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02 abril 2024

Quem são os democratas e os republicanos... dos EUA?

No dia 9 de Arquimedes de 170 (2.4.2024) realizamos nossa prédica, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.

No sermão abordamos um tema um pouco diferente, mais a título de esclarecimento que de reflexão: quem são os republicanos e os democratas dos Estados Unidos?

Antes do sermão, fizemos duas exortações: sejamos altruístas! E façamos as orações positivas!

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/CvuES) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/NSvMW). O sermão começou aos 46 min 50 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se abaixo.

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Quem são os democratas e os republicanos... dos EUA? 

-        O tema da prédica desta semana é “quem são os democratas e os republicanos dos EUA?”

o   Naturalmente, surge aí a pergunta: por que esse tema, tão específico e tão fora do habitual das prédicas?

o   Os motivos são bem simples e bem claros:

§  Por um lado, as clivagens da política interna dos EUA têm sido cada vez mais importadas para o Brasil, afetando cada vez mais a nossa própria política: basta considerarmos o conservadorismo arquirreacionário evangélico e trumpista, à direita, e o agressivo particularismo e exclusivismo identitário, à esquerda

§  Por outro lado, os sentidos bastante específicos que assumem os termos “democrata” e “republicano” nos EUA (sentidos que têm sido importados para o Brasil) influenciam a maneira como os entendemos aqui no Brasil e, portanto, distorcem e dificultam a maneira como nós, positivistas, entendemo-los

-        Antes de passarmos ao tema deste sermão, convém revermos dois pares de conceitos: por um lado, (1) direita/esquerda e, por outro lado, (2) democracia/republicanismo para o Positivismo

-        Sobre direita e esquerda:

o   Os sentidos desses dois conceitos variaram (e variam) muito ao longo do tempo

o   Esses dois conceitos surgiram na Revolução Francesa, na fase da Assembléia Nacional (1789-1792), em que os favoráveis ao fim do feudalismo e dos privilégios sentavam-se à esquerda no alto da sala de reuniões e os defensores dos privilégios sentavam-se à direita embaixo (a sala do plenário da Assembléia era um anfiteatro)

§  Assim, inicialmente a noção política de “progresso” foi associada à noção espacial da esquerda; as noções de “conservadorismo” e/ou de defesa da “ordem (antiga)” foi associada à noção espacial da direita

§  Esse sentido mais ou menos atravessou o século XIX

§  Vale notar que o progressivismo foi associado, ao longo do século XIX, também ao republicanismo e/ou ao “socialismo”

o   Após a Revolução Russa (1917), e ainda mais com a Guerra Fria (1947-1991), a esquerda passou a ser vinculada ao marxismo e, de modo mais específico, ao comunismo/sovietismo; a partir disso e em contraposição complementar, a direita associou-se a diversas oposições: conservadorismo, “ordem”, liberdade, liberalismo, livre mercado, autoritarismos de direita e até Ocidente e ocidental

o   O fim da Guerra Fria tornou essa oposição confusa e um pouco esvaziada, em que todos os sentidos anteriores mais ou menos se mantêm e confundem-se mutuamente, ao sabor das disputas políticas locais e momentâneas

o   Em 1994 Norberto Bobbio propôs que a esquerda é a favor da igualdade e que a direita é a favor da liberdade

§  A proposta de Bobbio tornou-se famosa, mas apresenta defeitos históricos e empíricos evidentes

§  Em todo caso, a proposta de Bobbio apresenta direita e esquerda como propositoras de conceitos afirmativos e moralmente (mais ou menos) defensáveis

-        Sobre democracia e republicanismo no âmbito do Positivismo:

o   Como sabemos, no Positivismo a república é um dos conceitos políticos mais importantes; na verdade, o conceito fundamental é a sociocracia

§  Tanto a sociocracia quanto, por extensão, a república apresentam o duplo caráter de garantir a ordem social e estimular o progresso social, com as liberdades de consciência, expressão e associação, orientada pela opinião pública positiva, sob o primado da fraternidade universal e, portanto, da paz

o   A república, no Positivismo, tem um duplo caráter:

§  Um negativo, que constitui a ausência de monarquia – ou seja, tanto da instituição monárquica quanto, de maneira mais profunda, do seu fundamento filosófico, que é o absolutismo político de tipo teológico

