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10 setembro 2024

Monitor Mercantil: O que é um voto republicano consciente?

A partir do manifesto "Programa republicano mínimo - orientações para o voto no dia 6 de outubro", redigimos um artigo que foi publicado no jornal carioca Monitor Mercantil do dia 1º de Shakespeare de 170 (9.9.2024), sob o título "O que é um voto republicano consciente?".

Reproduzimos abaixo a versão publicada no jornal. O original pode ser lido aqui: https://monitormercantil.com.br/o-que-e-um-voto-republicano-consciente/.

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O que é um voto republicano consciente?

Alguns parâmetros e algumas orientações para escolher candidatos através do voto consciente. Por Gustavo Biscaia de Lacerda


Como ocorre a cada dois anos no Brasil, neste 2024 teremos eleições; nesta rodada elegeremos prefeitos e vereadores. As campanhas estão a pleno vapor, desde o dia 16 de agosto. Como sempre ocorre, partidos políticos, Justiça Eleitoral, meios de comunicação, vários grupos da sociedade civil e candidatos afirmam que é importante “votar com consciência”, “votar de maneira esclarecida”, “buscar os melhores candidatos”, mas muito raramente, para não dizer nunca, são apresentados com clareza os critérios que definem a “consciência”, o “esclarecimento”, os “melhores”.

No máximo há a afirmação de que os candidatos escolhidos devem “representar” os eleitores, com isso querendo dizer que os eleitores devem buscar candidatos que pensem e ajam de maneira semelhante aos próprios eleitores; mas, dizendo com clareza, esse parâmetro “demográfico” é péssimo, pois simplesmente desconsidera, quando não despreza, os verdadeiros interesses coletivos e públicos.

Assim, correndo um pouco o risco de soar prepotente, propomo-nos aqui a indicar alguns parâmetros gerais e algumas orientações específicas para a escolha de candidatos a prefeito e a vereador nas próximas (e em todas as demais) eleições. O pressuposto fundamental nessas sugestões é que no Brasil vivemos em uma república, e que isso não é somente um regime político, mas um denso e profundo programa político, social e moral. Como se verá, à primeira vista talvez o programa abaixo pareça muito exigente; mas, por um lado, isso não é motivo para desconsiderá-lo; por outro lado, isso indica o quanto estamos distantes do republicanismo no Brasil.

Com antecedentes históricos que recuam pelo menos até Tiradentes, no final do século 18, desde 15 de novembro de 1889 o Brasil é uma república. Embora à primeira vista o conceito de “república” pareça pouco, na verdade ele é de fato um dos mais densos e importantes conceitos. A noção de república é ao mesmo tempo um ideal e uma realidade: surgida do desenvolvimento histórico, ela também deve orientar a nossa atuação no sentido de valores e a práticas considerados bons, corretos e justos. É claro que nem sempre esses ideais se realizam na prática, mas isso não é motivo para desvalorizá-los ou rejeitá-los.

O sentido fundamental da república é a realização do bem comum, superando o individualismo, o egoísmo, os particularismos. Além disso, a república opõe-se à monarquia, embora isso nem sempre seja tão evidente, daí a república opõe-se à sociedade de castas; isso quer dizer que na república o valor de uma pessoa é dado pelo mérito individual, em vez de ser pelas condições em que nasceu, ou seja, pelo “berço”.

Se a república é a dedicação ao bem comum, é claro que o conjunto da sociedade deve sempre ser levado em consideração, e todos devem orientar suas condutas para a melhoria da vida de todos. Daí se segue que a fraternidade universal é um valor básico e, portanto, o respeito mútuo e a afirmação da dignidade fundamental de todos são pilares da vida coletiva.

