Mostrando postagens com marcador Jornalismo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Jornalismo. Mostrar todas as postagens

10 junho 2025

Monitor Mercantil: Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas

No dia 9 de junho o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o meu artigo "Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas".

A versão do jornal está disponível aqui.

Reproduzimos abaixo o texto.

*   *   *

Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas

Jornalismo reduz política às fofocas em associação com financismo 

Por Gustavo Biscaia de Lacerda

TV digital aberta (foto de Valter Campanato, ABr)

Considera-se, de modo geral, que jornalismo e política devem andar juntos e que tanto cada um deles, em particular, quanto sua união são virtuosos. Entretanto, essas concepções são altamente discutíveis e, com frequência, equivocadas.

A princípio, não há o que discutir a respeito da importância da política. Ela é importante porque organiza a vida coletiva; gostemos ou não, queiramos ou não, todos estamos sob a influência necessária da atividade política. Mas a submissão necessária à política gera, amiúde, confusões práticas e teóricas, nas quais se considera que “tudo é política”, ou seja, que tudo se reduz à disputa de poder.

Por mais importante que seja a política, a sociedade não se reduz a ela: os aspectos filosóficos, culturais e morais regulam, moldam e orientam a política; já os aspectos materiais sempre exercem sua pressão. O resultado é que a política molda, mas também é moldada.

Mas há várias maneiras de entender a política; em inglês, distingue-se a politics (a política do dia a dia), a polity (a estrutura sociopolítica geral, que alguns traduzem como “constituição”) e a policy (cada uma das políticas públicas). A disputa de poder corresponde à politics, ao passo que as policies e, ainda mais, a polity exigem consensos, convergências, legitimidade e aceitação de regras. Claro que a politics influencia a polity e as policies, mas confundir uma coisa com as outras, reduzir a polity à politics, é um grave erro, resultando apenas em cinismo e violência.


Passemos ao jornalismo. Sua missão básica é informar os acontecimentos; assim, há vários tipos de jornalismo: investigativo, científico, econômico, de amenidades etc. Mas talvez o mais famoso e prestigiado seja o político. O jornalismo político dedica-se a narrar o dia a dia da política: ele se concentra na politics. Como as policies e a polity são de longo prazo e conceituais, elas são “chatas”, desinteressantes e não recebem atenção jornalística.

A preferência jornalística pela politics e a rejeição da polity-policy têm várias consequências. Uma primeira é a concentração das coberturas na atividade parlamentar; uma segunda é a defesa (implícita ou explícita) da atividade dos parlamentares contra o governo. A política do dia a dia é das disputas, das briguinhas, dos ciúmes, das intrigas… Com frequência, isso recebe o título edulcorado de “negociações”, mas essa é apenas uma forma empolada de referir-se ao que costuma ser apenas mesquinhez.

O jornalismo especializado em intrigas e mesquinhez não é outra coisa senão fofoca. Como as intrigas são incessantes, mas despertam interesse e paixões, os fofoqueiros têm prestígio e legitimam a concepção de que as fofocas que noticiam (“repercutem”) são a “verdadeira” política. Claro que os políticos — ou melhor, os parlamentares — saem ganhando com isso, obtendo exposição pública e sendo apresentados como “ativos”, “representativos” etc.

Esse é um sistema que se retroalimenta, em que os parlamentares (especialmente no parlamentarismo) e os jornalistas beneficiam-se mutuamente: as intrigas mesquinhas são vendidas como a verdadeira política, e as fofocas parlamentares são vendidas como verdadeiras notícias. Esses dois blocos falam em causa própria e apoiam-se mutuamente, de maneira altissonante ou até estridente; com isso, as fofocas são apresentadas como a opinião pública, e as intrigas, como a manifestação do bem comum.

Tudo isso é péssimo. Para piorar, no Brasil, o jornalismo econômico não se preocupa em informar, mas atua ativa e conscientemente como porta-voz do liberalismo econômico, isto é, de elites financistas internacionais que não querem a regulação do capital nem sua taxação e, para isso, impõem as concepções de Estado mínimo, de iniciativa privada “eficiente” e de servidores públicos incompetentes. É fácil ver que o jornalismo de fofocas é convergente com os porta-vozes do financismo internacional.

Augusto Comte, o fundador da Sociologia, já criticava e denunciava, no século 19, essa união entre o jornalismo de fofocas e a política parlamentarista — que, devemos repetir, finge ser a opinião pública e despreza a política como projeto social amplo. Desgraçadamente, o que o fundador do Positivismo criticava já em 1824 corresponde à realidade brasileira atual.