§  Um positivo, que constitui o primado do bem comum pacífico como regulador de todas as relações sociais e de todas as instituições; em particular, essa república deve ter um caráter social e não meramente político

·         Novamente: as liberdades de consciência, de expressão e de associação, bem como as garantias individuais e o primado da opinião pública positiva, são fundamentos políticos da república

·         O caráter “social” da república significa que ela deve ser voltada para a satisfação das necessidades sociais, especificamente dos trabalhadores; o caráter “meramente político” conferir-lhe-ia um aspecto burguês, ou burguesocrático, servindo apenas para manter a dominação política e a exploração econômica da burguesia (associada ou não à nobreza) sobre o proletariado

o   A democracia, por outro lado, é um conceito metafísico, criado para contrapor a “soberania popular” à “soberania divina (dos reis)”; em outras palavras, é um conceito crítico, destrutivo, dissolvente, feito sob medida para negar o poder da monarquia e os seus fundamentos filosóficos

§  A soberania popular é absoluta: ela está sempre certa; por isso, ela rejeita discussão; ela impõe-se a todos e despreza preocupações individuais; como se isso não fosse pouco, há a imposição de uma religião civil (naturalmente, um cristianismo); a opção a tudo isso é a prisão e/ou o exílio

§  A soberania popular – teorizada por Rousseau – apresenta, portanto, todas as características da soberania divina dos reis; o que ela faz é transferir para um “povo” indefinido o que antes era atribuído com clareza aos reis

§  De maneira muito confusa há uma certa noção de “bem comum” ou de “interesse social” na soberania popular; entretanto, muito mais claro e mais forte são suas características evidentemente autoritárias (ou melhor, totalitárias)

§  O que atualmente se chama de “democracia” é uma combinação de limitação liberal do poder, afirmação das liberdades públicas e metafísica da soberania popular, a que se somam as eleições periódicas

·         Ou seja: a chamada democracia atual é um nome de qualquer maneira inadequado para regimes políticos incoerentes – em que, ainda assim, considera-se que as liberdades e alguma concepção de bem comum são importantes

-        Passando para democratas e republicanos nos EUA:

o   Considera-se que a independência dos EUA ocorreu em 4 de julho de 1776, em meio à Guerra de Independência (1775-1783)

o   Vale notar que entre 1781 (com redação em 1777) e 1788 os Estados Unidos constituíram-se na forma de uma confederação

§  Essa confederação era regulada pelos “Artigos da Confederação”

§  Embora os Estados Unidos fossem, então, um único país, ele era uma confederação, em que cada estado tinha amplos poderes; não havia um governo nacional, apenas um congresso nacional cujos poderes eram limitados (paz e guerra; moeda; pesos e medidas; comércio exterior)

§  O Presidente do Congresso exercia as funções de chefe do governo

o   Com a promulgação da constituição de 1787, que entrou em vigor em 1788, os Estados Unidos assumiram a atual estrutura política: três poderes (“branches”), Presidente da República com poderes nacionais efetivos, congresso bicameral (Senado para representação estadual, Câmara para representação popular), eleição do presidente em dois níveis (via colégio eleitoral)

§  Essa estrutura política dos EUA conjuga diversos mecanismos refletindo as preocupações do final do século XVIII: um federalismo muito intenso, um grande país (com intenções de ampliar-se cada vez mais), a doutrina metafísica da divisão dos três poderes

§  Essa estrutura foi elaborada tanto para limitar o poder efetivo (em particular do governo nacional) quanto para evitar as paixões populares

o   A partir daí surgiram dois grupos, ou partidos: de um lado, os republicanos de Jefferson e Madison; de outro lado, os federalistas, de Hamilton

§  Esses partidos tinham esse nome mas não eram partidos no sentido atual; eram mais ajuntamentos de políticos com perspectivas próximas

§  Os republicanos de Jefferson também eram chamados de antifederalistas ou antiadministração (ou antigoverno); apesar do seu nome e do nome do outro partido, eles eram a favor do federalismo, isto é, da autonomia dos estados e da limitação do poder do governo central; também temiam as propostas centralizadoras, por vezes mesmo monarquistas, de Hamilton, que consideravam como potencialmente despóticas, aristocratizantes e antirrepublicanas

·         Não é à toa que Jefferson foi o propositor das primeiras dez emendas à constituição dos EUA; essas emendas foram propostas imediatamente após a promulgação da constituição e são consideradas, em seu conjunto, como a “carta de direitos” dos EUA

