No dia 13 de janeiro de 2025 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo mensal, desta feita intitulado "Em 2024 o Positivismo continuou desrespeitado".
O original do texto pode ser lido aqui: https://monitormercantil.com.br/em-2024-o-positivismo-continuou-desrespeitado/.
Reproduzimos abaixo o nosso artigo.
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Em 2024 o Positivismo continuou desrespeitado
Em 30.12.2024, em uma das tradicionais retrospectivas, o antropólogo Juliano Spyer afirmou na Folha de S. Paulo (“O debate e a cobertura sobre religião se profissionalizaram em 2024”) que a cobertura jornalística sobre as “religiões” profissionalizou-se em 2024. Para o autor, a cobertura jornalística das religiões teria melhorado pois (1) mais religiões passaram a ser cobertas, (2) por pesquisadores acadêmicos profissionais e (3) com perspectivas mais simpáticas ou, pelo menos, mais compreensivas.
Não nos importa aqui criticar o aumento da cobertura academicista-jornalística das “religiões” apontada por Juliano Spyer; em si mesmo, isso parece algo positivo. O que importa notar são as características indicadas e as ausências não indicadas: nesse sentido, o articulista é exemplar de vieses tanto da cobertura jornalística quanto das análises acadêmicas.
Antes de mais nada, embora esse antropólogo tenha uma abordagem “científica”, tanto ele quanto os pesquisadores “científicos” das chamadas “ciências da religião” adotam um conceito de “religião” que é o mesmo que o senso comum adota e que iguala “religião” a “teologia”: crenças em divindades e em um suposto “outro mundo”. Além disso, de modo geral as teologias consideradas são as monoteístas, em particular as abraâmicas. O resultado dessas concepções – que, importa insistir, são de senso comum e repetidas acriticamente pelas “ciências da religião” – é que se forçam e distorcem os dados da realidade para que caibam no esquema teórico. Religiões que cabem muito mal no esquema das divindades são forçadas nessa concepção, como o fetichismo, o budismo e até o confucionismo – isso, claro, para não falar das religiões metafísicas e, mais importante para nós, das humanistas.
Pesquisadores-jornalistas podem contribuir para popularizar pesquisas científicas e qualificar o debate público: isso é urgente quando a desinformação corre solta nas redes sociais e em que donos de redes mundiais manifestam-se a favor da desinformação, em particular de extrema direita. Sobre as “religiões”, pode ser interessante a simpatia por elas, ou, pelo menos, um esforço maior para compreendê-las. Talvez como um sinal dos tempos, os pesquisadores-jornalistas citados por Spyer são também sacerdotes das religiões; essa participação nas religiões permite acesso a dados e interpretações que, de outra maneira, talvez fossem mais difíceis de obter e que o academicismo muitas vezes rejeita. Mas, embora Spyer não sugira nada assim, o fato é que essa participação nas religiões tem um certo ar de “lugar de fala”.
Ora, o conceito de religião das “ciências da religião” é ruim, muito restritivo; não diremos que é “etnocêntrico”, mas ele despreza tudo o que não se aproxima do sobrenaturalismo e dos monoteísmos abraâmicos. Na verdade, o materialismo cientificista tem nesse caso a degradante conseqüência de desprezar qualquer esforço religioso que seja humanista e imanentista. Da mesma forma, o quase “lugar de fala” aceito e valorizado para os monoteísmos é rejeitado para os humanismos.
Chegamos então ao que nos interessa. A maior cobertura supostamente mais profissional e com certeza mais simpática dos monoteísmos no jornalismo brasileiro não se estende ao Positivismo, à Religião da Humanidade. De maneira notável e escandalosa, as três características indicadas por Spyer para os monoteísmos não se aplicam ao Positivismo: a cobertura sobre ele não é melhor nem mais profissional, não se dá voz aos seus sacerdotes e não se concede a ele nem simpatia nem compreensão.
O fato de que vulgarmente se entende que religião são principalmente os monoteísmos é apenas o começo do problema, reforçado pelos preconceitos materialistas do cientificismo. Mas, no fundo, há apenas má vontade e má fé, ou seja, preconceito. Todos “sabem” o que é o Positivismo (e todos “sabem” o que é “religião”); todos “sabem” qual a influência do Positivismo no Brasil, no Ocidente e no mundo: assim, não é necessário ouvir os positivistas – e, em particular, quando o que há para ouvir vai contra o que se “sabe”.
Não importa que a extrema direita, durante o terrível governo fascista, tenha seguidamente afirmado que o Positivismo é o culpado pelos problemas nacionais e tenha estimulado a morte dos positivistas (ver o nosso artigo “O Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direitabrasileira”, publicado no Monitor Mercantil de 23 a 25 de maio de 2020). No Brasil segue-se o seguinte padrão: pode-se falar sobre o Positivismo o que se desejar, mas nunca se pode, nem se deve, ouvir o que os positivistas têm a dizer.
Dois exemplos ilustram com perfeição nosso argumento. Em 30.8.2022 a BBC Brasil publicou o texto “Ordem e Progresso: como as ideias de um filósofo francês do século 19 ajudam a entender a formação do Brasil” (https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4gmp4nrw0wo). Nesse artigo, fala-se profusamente sobre o Positivismo, citam-se muitos professores universitários, argumentam-se muitas coisas, mostram-se muitas fotos. Mas o tom geral é negativo e, para quem conhece de verdade o Positivismo, a desinformação sistemática abunda. Além disso, coroando esses defeitos, é claro que absolutamente nenhum positivista foi ouvido.
Já em 16.12.2024, a ex-Deputada Federal comunista Manuela d’Ávila, em entrevista para o jornalista Chico Pinheiro pelo Instituto Conhecimento Liberta (https://www.youtube.com/watch?v=AbYAZF912eA), repetiu que o Positivismo é o responsável pelo militarismo e pelo fascismo no Brasil. Ela difundiu esses mitos conscientemente, com ligeireza e superficialidade, mesmo sendo jornalista e gaúcha, ou seja, tendo os meios para averiguar em primeira mão o que afirma (por exemplo, indo pessoalmente à Igreja Positivista do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre).
Os exemplos acima são apenas dois em dezenas de outros possíveis. Se versassem sobre outras religiões ou filosofias – comunismo, feminismo, marxismo, catolicismo, liberalismo, candomblecismo, espiritismo, budismo, islamismo, cristianismos evangélicos etc. –, ter simpatia ou compreensão pelo tema seria exigido, sem contar que ouvir algum representante seria pelo menos de bom tom; limitar-se a opiniões de terceiros, falar mal e não permitir réplica seria inimaginável. Mas no caso do Positivismo, esses comportamentos jornalisticamente antiéticos, politicamente irresponsáveis e moralmente desprezíveis são não apenas aceitos como são exigidos.
Em face disso tudo, o avanço sugerido por Juliano Spyer é assustadoramente parcial e enviesado: não se trata de melhoria na cobertura jornalística das “religiões”, mas apenas concessão às teologias monoteístas. O que não se enquadra nisso – em particular o humanismo positivista –, a par da degradação geral da República e da laicidade no Brasil, é desprezado.
Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.