Em postagem anterior, intitulada “Relativismo
histórico, anti-racismo e memórias históricas”, indiquei vários motivos
que justificam a preservação de estátuas comemorativas de personagens como
Winston Churchill (no mundo inteiro) e a manutenção do nome de Woodrow Wilson
na Escola de Relações Internacionais da Universidade Princeton (nos Estados
Unidos). Embora essa postagem tenha sido extensa e tenha coberto uma ampla gama
de temas, uma nova reflexão levou-me a perceber que eu não havia esgotado o
tema e que há, portanto, outros aspectos que merecem ser apresentados. De
maneira específica, quero comentar pelo menos mais dois aspectos: (1) o caráter
metafísico e (2) o antiprogressivismo do combate às memórias históricas; o
segundo aspecto é uma decorrência do primeiro, embora ambos sejam em si mesmos
distintos um do outro.
No Positivismo, na Religião da Humanidade, o que se opõe ao “relativo”
é o “absoluto”. O absoluto é a forma de encarar a realidade, o mundo, o ser
humano, que pretende que tudo isso seja entendido de uma vez por todas, por
todo o sempre; em oposição ao que é “relativo”, o absoluto rejeita relações,
vínculos; assim, o absoluto permitiria a compreensão de tudo a partir de algum
princípio externo ao que existe e que
não dependeria de nada para existir e para permitir o entendimento. De maneira
exemplar, a concepção de uma divindade, em particular no monoteísmo, representa(ria)
a concepção do absoluto: supostamente o deus monoteísta existe em si e para si,
independentemente de quem e do que quer que seja, mas, por outro lado, tudo o
que existe, existiu e existirá depende dele e por ele seria explicado. As
perguntas finalísticas – “de onde viemos?”, “para onde vamos”, “por que
existimos?” – são as questões que dão origem à concepção teológica e suas
respostas conduzem ao absoluto.
Ora, como vimos, o absoluto tem sua melhor representação na
teologia, em particular no monoteísmo. Como Augusto Comte indicou desde o
início de sua carreira, as idéias são históricas e alteram-se ao longo do
tempo; essas alterações de cada concepção seguem uma evolução específica, que consiste
na passagem da teologia para a sua concepção corrompida, que é a metafísica; da
metafísica (que possui um caráter meramente transitório) passa-se à
positividade, cuja grande característica é o relativismo. (Não é necessário
insistir em que a transição do absolutismo teológico-metafísico para o
relativismo positivo é uma verdadeira revolução mental e moral, com um caráter
extremamente profundo e, por isso mesmo, de realização complicada.)
A metafísica, portanto, é absoluta; ela visa a responder de
uma vez por todas as questões que considera. Mas, como indicamos, a metafísica
também é mera transição entre a teologia e a positividade; essa transição em
particular assume a característica de ser “crítica”, isto é, destruidora,
corrosiva. Ainda mais: embora compartilhe com a teologia seu caráter absoluto,
a metafísica opõe-se à teologia, em particular assumindo-se o título de “progressista”
contra o “conservadorismo” imputado à teologia. Em face da metafísica, não há
dúvida de que a teologia torna-se realmente conservadora; além disso, quando
surge, a metafísica consiste na própria realização do progresso, na medida em
que a decomposição da teologia em direção à positividade é a própria marcha do
progresso.
O conservadorismo teológico e o progressivismo metafísico
são ambos absolutos; eles afirmam seus princípios de uma vez por todas e
rejeitando as concepções de vínculos, de relações, de limitações, de contextos.
Quando a metafísica passa a atuar sobre e contra a teologia, logo se instala
uma dinâmica (os marxistas e os hegelianos diriam uma “dialética”) que opõe a
ordem e o progresso, comprometendo tanto a ordem quanto o progresso, em que a
ordem torna-se reacionária e o progresso torna-se anárquico. O que está em
questão nessa dinâmica, portanto, é o papel concedido à liberdade e, em
decorrência disso, a forma como a sociedade organiza-se (se de maneira
espontânea, se de maneira forçada; se com princípios compartilhados, se sem
tais princípios).
Assim, embora ela inicialmente ela corresponda ao progresso
e afirme-se como sendo a representante do progresso, entregue a si mesma a
metafísica acaba agindo de tal maneira que combate exatamente aquilo que afirma
defender. Entretanto, o problema vai mesmo além da dinâmica suicida entre a
ordem retrógrada e o progresso anárquico: fiel ao seu caráter dissolvente, ou,
para usar uma palavra que todos conhecem, empregam e mais ou menos entendem,
fiel ao seu caráter crítico, a
metafísica é incapaz de manter quaisquer instituições, quaisquer conquistas. Em
outras palavras, por si mesma a metafísica acaba resultando no fim do mesmo
progresso que ela supostamente representa e defende.
Trazendo essas reflexões filosóficas e sociológicas para o
caso que consideramos anteriormente – as estátuas e as homenagens a tipos
considerados atualmente como racistas –, o resultado é que a falta de relativismo
histórico a respeito dessas personagens deve-se antes de mais nada a seu
caráter metafísico, crítico, destruidor, absoluto. Deseja-se de uma vez por
todas, de maneira radical, ou melhor, de maneira brutal avaliar todas as
carreiras desses tipos, baseando-se em parâmetros estritamente atuais e
desprezando-se as atuações dessas personagens nos momentos em que viveram e, de
modo específico, pelas quais tornaram-se famosas. Não há dúvida de que é motivo
do mais profundo pesar, do mais profundo lamento, que Churchill e Wilson – para
ficarmos nas duas personagens que estou considerando de maneira particular –
tenham sido racistas; esse traço constitui uma nódoa profunda na biografia de
cada um: ainda assim, a despeito disso, nenhum dos dois é lembrado, celebrado,
cultuado devido ao racismo, mas devido às suas decisivas ações políticas ao
longo do século XX – ações aliás francamente progressistas e libertárias. Aparentemente,
há bustos e estátuas de outras personagens cujas carreiras consistiram
basicamente no comércio de escravos, na manutenção da escravidão: nesse caso,
não há atenuantes, não há justificativas plausíveis para a celebração de suas memórias;
mas, como argumentamos, são muito diferentes as situações de personagens como
Churchill, Wilson e vários outros.
Doravante, quando nos referirmos ao ex-primeiro-ministro
britânico e ao ex-presidente estadunidense (e a muitos, muitos outros), teremos
que indicar claramente seus lamentáveis racismos, com bem mais que eventuais
notas de rodapé: isso, entretanto, é muito diferente de desprezar suas
importantes ações devido ao racismo; no final das contas, empregar o racismo
como critério único para julgar a inteireza da vida de alguém não deixa de ser
uma inesperada e lamentável vitória do próprio racismo sobre a liberdade, a
fraternidade e a tolerância.