·         Também vale notar que Jefferson foi um dos grandes promotores do republicanismo como filosofia política e também foi o principal defensor da separação entre igreja e Estado

§  Os federalistas de Hamilton, apesar de seu nome, eram centralizadores (e potencialmente antifederalistas) e defendiam maiores poderes para o governo central e poder de ingerência nos estados subnacionais

·         Hamilton realizou um importante trabalho de fortalecimento do dólar e de criação de condições para o desenvolvimento nacional dos EUA

o   Jefferson foi eleito e reeleito presidente, governando entre 1801 e 1809; a ele sucedeu Madison, que era partidário de Jefferson e que também governou durante dois mandatos (1809-1817); em seguida, também pelo partido republicano de Jefferson, foram eleitos James Monroe (dois mandatos: 1817-1825) e, por fim, John Quincy Adams (1825-1829)

§  Em outras palavras, o partido republicano de Jefferson governou durante cerca de 40 anos; a partir dos anos 1810, viu-se em uma situação de unipartidarismo, na medida em que o partido federalista de Madison dissolveu-se àquela época

§  Ao longo da década de 1820, o partido republicano de Jefferson acabou perdendo sua identidade, perdendo seus valores e tornando-se na prática um partido catch-all, que visava apenas à busca do poder; com isso, acabou desfazendo-se

o   Em 1828 constituiu-se o partido democrata, sob Andrew Jackson, para que ele disputasse a presidência da república; ele foi de fato eleito e governou de 1829 a 1837

§  A plataforma de Andrew Jackson podia ser considerada “populista”: apelava para o homem comum (de modo geral agricultor), era contra o Estado forte e contra as elites (que ele via como corruptas e autocentradas); também defendia o protecionismo econômico nos EUA – e, isto é central, era contra a abolição da escravidão (e a favor da remoção forçada dos índios)

§  O partido democrata de Jackson, em termos de continuidade institucional, é o mesmo que existe atualmente

§  Ele manteve-se no poder entre 1829 e 1861

o   Em 1854 foi fundado o atual partido republicano, a partir da reunião de antigos adversários dos democratas com democratas contrários à escravidão; ele defendia então o republicanismo, o fim da expansão territorial da escravidão e o fim da escravidão em termos gerais

§  O primeiro presidente republicano foi Lincoln (1861-1865); dessa época até 1932 quase todos os presidentes dos EUA foram republicanos (as exceções foram Grover Cleveland e Woodrow Wilson)

o   O partido republicano, no século XIX, tinha sua base no norte e no oeste dos Estados Unidos; de modo geral eram contrários à escravidão (a postura de Lincoln a respeito acabou levando à guerra civil); em oposição, o partido democrata tinha sua base no sul dos Estados Unidos e eram favoráveis à escravidão e, depois da guerra civil, contrários à integração racial

-        Em 1929 iniciou-se a grande crise econômica e social; os republicanos então no poder (Hoover) adotaram uma política econômica conservadora, que aprofundou a crise; contra essa política lançou-se o democrata Franklin Roosevelt, que adotou uma plataforma de centro-esquerda, marcada pelo forte intervencionismo econômico

o   Governando durante quatro mandatos (1933-1945), Roosevelt lançou o New Deal (“Novo Acordo”, ou “Nova Negociação”), que seria um esforço de Estado de bem-estar social nos EUA

o   Em 1942 Roosevelt levou os EUA a participarem da II Guerra Mundial e a promover um novo internacionalismo (via ONU); após 1945, já sob Truman, os EUA surgiram como os grandes vencedores da guerra, com a bomba atômica, líderes do Ocidente e em disputa com a União Soviética

o   Tanto o New Deal quanto a guerra alteraram profundamente a política dos EUA, estabelecendo um padrão que foi seguido nas próximas décadas tanto por democratas quanto pelos republicanos: atuação do Estado na economia e preocupações sociais, internacionalismo, ativismo político-militar no exterior

§  Esse padrão foi seguido por democratas e republicanos; os democratas eram mais sociais e mais inclusivos internamente, mas mais agressivos externamente; os republicanos eram menos sociais e inclusivos internamente, mas mais negociadores externamente

o   O padrão surgido entre 1932 e 1945 foi modificado em 1981, quando o republicano Ronald Reagan adotou um novo discurso político-social, desprezando o sentido social do New Deal e defendendo a correção moral do individualismo e do egoísmo, no neoliberalismo; na política externa, ele adotou ações externas bastantes agressivas contra o bloco soviético