Além disso, as relações sociais têm que ser pacíficas: qualquer forma de violência degrada as relações humanas e o ambiente social. O pacifismo e a fraternidade universal impõem, por seu turno, o repúdio ao racismo e às discriminações de “gênero”; da mesma forma, eles exigem o respeito ao meio ambiente e, claro, aos animais. De maneira mais ampla, como a maior parte da sociedade é composta pelo proletariado (ou seja, pelos trabalhadores), os esforços sociais têm que se orientar para a melhoria das suas condições de vida: é esse o objetivo que se deve orientar a ação dos “capitalistas” e da classe média.

Acima de tudo, a dedicação ao bem comum significa a subordinação da política à moral; isso não é um “moralismo” sistemático, mas implica subordinar a política aos princípios e valores maiores da Humanidade, com a família subordinando-se à pátria, e a pátria subordinando-se à Humanidade. Somente assim a política pode ser a dedicação ao bem comum – e, a partir disso, ser fiscalizável e responsabilizável.

O resultado disso é a regra do “viver às claras”: cada um deve adotar valores em sua vida que sejam publicamente defensáveis (e viver conforme esses valores). No caso dos governantes e das figuras públicas, o viver às claras também significa que todos os seus atos são responsabilizáveis, passíveis de acompanhamento, avaliação e cobrança públicas. Como consequência do viver às claras, todos devem sempre falar a verdade e cumprir o prometido – ou, em outras palavras, não se deve mentir nem se deve trair.

Por fim, a instituição republicana básica é a separação entre igreja e Estado: quem aconselha não pode usar a violência do Estado para fazer-se valer; inversamente, o Estado não pode condicionar os seus serviços à aceitação de crenças oficiais. Dessa forma, os sacerdotes devem manter-se afastados do Estado a fim de garantirem sua dignidade, assim como o Estado deve recusar sacerdotes para não ser usado como instrumento de opressão.

Esse afastamento dos sacerdotes em relação à política não quer dizer alienação nem indiferença, mas que, como sacerdotes, não podem trabalhar para o Estado. Daí se seguem as liberdades fundamentais: as liberdades de crença, de manifestação e de associação, além do direito de ir e vir, o habeas corpus e o devido processo legal.

Tudo isso converge para as seguintes orientações específicas

Em primeiro lugar, deve-se votar em quem apresentar estes comportamentos: quem respeitar a laicidade do Estado; a dignidade humana e a fraternidade universal; a dignidade do espaço público e das instituições republicanas; a dignidade e as condições de vida da população brasileira, em particular dos trabalhadores, dos mais pobres e dos povos indígenas; a dignidade da família, independentemente da orientação sexual de cada família; a dignidade das mulheres; quem combater o racismo e outras discriminações; quem defender o meio ambiente e as condições de vida dos animais.

Em segundo lugar, não se deve votar em quem apresentar estes comportamentos: quem for sacerdote (padre, pastor etc.); quem usar o Estado para promover cultos; desvalorizar os problemas sociais e/ou criminalizar a pobreza; promover a cultura da violência e estimular o uso de armas de fogo pela população civil; promover valores e práticas exclusivistas e excludentes, incluindo aí as chamadas pautas identitárias; negar os problemas ambientais (os “negacionistas climáticos”); promover a “cultura do cancelamento” e a “cultura da baixaria”; tiver histórico de ligação com o crime; promover o racismo, a misoginia e preconceitos diversos.

Parece muito? Talvez. Mas, bem vistas as coisas, isso é o mínimo de uma sociedade decente, saudável, digna de ser vivida em conjunto. Menos do que isso é o triste espetáculo que vivemos.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

03 setembro 2024

O Positivismo é tecnocrático?

No dia 23 de Gutenberg de 170 (3.9.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua duodécima conferência (dedicada à exposição da evolução histórica do desenvolvimento humano, ou seja, da religião, em particular do fetichismo e do politeísmo).

Depois das exortações e da indicação das efemérides, lemos nosso documento "Programa republicano mínimo - orientações para o voto no dia 6 de outubro".

Na parte do sermão procuramos responder à seguinte pergunta: o Positivismo é tecnocrático?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/9s5IO) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/mMKn5).

