vontade comporta uma liberdade semelhante à da inteligência, quando nossos bons pendores adquirem bastante ascendência para tornar o impulso afetivo harmônico como verdadeiro destino dele, superando os motores contrários.

Assim, a verdadeira liberdade é por toda parte inerente e subordinada à ordem, quer humana, quer exterior. Porém, à medida que os fenômenos se complicam, eles se tornam mais suscetíveis de perturbação, e o estado normal supõe neste caso maiores esforços, os quais, aliás, são aí possíveis graças a uma aptidão maior para as modificações sistemáticas. Nossa melhor liberdade consiste, pois, em fazer prevalecer, tanto quanto possível, os bons pendores sobre os maus; e é também nisso que o nosso império tem a sua maior amplitude, contanto que a nossa intervenção se adapte sempre às leis fundamentais da ordem universal.

A doutrina metafísica sobre a pretendida liberdade moral deve ser historicamente considerada como um resultado passageiro da anarquia moderna; porquanto ela tem por objeto direto consagrar o individualismo absoluto, para o qual tendeu cada vez mais a revolta ocidental que teve de suceder à Idade Média. Mas este protesto sofistico contra toda verdadeira disciplina, privada ou pública, não pode de modo nenhum entravar o positivismo, se bem que o catolicismo não pudesse superá-lo. Jamais se conseguirá apresentar como hostil à liberdade e à dignidade do homem o dogma que melhor consolida e desenvolve a atividade, a inteligência e o sentimento (Augusto Comte, Catecismo positivista, 4ª ed., Rio de Janeiro, 1934, “Oitava conferência”, p. 243-247; os grifos são meus).

 

-        O trecho acima tem que ser entendido como uma crítica científico-filosófica às pretensões de que a liberdade consiste em desejar qualquer coisa e, a partir disso, em querer fazer qualquer coisa

o   Como vimos acima, a respeito da liberdade republicana, desejar qualquer coisa e poder fazer qualquer coisa é o mesmo que ser arbitrário e não ter nenhuma regra; mais do que isso, é o desejo de uma realidade que ceda aos nossos caprichos

-        A concepção de leis naturais estabelece que o mundo não é caótico, ou seja, que ele obedece a regularidades:

o   As regularidades evidenciadas e afirmadas pelas leis naturais rejeitam também, em particular, a concepção de que o mundo é governado por entidades que fazem o que querem, quando querem, do jeito que querem

o   Lembremos que a teologia é a transposição para a ordem cósmica de um desejo imaturo interno aos seres humanos

-        Entendendo a questão de uma outra perspectiva e chegando ao ponto que nos interessa aqui: a concepção de leis naturais requer o amadurecimento intelectual e moral do ser humano, no conjunto dos vários sentidos próprios ao amadurecimento:

o   É necessário reconhecer que a realidade impõe limites à ação humana

o   É necessário reconhecer que o mundo não obedece às meras vontades humanas

o   É necessário reconhecer que a satisfação das vontades humanas requer tanto a limitação dessas vontades quando a adequação das vontades às possibilidades efetivas de ação

§  Podemos até não gostar do fato de que a realidade não é dócil às vontades humanas: ainda assim, temos que nos resignar a isso e aprender a lidar com a realidade

·         Essa resignação é o que todos os filósofos sempre reconheceram como sendo a “sabedoria”

·         É necessário insistir: essa resignação consiste, precisamente, em um dos mais importantes aspectos do que se chama, por toda parte, de “amadurecimento”

§  Por outro lado, insistir em que o mundo e a realidade deveriam curvar-se à vontade humana é puramente pirraça, é mentalidade e comportamento infantil e caprichoso

-        Há uma concepção difundida segundo a qual a mera vontade humana, entendida como puro desejo de algo, não tem limites e que, portanto, nesse sentido, a vontade humana seria “livre”

o   A concepção da vontade-desejo da liberdade também consiste em um entendimento infantil da liberdade, especialmente da liberdade negativa (que é a ausência de impedimentos à ação): a liberdade aí é tornada sinônima de arbitrariedade

o   A redução da vontade humana ao “desejo” é o último refúgio da concepção infantil de liberdade, ao tentar recuar ao máximo da subjetividade o âmbito do arbitrário

-        Como a teologia e a metafísica buscam o absoluto e o arbitrário; como elas consistem em transpor para uma suposta objetividade algo que é próprio ao que é subjetivo, o resultado é que a concepção de liberdade que rejeita as leis naturais é uma concepção teológico-metafísica

o   Essa concepção tem o terrível agravante de que é imatura ou, da pior maneira possível, é infantil, é mimada