§  O novo padrão individualista e neoliberal de Reagan é o que vige atualmente

o   O democrata Bill Clinton manteve um internacionalismo mais ou menos pacifista e integrador; já em termos econômicos ele promoveu a desregulamentação da economia, em particular do mercado financeiro, estimulando a especulação e os ataques às economias nacionais

§  Na década de 1990 vários elementos juntaram-se: esvaziamento dos movimentos sociais classistas (devido ao fim da Guerra Fria); fim do movimento dos direitos civis dos anos 1960 (devido à vitória desse movimento); aprofundamento do caráter individualista próprio aos EUA e reforçado pelo neoliberalismo de Reagan; moda irracionalista pós-moderna: tudo isso se juntou na esquerda dos EUA, que passou a professar com intensidade o particularismo exclusivista e excludente do identitarismo

o   O republicano George W. Bush promoveu um internacionalismo agressivo e unilateral, a que deu fortes elementos nacionalistas e teológicos

§  Os traços do nacionalismo e da teologia política eram profundamente estranhos à tradição dos EUA desde a década de 1930

§  Esses dois traços deitaram raízes e encontraram eco nas décadas seguintes

o   Ao longo das décadas de 2000 e 2010 alguns outros elementos surgiram ou ressurgiram: o tradicionalismo reacionário anti-intelectual, antiprogressista e, cabe notar, (paradoxalmente) antiocidental; o desenvolvimento das redes sociais, devido à expansão da internet, e o estímulo da cultura do ódio que é próprio ao modelo de negócios do Vale do Silício; a percepção dos limites e dos problemas da globalização e do neoliberalismo, gerando deslocamento de empregos, o empobrecimento de cidades, estados e países e a crise de 2008; a retomada do caráter imperial da Rússia e seu antiocidentalismo militante

§  Tudo isso convergiu para clivagens da sociedade estadunidense; essas clivagens têm-se aprofundado cada vez mais, sem sinal de que possam reverter-se no curto e no médio prazo

§  Tudo isso também convergiu para a vitória de um político agressivamente “populista”, nacionalista, isolacionista, excludente, xenófobo, reacionário, estimulador da teologia política – o republicano outsider Donald Trump

§  Trump afirma-se com clareza e orgulho que é “conservador” e de “direita”

·         Trump é tão agressivo e tão extremos em suas posturas que até mesmo George W. Bush considera-o radical

o   Apesar de Trump, os democratas não deixaram de lado o identitarismo e mesmo uma postura agressiva internacionalmente (como no caso de Hillary Clinton); mas, antes, com Barack Obama, e depois, com Joe Biden, assumiram uma postura de apoio aos trabalhadores dos EUA e de internacionalismo – embora sem o apelo direto junto às massas que Trump apresenta

-        Em suma:

o   Falar de democratas e republicanos dos EUA é importante porque essa é uma clivagem cada vez mais profunda nesse país e que temos cada vez mais importado para o Brasil

o   A dicotomia direita-esquerda mudou de sentido ao longo do tempo; não há um sentido único para ela; apesar disso, forçando um pouco os raciocínios filosóficos e históricos, pode-se dizer que a esquerda tem maiores preocupações sociais e com o progresso, enquanto a direita preocupa-se mais com a ordem

o   Os sentido dos democratas e dos republicanos dos EUA mudou ao longo do tempo, em que as posições direita-esquerda variaram (ou nem seriam aplicáveis)

§  A vinculação do partido democrata com a esquerda começou nos anos 1930, com Franklin Roosevelt

§  A vinculação explícita do partido republicano com a direita começou, ou foi muito reforçada, nos anos 1980, com Ronald Reagan

§  Trump em particular tem conseguido forçar cada vez mais o partido republicano e a direita dos EUA no sentido do exclusivismo, do particularismo, da teologia cristã, do isolacionismo, de um populismo “branco”

26 março 2024

Que é a "ditadura republicana"?

No dia 2 de Arquimedes de 170 (26.3.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua décima conferência (dedicada ao regime privado).

No sermão abordamos a proposta de "ditadura republicana".

Antes do sermão, comentamos o livro O homem e sua ficha, do positivista cearense Jesus Pereira Soares (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988), que é um belo e interessante relato e profissão de fé do autor como servidor público inspirado e orientado pelo Positivismo e como integrante da assessoria econômica da Presidência da República nos anos 1940 e 1950.