Os tempos da prédica foram os seguintes:

00 min 00 s - início

15 min 27 s - exortações 

24 min 58 s - efemérides

29 min 35 s - leitura do documento "Programa republicano mínimo"

45 min 21 s - leitura comentada do Catecismo positivista

1 h 00 min 51 s - sermão 

2 h 10 min 00 s - término

As anotações que serviram de base para a exposição oral estão reproduzidas abaixo.

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O Positivismo é tecnocrático?

(23 de Gutenberg de 170/3.9.2024)

 1.       Abertura

2.       Exortações iniciais

2.1.    Sejamos altruístas!

2.2.    Façamos orações!

2.3.    Façam o Pix da Positividade! (Chave pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

3.       Efemérides:

3.1.    24 de Gutenberg (4.9): nascimento de Richard Congreve (1881)

3.2.    25 de Gutenberg (5.9): transformação de Augusto Comte (1857)

3.3.    26 de Gutenberg (6.9): nascimento do Alte. Henrique Batista de Oliveira (1908)

3.4.    27 de Gutenberg (7.9): independência do Brasil (1822)

4.       Leitura do documento “Programa republicano mínimo – orientações para o voto no dia 6 de outubro”

 

IGREJA POSITIVISTA VIRTUAL

Programa republicano mínimo

Orientações para o voto no dia 6 de outubro

1. Introdução: a necessidade de critérios para escolher candidatos

Neste ano, no dia 6 de outubro, teremos eleições municipais, em que a população brasileira elegerá seus novos prefeitos e vereadores; desde o dia 16 de agosto temos campanha eleitoral. Os partidos políticos, a Justiça Eleitoral, os meios de comunicação e vários grupos da sociedade civil afirmam que é importante “votar com consciência”, “votar de maneira esclarecida”, “buscar os melhores candidatos”, mas muito raramente, para não dizer nunca, são apresentados com clareza os critérios que definem a “consciência”, o “esclarecimento”, os “melhores”. No máximo há a afirmação de que os candidatos escolhidos devem “representar” os eleitores, com isso querendo dizer que os candidatos devem pensar e agir de maneira semelhante aos eleitores – o que, dizendo com clareza, está muito distante dos verdadeiros interesses sociais.

Com o objetivo de auxiliar a reflexão pública e, na medida do possível, orientar nossos concidadãos eleitores na escolha de candidatos a prefeito e a vereador, apresentaremos neste documento alguns critérios positivos e critérios negativos – ou seja, opiniões e comportamentos que os candidatos devem apresentar para serem escolhidos, bem como opiniões e comportamentos que são motivos para rejeitar candidatos.

Este manifesto é dirigido a todos e todas os brasileiros e brasileiras, nossos concidadãos eleitores e nossas concidadãs eleitoras. Como se verá, à primeira vista talvez o programa abaixo pareça muito exigente: mas, por um lado, isso não é motivo para desconsiderá-lo; por outro lado, isso indica o quanto estamos distantes do republicanismo no Brasil.

Antes, porém, é importante expor os fundamentos políticos, sociais e morais dos critérios que apresentaremos.

2. A política positiva e a república

Desde 15 de novembro de 1889 o Brasil é uma República. Embora à primeira vista o conceito de “república” pareça pouco, na verdade ele é um dos mais densos e importantes na vida de qualquer cidadão. A noção de república é um ideal: nem sempre esse ideal realiza-se na prática, mas isso não é motivo para desvalorizar o ideal, nem para rejeitá-lo. Vejamos, então, quais são os elementos desse ideal.

O sentido fundamental da república é o bem comum: efetivamente se dedicar ao bem-estar coletivo, superando o individualismo, o egoísmo, os particularismos, isso é ser republicano. Além disso, a república também se opõe à monarquia e, portanto, à sociedade de castas; em outras palavras, na república o valor de uma pessoa é dado pelo mérito individual, em vez de ser pelas condições em que nasceu (pelo “berço”).