-        Reconhecermos o império das leis naturais e submetermo-nos a ele é a única garantia de ação e de aperfeiçoamento, ou seja, é a única possibilidade de liberdade

o   Qualquer possibilidade de ação requer o conhecimento das leis naturais (seja o conhecimento empírico e concreto, seja o conhecimento sistemático e abstrato)

o   Como dizia Francis Bacon, “só se pode controlar a natureza submetendo-se a ela”

-        É por meio do conhecimento e do reconhecimento das leis naturais que o ser humano pode agir e satisfazer suas necessidades e, quando é o caso, também seus desejos

o   O (re)conhecimento das leis naturais é ao mesmo tempo uma etapa e um resultado geral do amadurecimento do ser humano

o   Vale notar que até mesmo os desejos satisfeitos pelo recurso às leis naturais não são desejos arbitrários, pois são limitados e regulados pelas condições idiossincráticas dos indivíduos e, acima de tudo, pelos “contextos” sociais, em termos políticos e morais (e mesmo tecnológicos)

-        Em suma: Augusto Comte reconhece a particularidade das reflexões políticas sobre liberdade, mas evidencia que mesmo essas reflexões não podem isolar-se de reflexões mais amplas sobre a realidade cósmica e sobre a existência humana no mundo

o   Não há nisso nenhum cientificismo, nenhum determinismo, nenhuma negação da liberdade (ou a afirmação de autoritarismo): o que há é a exigência de amadurecimento moral e intelectual e a rejeição da arbitrariedade (moral, intelectual e política)    

23 novembro 2022

Anotações sobre o amor

No dia 18 de Frederico de 168 (22 de novembro de 2022) realizamos, como de hábito, a nossa prédica positiva. A pauta dessa prédica foi a leitura comentada do início da quarta conferência do Catecismo positivista, dedicada à teoria do culto privado e na qual vimos a teoria dos "anjos da guarda". Em seguida, nas nossas reflexões semanais, abordamos um dos mais importantes temas, seja para a Religião da Humanidade, seja em geral: o amor.

Reproduzimos abaixo as anotações que serviram de base para as nossas reflexões.

A prédica está disponível no canal Apostolado Positivista (aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/919937228995893/) e no canal Positivismo (aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Rc9vDlSrcq4). No canal Apostolado Positivista, as reflexões sobre o amor começam em 47' 33".

*   *   * 

-        Talvez mais que qualquer outro tema no âmbito do Positivismo, é muito difícil esgotar as reflexões que se pode fazer a respeito do amor; assim, estas anotações são apenas alguns comentários iniciais

-        Muitas palavras no Positivismo têm uma forte carga semântica, no sentido da polissemia; o amor é exemplar a respeito:

o   Bondade

o   Altruísmo

o   Sentimentos

-        É o primado do amor que realmente permite ao Positivismo ser a Religião da Humanidade:

o   O amor preside os sentimentos; os sentimentos, por seu turno, são o início e o fim da existência humana

o   O amor permite ao Positivismo instituir o estado religioso e também a síntese

o   O amor é a condição verdadeira e profunda de disciplinamento do egoísmo e, portanto, de solução do problema humano

o   Desde o seu início o Positivismo é antiacademicista; mas é o amor que estabelece o anticientificismo e até o relativismo

o   Por outro lado, o amor exige sempre a orientação da inteligência, seja para não se degradar em misticismo, seja para não se perder na realidade:

§  “Agir por afeição e pensar para agir”

§  “A inteligência é ministra do coração, não sua escrava”

o   O símbolo máximo do amor no Positivismo é a própria figura da Humanidade, que, não por acaso, é mulher e é mãe

-        Assim, o amor de Augusto Comte por Clotilde de Vaux não pode ser entendido como a mera paixão extemporânea de um homem mal amado de meia idade por u’a moça igualmente mal amada: essa forma de apresentar a questão, além de grosseira, é superficial e injusta para com os dois amantes

o   Os sentimentos de Comte por Clotilde eram em tudo respeitosos e dignos e, por isso, paulatinamente passaram a ser correspondidos por Clotilde

o   Acima de tudo, como o próprio Comte reconhecia, e como Teixeira Mendes repetia sem cessar, foi o amor por Clotilde que deu a Comte o impulso e a orientação de que precisava para realmente concluir e realizar a obra de sua vida, ou seja, a Religião da Humanidade