Fonte: https://bonifacio.net.br/interpretes-do-brasil-assessoria-economica-do-segundo-governo-vargas/

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/4fjrm) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/wkWus). O sermão começou em 58 min 40 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

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O que é a ditadura republicana? 

-        Como sabemos, quando se fala popularmente no Positivismo, pensa-se de modo geral em alguns chavões, com freqüência mal explicados ou simplesmente errados: a lei dos três estados, o “Ordem e Progresso”, alguns militares positivistas – e, no que depende dos liberais, também a “ditadura republicana”

o   A associação contemporânea da palavra “ditadura” com autoritarismos, com violência, com truculência (e, não por acaso, com os militares e com a violência policial), torna o conceito de “ditadura republicana” algo bastante delicado de ser tratado

o   De qualquer maneira, há algumas semanas um interessado no Positivismo pediu que tratássemos desse tema: assim, aqui estamos[1]

-        Para limparmos o terreno, antes de começarmos a tratar do que é a ditadura republicana, é importante sabermos o que ela não é[2]

o   A ditadura republicana não é um autoritarismo

§  Pode não parecer muito evidente, mas Augusto Comte não usava a palavra “autoritarismo”, que é de uso bastante contemporâneo (posterior à II Guerra Mundial)

§  Para nós, “autoritarismo” é um regime político moderno, mantido pela força, isto é, pela violência militar, policial e civil-burocrática

·         O autoritarismo, nesse sentido, equivale à “ditadura”, e é oposto à “democracia”

·         A “democracia”, por sua vez, consiste em um regime de liberdades, em que o governo obedece à “vontade popular”; em que o governo é eleito periodicamente e em que a atuação do Estado é limitada tanto por uma carta constitucional quanto pela “separação dos poderes”

§  Seguindo a tradição filosófico-política vigente no século XIX, os regimes políticos autoritários, ou melhor, os regimes políticos negativos para Augusto Comte eram a tirania, o despotismo, o absolutismo político e a opressão

·         As características desses regimes políticos negativos eram o emprego político da violência, a ausência de liberdades, a imposição de crenças e também um caráter retrógrado geral – e a união dos dois poderes (Temporal e Espiritual)

§  Augusto Comte, na Política positiva (1851-1854), emprega habitualmente a expressão “ditadura” em um sentido neutro, ou seja, como sinônima de “governo” ou de “regime político”

·         Assim, há ditaduras progressistas, ditaduras liberais (no sentido de que apóiam as liberdades), ditaduras pacíficas; inversamente, há ditaduras retrógradas, ditaduras violentas, ditaduras militares etc.

·         Entre o rol de ditaduras, há a “ditadura republicana”

·         A palavra ditadura é empregada por Augusto Comte no sentido de “ditar”, isto é, de indicar as regras e as leis – ou seja, no sentido de “governar”

-        A expressão “ditadura” tem origem romana; ela consistia em uma magistratura excepcional[3]

o   (As magistraturas eram os cargos públicos de Roma)

o   Na República romana, em situações de grande perigo público – como no caso de guerras em que estivessem à beira da derrota, ou em caso de invasões do seu território, ou mesmo no caso de graves distúrbios civis –, escolhia-se um “ditador”

o   O ditador tinha um mandato fixo (seis meses, prorrogáveis por mais seis) e seus poderes eram os mais amplos possíveis (vida e morte, decisões com aplicação imediata, justiça irrecorrível), mas não eram ilimitados: ele não podia mudar as instituições fundamentais da República

-        Até o final do século XIX, a palavra ditadura tinha um sentido neutro ou mesmo positivo[4]; foi com o comunismo que isso mudou, seja com a proposta de “ditadura do proletariado” (cujo sentido de “autoritarismo do proletariado” nunca foi fingido por Marx), seja com a Revolução Russa em 1917

o   A ditadura nazista (1933-1945) foi a pá de cal final sobre os sentidos neutros ou positivos para a palavra “ditadura”

o   Após a II Guerra Mundial, os estadunidenses popularizaram a “ditadura” como conceito antinômico em relação à “democracia”, fosse para defender a sua democracia no âmbito da Guerra Fria, fosse para caracterizar as ditaduras opostas (nazista e/ou soviética)