Mais importante do que isso, a dedicação ao bem comum significa a subordinação da política à moral, ou seja, a subordinação da política aos princípios e valores maiores da Humanidade, em que a família subordina-se à pátria e a pátria subordina-se à Humanidade. Somente assim a atividade política pode ser entendida como a dedicação ao bem comum e, a partir disso, ser fiscalizada e responsabilizada.

Disso se seguem várias conseqüências. A primeira delas é que o conjunto da sociedade deve sempre ser levado em consideração. A fraternidade universal é um valor básico: como todos devem orientar suas condutas para a melhoria de vida de todos, o respeito mútuo e a afirmação da dignidade fundamental de todos são pilares da vida coletiva. Daí se segue também que as relações sociais têm que ser pacíficas: qualquer forma de violência degrada as relações humanas e o ambiente social. O pacifismo e a fraternidade universal impõem, por seu turno, o repúdio ao racismo e às discriminações de “gênero”; da mesma forma, eles exigem o respeito ao meio ambiente e, claro, aos animais.

Uma segunda conseqüência é que, embora toda sociedade moderna seja composta por patrícios e proletários, a maior parte da sociedade é composta pelo proletariado (ou seja, pelos trabalhadores) e os esforços sociais têm que se orientar para a melhoria das suas condições de vida: é esse o objetivo que deve orientar a ação dos patrícios.

A regra republicana básica é o “viver às claras”: cada um deve adotar valores em sua vida que sejam publicamente defensáveis e de fato viver conforme esses valores. No caso dos governantes e das figuras públicas, o viver às claras também significa que todos os seus atos são responsabilizáveis, ou seja, são passíveis de acompanhamento, avaliação e cobrança públicas. A publicidade dos atos e das motivações é a regra, nunca a exceção. Como conseqüência do viver às claras, todos devem sempre falar a verdade e cumprir o prometido – ou, em outras palavras, não se deve mentir nem se deve trair.

A instituição republicana básica é a separação entre igreja e Estado: o aconselhamento não pode nem precisa da violência do Estado para fazer-se valer, nem o Estado pode condicionar os seus serviços à aceitação de crenças oficiais. Isso é o que se chama vulgarmente de “laicidade”; uma de suas conseqüências é que sacerdotes devem manter-se afastados do Estado a fim de garantirem sua dignidade, assim como o Estado deve recusar sacerdotes para não ser usado como instrumento de opressão. O afastamento dos sacerdotes em relação à política não quer dizer alienação nem indiferença; quer dizer que, como sacerdotes, não podem trabalhar para o Estado.

A separação entre igreja e Estado é a base das liberdades fundamentais: são as liberdades de crença, de manifestação e de associação, assim como o direito de ir e vir, o habeas corpus e o devido processo legal. Adicionalmente, os órgãos do Estado – especialmente os que são responsáveis diretos pelo atendimento à população – e os servidores públicos devem ser valorizados, mantendo-se sempre também a dignidade da chamada iniciativa privada.

Finalmente, as instituições sociais fundamentais devem ser valorizadas, a começar pela família. Entre a família e a sociedade política (as pátrias) as relações são de complementaridade, não de oposição; o papel da família é o de desenvolvimento afetivo e de educação moral, preparando os cidadãos para a vida na sociedade mais ampla; o papel da sociedade política é o de realizar os trabalhos práticos necessários para manter e desenvolver a vida de todos. Como é mais ampla, a sociedade política regula e protege a família. As pátrias, por sua vez, devem todas unir-se em prol da Humanidade. Assim como os proletários devem ser valorizados e respeitados, as mulheres devem ser valorizadas e ter sua dignidade mantida e afirmada.