O que se vê nos grandes jornais do país é exatamente a fofoca parlamentar vendida como jornalismo político e as intrigas parlamentares vendidas como grande política. Esse vínculo é camuflado pelas críticas reiteradas que se fazem à “falta de habilidade” do presidente Lula para “negociar” com o Congresso Nacional: o parlamento é fortemente reacionário e assustadoramente corporativista, duas características que foram estimuladas pelo governo anterior em sua busca dupla de dar um golpe de Estado e de evitar o impedimento.

Claro que o viés conservador do atual parlamento torna-o mais reticente às propostas do governo; mas os recursos que a Constituição Federal de 1988 legou ao presidente da República sempre bastaram para acomodar ou contornar dificuldades ideológicas. Entretanto, desde 2019 — na verdade, desde antes, desde 2016 —, o Congresso Nacional aprofundou cada vez mais o seu caráter clientelista, corporativista e — não há como evitar — parasitário, cobrando um preço cada vez maior para manter um simulacro de “governabilidade”. Esse parasitismo, associado ao golpismo/anti-impedimento, encontrou seu paroxismo no aberrante “orçamento secreto”.

Uma característica notável do atual governo Lula é sua moderação; seu lema de campanha — “União e reconstrução” — dá a exata medida das necessidades atuais do país e evidencia o aspecto profundamente republicano de sua proposta. Sendo bem direto, essa é uma proposta de um verdadeiro estadista. É claro que Lula não é perfeito e que as mais diversas críticas podem ser feitas contra ele, como a respeito da política identitária, com suas cotas divisionistas, e das ambiguidades em relação à Rússia e à China; mas, no conjunto, o governo está na direção certa e adota as medidas urgentes e necessárias para o desenvolvimento social e econômico do país.

Se está na direção certa, o que dificulta a ação de Lula? Basta bom senso e honestidade para perceber que é o parlamento parasitário, que é mesquinho, impede o desenvolvimento nacional, trai a confiança do governo e protege — senão estimula — o golpismo fascista. Por seu turno, o jornalismo político, reduzindo a política às fofocas e em associação com os porta-vozes do financismo internacionalista, finge que tudo isso não é uma agressiva chantagem nem o bloqueio de um programa social e político verdadeiramente republicano.

Não há país que vá para frente nessas condições. Mas também não há soluções simples: é necessário evitar — ou combater — a demagogia extremista (atualmente na versão fascista) e as fake news, que correspondem às versões extremas e irmanadas do parlamento parasitário e do jornalismo de fofocas. O caminho é longo.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

13 janeiro 2025

Monitor Mercantil: "Em 2024, o Positivismo continuou desrespeitado"

No dia 13 de janeiro de 2025 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo mensal, desta feita intitulado "Em 2024 o Positivismo continuou desrespeitado".

O original do texto pode ser lido aqui: https://monitormercantil.com.br/em-2024-o-positivismo-continuou-desrespeitado/.

Reproduzimos abaixo o nosso artigo.

*   *   *


Em 2024 o Positivismo continuou desrespeitado

Em 30.12.2024, em uma das tradicionais retrospectivas, o antropólogo Juliano Spyer afirmou na Folha de S. Paulo (“O debate e a cobertura sobre religião se profissionalizaram em 2024”) que a cobertura jornalística sobre as “religiões” profissionalizou-se em 2024. Para o autor, a cobertura jornalística das religiões teria melhorado pois (1) mais religiões passaram a ser cobertas, (2) por pesquisadores acadêmicos profissionais e (3) com perspectivas mais simpáticas ou, pelo menos, mais compreensivas.

Não nos importa aqui criticar o aumento da cobertura academicista-jornalística das “religiões” apontada por Juliano Spyer; em si mesmo, isso parece algo positivo. O que importa notar são as características indicadas e as ausências não indicadas: nesse sentido, o articulista é exemplar de vieses tanto da cobertura jornalística quanto das análises acadêmicas.

Antes de mais nada, embora esse antropólogo tenha uma abordagem “científica”, tanto ele quanto os pesquisadores “científicos” das chamadas “ciências da religião” adotam um conceito de “religião” que é o mesmo que o senso comum adota e que iguala “religião” a “teologia”: crenças em divindades e em um suposto “outro mundo”. Além disso, de modo geral as teologias consideradas são as monoteístas, em particular as abraâmicas. O resultado dessas concepções – que, importa insistir, são de senso comum e repetidas acriticamente pelas “ciências da religião” – é que se forçam e distorcem os dados da realidade para que caibam no esquema teórico. Religiões que cabem muito mal no esquema das divindades são forçadas nessa concepção, como o fetichismo, o budismo e até o confucionismo – isso, claro, para não falar das religiões metafísicas e, mais importante para nós, das humanistas.