-        Agora que vimos o que a ditadura republicana não é, podemos com tranqüilidade passar para o que ele é

-        Ainda com o objetivo de limparmos o terreno, convém apresentarmos alguns aspectos gerais da ditadura republicana, antes de abordarmos seus elementos específicos[5]

o   É um regime de liberdades: liberdades civis (ir e vir, devido processo legal, habeas corpus) e, ainda mais, de plenas liberdades de consciência, de expressão e de associação

o   Considerando a separação dos dois poderes, é um regime de governo limitado

o   É o regime político próprio à sociocracia, isto é, à organização social positiva, baseada na prevalência da opinião pública

o   Ainda vinculados à sociocracia estão os elementos do pacifismo (e da rejeição da violência), do fim do militarismo, da confiança mútua (entre o governo e os cidadãos; entre os cidadãos entre si), da responsabilidade social e política, dos estados de pequena extensão, da afirmação das mátrias, da afirmação da Humanidade sobre as pátrias/mátrias

-        Para entendermos a ditadura republicana, temos que ter clareza e lembrar que, assim como não se pode ter o espírito absoluto na filosofia, não se pode ter o espírito absoluto na política

o   Assim, não faz sentido a pesquisa puramente abstrata e de caráter teológico-metafísico sobre “o melhor tipo de governo”: cada sociedade tem seu tipo adequado de governo

o   Durante a Idade Média e, de modo geral, durante os períodos teológicos, o governo foi absoluto, no sentido de que suas ordens eram indiscutíveis; além disso, o governante era visto como o representante da divindade na Terra

o   Em uma sociedade positiva e relativa, as decisões do governo têm que ser passíveis de exame e de crítica pública; o governo é o agente do interesse público; a importância da confiança pública e da responsabilidade social é plenamente reconhecida e valorizada

o   No meio do caminho entre a teologia e a positividade há a metafísica – e a teoria política metafísica atualmente é liberal e democrática

§  Lembremos: a metafísica é destruidora, dissolvente, “crítica”; em termos políticos, uma outra característica da metafísica é considerar como permanente instituições puramente transitórias (em particular aquelas destinadas a destruir as instituições anteriores)

§  O aspecto mais claramente metafísico no liberalismo é a desconfiança radical em relação ao poder: essa desconfiança vincula-se à decadência dos poderes antigos, que, após a Idade Média, passaram a tornar-se desregulados e opressivos

·         A idéia, e até o sentimento, de que o poder sempre será ruim está na base dos raciocínios dos liberais (políticos e/ou econômicos) e apóia o individualismo liberal

§  No que se refere à metafísica democrática, ela apresenta-se com clareza ao considerarmos a concepção da “soberania popular”

·         Entendida de maneira positiva (ou melhor, positivada), ela pode ser entendida como o governo da opinião pública

·         Nos textos de Rousseau, a soberania popular é a consideração de que o “povo” sempre sabe tudo, sempre sabe o que quer, nunca erra e exige que todos creiam em uma religião civil

o   A ditadura republicana surge como uma instituição intermediária e temporária entre a fase atual, da metafísica democrático-liberal, e a fase sociocrática plenamente positiva

-        Agora que limpamos o terreno, demos algumas indicações elementares sobre a política positiva e indicamos o aspecto de transição da ditadura republicana, torna-se mais simples, rápido e fácil apresentar seus elementos específicos[6]:

o   A ditadura republicana é um regime político republicano, em que o bem comum (“res publica”) é o parâmetro fundamental, afirmado pela opinião pública, e em que as liberdades devem ser, sempre, garantidas

o   Em particular, a separação entre os dois poderes (Temporal e Espiritual) deve ser cuidadosamente mantida: como o objetivo da ditadura republicana é realizar a transição, a sua atuação deve ser no sentido de garantir as condições sociais e políticas próprias à transição

o   Em que consiste a transição? A transição consiste no restabelecimento da ordem espiritual, ou seja, (1) no restabelecimento de um poder espiritual legítimo, verdadeiro e adaptado à sociedade e, portanto, (2) no estabelecimento de um poder espiritual positivo

o   O papel da ditadura republicana, então, é o de manter a ordem temporal em meio à anarquia espiritual, enquanto o poder espiritual positivo estabelece-se: evidentemente, a condição fundamental e necessária para isso é a liberdade espiritual (liberdades de consciência, de expressão e de associação)

o   Considerando por um lado o papel específico da ditadura republicana como regime de transição e por outro lado a necessidade permanente da separação entre os dois poderes nas sociedades modernas, o resultado é que a ditadura republicana deve assumir a característica da “laicidade do Estado”, conforme é habitualmente entendida

o   Augusto Comte determina três fases progressivas na transição:

§  (1) nem o conjunto da sociedade nem o governante é positivista, mas é possível e necessário adotar uma série de medidas: garantia clara e plena das liberdades de consciência, expressão e associação; fim do anonimato; fim dos orçamentos teóricos (igrejas, universidades); extinção da legislação de propriedade intelectual; sistema público de comemorações históricas

§  (2) a sociedade não é positivista, mas o governante é e por isso o governo assume um caráter progressista, ao adotar as seguintes medidas: supressão das Forças Armadas, transformação de Paris em metrópole ocidental, junção das máximas “Ordem e Progresso” e “Viver para outrem”

§  (3) tanto o governante quanto a sociedade são positivistas

o   Quando ocorrer a terceira fase da transição, será possível instalar o regime político normal, em que o poder do Estado será organizado em um triunvirato, ou seja, dividido entre três governantes, cada um deles oriundo de um ramo do patriciado bancário e responsável por uma área específica

§  Interior (proveniente da agricultura)

§  Finanças (proveniente da indústria)

§  Exterior (proveniente do comércio)

§  Os eventuais conflitos graves entre os triúnviros são mediados pelo poder Espiritual

-        Em termos institucionais, a ditadura republicana caracteriza-se pelo seguinte:

o   Governo unipessoal: ou seja, república presidencialista

o   Parlamento apenas orçamentário e reunido apenas durante suas atividades orçamentárias

§  O parlamentarismo apresenta uma série enorme de defeitos e problemas morais e políticos: dispersa (e/ou nega) a responsabilidade; divide e inutiliza o poder; finge que é um órgão espiritual; estimula a mesquinhez, a corrupção e as intrigas (apoiando e sendo apoiado pelo jornalismo político)

o   A “soberania” é da sociedade (logo, não é nem divina nem do “povo”): a sociedade manifesta-se sozinha e com autonomia, por si só, seja por meio do poder Espiritual, seja por meio de seus órgãos variados (clubes cívicos, associações, sindicatos etc.)

o   As leis são propostas pelo governo e submetidas à avaliação pública durante períodos variáveis durante alguns meses; a sociedade manifesta-se e, com base nas manifestações sociais e após elas, o governo decreta finalmente as leis

o   Os mandatos são vitalícios, até a idade da aposentadoria (Augusto Comte indica a idade de 63 anos); o governante indica o seu sucessor, que é sujeito à avaliação (e, portanto, à aceitação) pública

§  Esse é o instituto da “hereditariedade sociocrática”

o   Augusto Comte aceita a instituição do voto – voto universal, aliás –, apesar do seu caráter profundamente crítico e dissolvente, com três modificações fundamentais, introduzidas a fim de garantir-se a responsabilidade nas decisões:

§  Voto apenas a partir dos 28 anos

§  Voto público (isto é, a descoberto)

§  Voto transferível (ou seja, a possibilidade de um eleitor atribuir a própria capacidade de votar a outro cidadão – que, por sua vez, passa a poder contar com dois votos – e assim sucessivamente)

o   Como deve ter ficado evidente, todas as instituições propostas acima para a transição (e, aí, para a ditadura republicana) ficam na dependência de o poder Espiritual fazer valer a preponderância do altruísmo sobre o egoísmo



[1] A presente exposição baseia-se longamente no livro de nossa autoria, ou seja, de Gustavo Biscaia de Lacerda, O momento comtiano: república e política no pensamento de Augusto Comte (Curitiba: UFPR, 2019). Nesse livro eu cito longa e textualmente Augusto Comte e discuto em detalhes cada um dos aspectos considerados, incluindo os temas contemporâneos que geram confusão (como, por exemplo, a equivalência contemporânea entre “ditadura” e “autoritarismo”).

[2] Cf. Lacerda, seção 5.1.

[3] Cf. Lacerda, seção 5.1.

[4] Cf. Lacerda, seção 5.1.

[5] Cf. Lacerda, cap. 3, cap. 5 (em particular seções 5.2-5.3) e cap. 6.

[6] Cf. Lacerda, seção 5.3.