Esses valores e essas práticas constituem muito do que é a república, embora não a esgotem. Tudo isso almeja a realização dos um dos supremos ideais dos brasileiros e de todos os seres humanos, que é a união da ordem com o progresso. Como dissemos em outro manifesto[1], quando a ordem e o progresso ficam separados, eles tornam-se antagônicos um em relação ao outro, de tal maneira que a ordem transforma-se em ordem retrógrada e opressiva e o progresso torna-se caótico e também opressivo. Apenas a união das duas perspectivas, em que ambas sejam simultaneamente respeitadas e valorizadas, torna possível que cada uma delas seja cumprida. A ordem consiste na consolidação do progresso, ao passo que o progresso é o desenvolvimento da ordem; o vínculo entre ambos é o amor, que, em termos políticos, deve ser entendido em termos de fraternidade, respeito mútuo e tolerância. O respeito à ordem não equivale à submissão cega ou servil ao poder político; da mesma forma, a verdadeira relação entre o poder e os cidadãos não é a de um soldado que se submete ao seu comandante.

3. Recomendações positivas: procurar candidatos com este perfil

Considerando os valores e os princípios indicados acima, recomendamos que se vote em candidatos a prefeito ou a vereador que apresentem estas características:

-         respeitem e façam valer a separação entre igreja e Estado (a chamada “laicidade do Estado”)

-         respeitem a dignidade humana e a fraternidade universal

-         respeitem a dignidade do espaço público e das instituições republicanas

-         respeitem a dignidade e valorizem as condições de vida da população brasileira, em particular dos trabalhadores e dos mais pobres, além dos povos indígenas

-         respeitem a dignidade e valorizem a família, independentemente da orientação sexual de cada família

-         respeitem e valorizem a dignidade das mulheres

-         tenham histórico de combate ao racismo e a outras discriminações

-         tenham histórico de defesa da dignidade e das condições de vida dos animais

-         tenham histórico de defesa do meio ambiente

4. Recomendações negativas: recusar candidatos com este perfil

Considerando os valores e os princípios indicados acima, recomendamos que não se vote em candidatos a prefeito ou a vereador que tenham um histórico pessoal e intelectual contrário ao republicanismo. De modo específico, rejeitamos candidaturas que apresentem estas características:

-         sejam membros de cleros, ou seja, sacerdotes, padres, pastores ou equivalentes

-         promovam o clericalismo nas funções públicas (o uso do Estado para promover cultos e/ou doutrinas)

-         desvalorizem os problemas sociais e/ou criminalizem a pobreza

-         promovam a cultura da violência, em particular estimulando a difusão e o uso de armas de fogo pela população civil

-         promovam valores e práticas exclusivistas e excludentes, incluindo aí as chamadas pautas identitárias

-         neguem os problemas ambientais (os “negacionistas climáticos”)

-         promovam a “cultura do cancelamento”

-         promovam a “cultura da baixaria”

-         tenham histórico de ligação com o crime, na forma de apoio ou participação em milícias; de apoio ou participação no crime organizado; de irresponsabilidade pessoal

-         promovam o racismo, a misoginia e preconceitos diversos

Curitiba, 28 de agosto de 2024.

 

5.       Leitura comentada do Catecismo positivista

5.1.    Continuação da duodécima conferência, sobre a evolução histórica do desenvolvimento humano, isto é, da religião, abordando em particular o fetichismo e o politeísmo

6.       Sermão: sobre a tecnocracia

6.1.    O tema do sermão de hoje com freqüência ressurge nos debates políticos e sociais

6.1.1. Além de ressurgir com certa freqüência, o tema da tecnocracia muitas vezes é associado ao Positivismo, o que exige de nós uma resposta, seja a favor, seja contra

6.1.2. Como veremos, não somente o Positivismo tem algo a dizer a respeito da tecnocracia como o que diz é contrário a ela

6.1.2.1.             Aliás, mesmo um filósofo francês de orientação católica – Jean Lacroix – reconheceu com facilidade que o Positivismo é totalmente contrário à tecnocracia (cf. Jean Lacroix, A sociologia de Augusto Comte, Curitiba, Vila do Príncipe, 2003, p. 101, 115)