Pesquisadores-jornalistas podem contribuir para popularizar pesquisas científicas e qualificar o debate público: isso é urgente quando a desinformação corre solta nas redes sociais e em que donos de redes mundiais manifestam-se a favor da desinformação, em particular de extrema direita. Sobre as “religiões”, pode ser interessante a simpatia por elas, ou, pelo menos, um esforço maior para compreendê-las. Talvez como um sinal dos tempos, os pesquisadores-jornalistas citados por Spyer são também sacerdotes das religiões; essa participação nas religiões permite acesso a dados e interpretações que, de outra maneira, talvez fossem mais difíceis de obter e que o academicismo muitas vezes rejeita. Mas, embora Spyer não sugira nada assim, o fato é que essa participação nas religiões tem um certo ar de “lugar de fala”.

Ora, o conceito de religião das “ciências da religião” é ruim, muito restritivo; não diremos que é “etnocêntrico”, mas ele despreza tudo o que não se aproxima do sobrenaturalismo e dos monoteísmos abraâmicos. Na verdade, o materialismo cientificista tem nesse caso a degradante conseqüência de desprezar qualquer esforço religioso que seja humanista e imanentista. Da mesma forma, o quase “lugar de fala” aceito e valorizado para os monoteísmos é rejeitado para os humanismos.

Chegamos então ao que nos interessa. A maior cobertura supostamente mais profissional e com certeza mais simpática dos monoteísmos no jornalismo brasileiro não se estende ao Positivismo, à Religião da Humanidade. De maneira notável e escandalosa, as três características indicadas por Spyer para os monoteísmos não se aplicam ao Positivismo: a cobertura sobre ele não é melhor nem mais profissional, não se dá voz aos seus sacerdotes e não se concede a ele nem simpatia nem compreensão.

O fato de que vulgarmente se entende que religião são principalmente os monoteísmos é apenas o começo do problema, reforçado pelos preconceitos materialistas do cientificismo. Mas, no fundo, há apenas má vontade e má fé, ou seja, preconceito. Todos “sabem” o que é o Positivismo (e todos “sabem” o que é “religião”); todos “sabem” qual a influência do Positivismo no Brasil, no Ocidente e no mundo: assim, não é necessário ouvir os positivistas – e, em particular, quando o que há para ouvir vai contra o que se “sabe”.

Não importa que a extrema direita, durante o terrível governo fascista, tenha seguidamente afirmado que o Positivismo é o culpado pelos problemas nacionais e tenha estimulado a morte dos positivistas (ver o nosso artigo “O Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direitabrasileira”, publicado no Monitor Mercantil de 23 a 25 de maio de 2020). No Brasil segue-se o seguinte padrão: pode-se falar sobre o Positivismo o que se desejar, mas nunca se pode, nem se deve, ouvir o que os positivistas têm a dizer.

Dois exemplos ilustram com perfeição nosso argumento. Em 30.8.2022 a BBC Brasil publicou o texto “Ordem e Progresso: como as ideias de um filósofo francês do século 19 ajudam a entender a formação do Brasil” (https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4gmp4nrw0wo). Nesse artigo, fala-se profusamente sobre o Positivismo, citam-se muitos professores universitários, argumentam-se muitas coisas, mostram-se muitas fotos. Mas o tom geral é negativo e, para quem conhece de verdade o Positivismo, a desinformação sistemática abunda. Além disso, coroando esses defeitos, é claro que absolutamente nenhum positivista foi ouvido.

Já em 16.12.2024, a ex-Deputada Federal comunista Manuela d’Ávila, em entrevista para o jornalista Chico Pinheiro pelo Instituto Conhecimento Liberta (https://www.youtube.com/watch?v=AbYAZF912eA), repetiu que o Positivismo é o responsável pelo militarismo e pelo fascismo no Brasil. Ela difundiu esses mitos conscientemente, com ligeireza e superficialidade, mesmo sendo jornalista e gaúcha, ou seja, tendo os meios para averiguar em primeira mão o que afirma (por exemplo, indo pessoalmente à Igreja Positivista do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre).

Os exemplos acima são apenas dois em dezenas de outros possíveis. Se versassem sobre outras religiões ou filosofias – comunismo, feminismo, marxismo, catolicismo, liberalismo, candomblecismo, espiritismo, budismo, islamismo, cristianismos evangélicos etc. –, ter simpatia ou compreensão pelo tema seria exigido, sem contar que ouvir algum representante seria pelo menos de bom tom; limitar-se a opiniões de terceiros, falar mal e não permitir réplica seria inimaginável. Mas no caso do Positivismo, esses comportamentos jornalisticamente antiéticos, politicamente irresponsáveis e moralmente desprezíveis são não apenas aceitos como são exigidos.

Em face disso tudo, o avanço sugerido por Juliano Spyer é assustadoramente parcial e enviesado: não se trata de melhoria na cobertura jornalística das “religiões”, mas apenas concessão às teologias monoteístas. O que não se enquadra nisso – em particular o humanismo positivista –, a par da degradação geral da República e da laicidade no Brasil, é desprezado. 

Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.