§  Em outras palavras, a Religião da Humanidade é o fruto direto do amor

-        Existem vários instintos afetivos altruístas: apego, veneração e bondade

o   Apego: relações entre iguais (vínculo entre irmãos, entre coetâneos, entre compatriotas, entre cônjuges)

o   Veneração: relação afetiva do inferior, do mais novo e do mais fraco para com o superior, com o mais velho e com o mais forte

o   Bondade: relação afetiva do superior, do mais velho e do mais forte para com o inferior, com o mais novo e com o mais fraco – é o “amor” propriamente dito

-        O que se opõe ao amor, no Positivismo, é o egoísmo, não o ódio

o   O egoísmo é natural e tem que ser disciplinado

o   O ódio, embora seja um sentimento (negativo) possível, é eminentemente destruidor

§  Para ser eficaz, o amor tem que ser positivo: “só o amor constrói”

§  Podemos considerar que a atitude do Positivismo em face do ódio é no sentido de diminuir esse sentimento agressivo, convertendo-o em respeito, cooperação e convergência; caso não seja possível reverter o que separa os grupos e/ou os indivíduos entre si, deve ser estimulada a tolerância mútua

-        O âmbito social do desenvolvimento do amor é a família

o   A família estabelece relações e vínculos afetivos próximos – que são os mais intensos

§  Daí também a cobrança de Augusto Comte de que as mátrias sejam pequenas

o   O fundamento das famílias é, precisamente, o amor – ou, em outras palavras, a função social das famílias é o desenvolvimento dos afetos (e não a reprodução, como afirmam (algum)as teologias)

o   A família é o âmbito privilegiado da mulher – que, como se sabe (ou como se deveria saber) é mais afetiva que o homem

-        O amor é inato

o   Como Augusto Comte observa no Catecismo positivista, afirmar que o egoísmo é inato é banal; mas foi difícil o Ocidente reassumir que o altruísmo também é inato

o   A metafísica individualista (a partir do monoteísmo cristão) e o cientificismo dificultaram muito o reconhecimento do valor do amor

o   Apesar dos seus inúmeros problemas intelectuais e morais, a Idade Média sugeriu duas instituições moralmente importantes:

§  Por um lado, a partir do século XI, idealizou a Virgem Maria (com São Bernardo, por exemplo)

·         Essa idealização substituiu a utopia do Cristo ressuscitado, que é intelectualista, masculina e pelo sofrimento, por uma utopia afetiva, feminina e construtiva – e que começa a valorizar as mulheres no âmbito da teologia católica

§  Por outro lado, no final da Idade Média, vários místicos passaram a afirmar a centralidade moral e intelectual do amor (com Tomás de Kempis, por exemplo)

-        O instinto altruísta mais importante é a veneração:

o   A veneração é o instinto mais importante porque ela é o mais difícil, na medida em que nos obriga a submetermo-nos a outrem e/ou a outras coisas

§  Em outras palavras, a veneração comprime o orgulho (e até a vaidade)

§  A veneração também nos lembra de que integramos uma longa continuidade histórica, ou seja, é ela que no final das contas afirma a historicidade do ser humano

o   Como dizia Comte, “a submissão é a base do aperfeiçoamento”

§  Sempre que desejamos aperfeiçoar-nos (em qualquer coisa, em qualquer habilidade), temos que reconhecer que somos imperfeitos e que estamos abaixo de parâmetros julgados ideais: em outras palavras, sempre que desejamos o aperfeiçoamento, temos que nos submeter a algo e/ou a alguém

o   Deveria ser evidente e não deixa de ser um tanto degradante ser necessário afirmar que a submissão não é sinônima de (auto)degradação, (auto-)humilhação: na positividade, a submissão é sempre digna

§  As filosofias políticas e sociais que têm maior importância atual no Ocidente são todas, ou quase todas, metafísicas e, por isso, elas rejeitam a veneração e consideram que toda submissão é sempre degradante

o   Não é por acaso que Augusto Comte indicava que um dos melhores traços para avaliar o grau de positividade das pessoas, incluindo aí os próprios positivistas (ou pretensos positivistas), são os hábitos de veneração dessas pessoas

o   Criticar algo ou alguém (ou simplesmente deles falar) sem conhecer é uma forma de ausência de veneração, ou seja, é uma forma de arrogância, de orgulho, de desprezo

§  Dito de outra maneira, criticar algo ou alguém sem o conhecer é agir sem amor (ou contra o amor)