6.2.    Antes de mais nada, temos que saber o que é a “tecnocracia”

6.2.1. Trata-se de um problema mais geral sobre as relações que se estabelecem entre a ciência, a tecnologia (ou a “técnica) e a política

6.2.2. Segundo a Wikipédia – cuja página em português sobre a tecnocracia é no mínimo problemática –, a autoria formal da palavra é de William Henry Smith, engenheiro estadunidense, em 1919

6.2.3. Podemos perceber pelo menos dois sentidos básicos para a tecnocracia:

6.2.3.1.             governo dos técnicos (ou dos “sábios”)

6.2.3.2.             governo baseado em decisões técnicas, em que essas decisões impedem, ignoram ou rejeitam a discussão pública

6.2.3.2.1.                   O que se supõe nessas duas possibilidades é que, de um lado, há os técnicos sábios que atuam no governo e que elaboram as políticas públicas que terão como objeto, ou como alvo, a “população”; de outro lado, há uma população que recebe, ou sofre, as políticas públicas e que é ignorante e incapaz de avaliar, opinar e agir

6.2.3.2.2.                   Os técnicos, além disso, são vistos como distantes e acima das disputas políticas; seu conhecimento seria puramente objetivo e “neutro”

6.2.3.2.3.                   Haveria, assim, uma separação clara entre Estado e sociedade e a ação do Estado seria (quase) sempre unilateral, de cima para baixo

6.2.3.2.4.                   Em outras palavras, a imagem que surge da ou com a tecnocracia é a de um governo técnico ativo, todo-poderoso e todo sábio e de uma sociedade passiva e ignorante

6.2.4. Mesmo sendo contrários à tecnocracia, é importante notar que todo governo deve, necessariamente, basear suas decisões em avaliações técnicas: se não for assim, as decisões – e, de maneira mais ampla, as políticas públicas – serão mero palpitismo, meras tentativas e erros (e muitos erros!)

6.2.4.1.             O que a república – ou melhor, a sociocracia – exige é que, por um lado, as avaliações técnicas sejam feitas e levadas a sério e, por outro lado, ao mesmo tempo (e, às vezes, até antes), que a população seja ouvida em suas demandas, que a população possa avaliar, opinar, modificar e até participar da formulação e da aplicação das políticas públicas

6.2.4.2.             A “população” que recebe as políticas públicas não é u’a massa informe, passiva e irracional; não por acaso, Augusto Comte falava em “sociedade civil”, ou seja, em uma sociedade organizada, ativa, necessariamente capaz de avaliar por si só as diversas questões – contando, para isso, é claro, com seus próprios “técnicos”

6.2.4.3.             Todo esse processo de avaliação e de participação na elaboração e na implementação das políticas públicas – que são intrínsecos à sociocracia! – integra o que se chama atualmente de “participacionismo”, “deliberacionismo” etc., constituindo o que se é conhecido por “democracia participativa”

6.2.5. É necessário notar que a crítica à tecnocracia com freqüência inclui um elogio da atividade política

6.2.5.1.             Entretanto, esse elogio pode abarcar muitos sentidos diferentes da política:

6.2.5.1.1.                   A política como espaço da participação cívica social

6.2.5.1.2.                   A política como espaço da disputa de poder

6.2.5.1.3.                   A política como espaço da retórica e da disputa intriguista e fofoqueira, de caráter parlamentar

6.2.5.2.             Cada um dos diferentes sentidos acima implica uma postura diferente em relação à tecnocracia, ou melhor, críticas diferentes à tecnocracia

6.2.5.2.1.                   Sem concordarmos com a tecnocracia, evidentemente o Positivismo avalia de maneira diferente cada um dos sentidos dados à política: valorizamos muito a participação cívica social, aceitamos mais ou menos como um fato a disputa do poder, mas rejeitamos o intriguismo parlamentar

6.3.    Como é que o Positivismo encara a tecnocracia, o suposto governo dos técnicos e quais os fundamentos da avaliação positivista disso?

6.3.1. O conceito básico aqui é a instituição fundamental da política positiva, a separação entre os dois poderes, em que de um lado há o poder Temporal, que trata da ordem material das sociedades, e de outro há o poder Espiritual, que trata da ordem intelectual e moral das sociedades

6.3.1.1.             O poder Temporal é prático, o poder Espiritual é teórico: cada um deles requer habilidades e qualidades específicas para satisfazer necessidades e atividades diferentes, resultando até mesmo em problemas diferentes

6.3.1.1.1.                   A confusão entre os dois poderes degrada cada um deles e impede o adequado desenvolvimento das respectivas atividades

6.3.1.1.2.                   Além disso, de maneira específica, a confusão dos dois poderes impede que o poder Espiritual fiscalize e avalie o poder Temporal, ao mesmo tempo em que torna praticamente impassíveis de avaliação e discussão as ordens do poder Temporal

6.3.1.2.             Exigência fundamental da separação entre os dois poderes é a existência de uma sociedade civil organizada, que se representa por si só e que orienta a ação do Estado

6.3.1.2.1.                   Em outras palavras, existe antes uma sociedade e depois, e a partir da sociedade, existe um Estado

6.3.1.2.2.                   É essa sociedade civil que informa o Estado, que estabelece os valores e as principais idéias, que propõe os problemas a serem enfrentados, que acompanha e avalia as políticas públicas

6.3.1.3.             O poder Espiritual é o responsável pela mobilização e pela expressão das idéias da sociedade civil

6.3.1.4.             Dessa forma, a separação dos dois poderes estabelece, pelo Positivismo, ao mesmo tempo um quadro institucional e uma realidade social em que a sociedade não é nunca passiva, embora sem dúvida seja diferentemente ativa em relação ao Estado

6.3.2. Como indicamos antes, o Estado tem que ter um corpo técnico altamente qualificado, a fim de avaliar os problemas sociais, elaborar, implementar e avaliar (a posteriori) as políticas públicas projetadas para tratar dos problemas sociais

6.3.2.1.             A presença de técnicos no Estado é uma exigência ao mesmo tempo política e moral

6.3.2.1.1.                   As sociedades modernas desenvolveram as ciências e, a partir delas, as várias tecnologias: não há porque o Estado não se utilizar desses conhecimentos e das técnicas resultantes; seria, como de fato é, totalmente imoral o Estado desprezar esse conhecimento técnico

6.3.3. Assim como a sociedade civil é ativa e possui seus próprios técnicos, é claro que, inversamente, os técnicos a serviço do Estado não são alheios aos valores e às idéias difundidas na sociedade civil (e, claro, nem são alheios às disputas havidas no seio da sociedade)

6.3.3.1.             Assim, a correta imagem que se deve ter, no que se refere à tecnocracia, ou melhor, contra ela, é a de um Estado e de uma sociedade que se relacionam de diversas formas e que mantêm uma porosidade mútua (ainda que, evidentemente, a instituição chamada Estado tome as decisões coletivas e implemente-as com caráter impositivo)

6.3.4. É importante lembrar que Augusto Comte criticava asperamente as pretensões políticas dos “sábios” e dos cientistas

6.3.4.1.             Não por acaso, um dos muitos motivos por que Augusto Comte criticava Platão era devido à pretensão desse grego de instituir os “filósofos-reis”, ou seja, em que os filósofos deveriam necessária e exclusivamente ser os reis

6.3.4.2.             Da mesmíssima forma, um dos vários motivos por que Augusto Comte criticava Saint-Simon – e que também resultaram no rompimento de relações entre eles – foi a pretensão platônica modernizada, não mais com os “filósofos-reis” mas com os “cientistas-reis”

6.3.4.3.             Essas diversas críticas de Augusto Comte – como se vê, todas elas baseadas em última análise no princípio da separação entre os dois poderes – foram por vezes sumariadas por nosso mestre na expressão “pedantocracia”, ou seja, o “governo dos pedantes”

6.3.4.3.1.                   A expressão “pedantocracia” foi criada por Stuart Mill

6.4.    Vale a pena perguntarmos: como é que se chegou a atribuir ao Positivismo um caráter tecnocrático?

6.4.1. Isso se deu basicamente por três caminhos diferentes, mas que com freqüência são complementares

6.4.1.1.             Por um lado, uma série de escorregões filosóficos a partir de interpretações superficiais e muito apressadas da obra de Augusto Comte

6.4.1.1.1.                   O raciocínio aí é dedutivo, ou seja, baseia-se em conceitos gerais e genéricos para, apenas com base neles (e, portanto, sem a leitura direta de Augusto Comte nem um conhecimento minimamente adequado de nosso mestre), deduzir o seguinte: Comte teria afirmado a importância social e política dos cientistas (afinal, ele teria sido cientificista); ele teria afirmado também que a ciência é “neutra” e que é indiscutível (um objetivismo acrítico); para Comte, a nova sociedade (científica) deveria ser governada pelos cientistas: logo, Comte teria proposto a tecnocracia!

6.4.1.2.             Por outro lado, o desejo de críticos do marxismo e do sovietismo de encontrar fundamentos filosóficos mais amplos às suas críticas

6.4.1.2.1.                   É fato que parte da justificativa do sovietismo residia em concepções tecnocráticas

6.4.1.2.2.                   Quem faz essa crítica são pensadores de viés liberal que com freqüência consideram que a ciência deve ser apenas descritiva e nunca prescritiva – ou seja, que a ciência não deveria nunca fazer previsões!

6.4.1.2.3.                   Esses pensadores, em vez de mirarem na falta de liberdade constitutiva do marxismo e do sovietismo, procuram criticar todas as concepções que valorizam a ciência e as suas previsões

6.4.1.3.             De maneira menos evidente, ou seja, menos honesta, há também o desejo de criticar-se a afirmação social e intelectual da ciência nas sociedades modernas

6.4.1.3.1.                   O sentido da crítica, aí, é o de “demonstrar” os efeitos negativos da ciência por meio da tecnocracia

6.4.1.3.2.                   Nesse caso, estão pensadores francamente teológicos (católicos, por exemplo) mas também aqueles metafísicos que são teológicos envergonhados (místicos, idealistas etc.)

6.4.2. No Brasil, essas três origens convergiram contra o Positivismo pela direita liberal, durante e após o regime militar

6.4.2.1.             Escandalosamente, os herdeiros morais e políticos de Roberto de Oliveira Campos – os mesmos herdeiros e colegas que apoiaram o regime de 1964 durante o regime e que o apoiam hoje com saudade – têm a ousadia de chamar-nos de “tecnocráticos”!

6.5.    Em suma:

6.5.1. A tecnocracia consiste na presunção da neutralidade política da ciência, da onisciência dos sábios e da passividade ignorante da sociedade civil

6.5.2. O Positivismo rejeita a tecnocracia, a partir da separação entre os dois poderes:

6.5.2.1.             A ciência não é “neutra”, a sociedade civil não é passiva nem ignorante e o Estado não é e não pode ser visto como onisciente

6.5.3. O Estado precisa, necessariamente, de um amplo corpo técnico altamente qualificado; mas isso é muito diferente dos pressupostos que permitem a tecnocracia, ou seja, do Estado onisciente e ativo que pura e simplesmente impõe decisões a uma sociedade amorfa, passiva e irracional

7.       Encerramento



[1] Abaixo-assinado A bandeira nacional republicana não é fascista, de 26 de outubro de 2022, disponível em: https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR127657