No dia 4 de Bichat de 2022 (6.12.2022), após nossa prédica positiva (dedicada à leitura comentada da continuação da teoria do culto privado - quarta conferência do Catecismo Positivista), na parte das reflexões semanais, fizemos algumas reflexões sobre o "sobrenatural" (e, feitas as devidas adaptações, também às teorias da conspiração).
As anotações que elaborei e nas quais me baseei para a exposição reproduzidas abaixo.
É possível assistir ao vídeo dessas reflexões no canal Positivismo (aqui: l1nq.com/Predica) e no canal Apostolado Positivista (aqui: l1nq.com/Sobrenatural). No canal Apostolado Positivista, essas reflexões podem ser vistas a partir de 49' 10''.
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Comentários sobre o sobrenatural
- A noção de sobrenatural é um problema ao mesmo tempo intelectual e afetivo
o A parte intelectual exige maiores comentários que a afetiva
o As partes intelectual e afetiva encontram soluções na Religião da Humanidade
§ O que se chama atualmente de “sobrenatural” é o resquício de teologia e metafísica em uma sociedade que se torna, felizmente, cada vez mais positiva e relativista
o É possível incluir na forma de pensar própria ao “sobrenatural” também as chamadas “teorias da conspiração”
§ As teorias da conspiração, evidentemente, têm um caráter formalmente menos teológico que o “sobrenatural”; mas, ainda assim, mantêm e até acentuam, de maneira radical, a busca do absoluto, a rejeição do relativismo e as mais complicadas hipóteses e interpretações da realidade[1]
- A noção de “sobrenatural” é contraditória: se algo existe, evidentemente é “natural”
o Da mesma forma, a expressão “ciências ocultas”, que se aproxima da de “sobrenatural”, também não faz o menor sentido
o A expressão “ciência oculta” não faz sentido em termos de objeto e de sujeito:
§ No que se refere ao objeto: se é ciência, o seu objetivo é desvelar, é revelar, ou seja, é acabar com o caráter “oculto” do objeto
§ No que se refere ao sujeito: a ciência é pública e, portanto, ela repele em princípio qualquer caráter exotérico ou esotérico
- A noção de sobrenatural vincula-se ao âmbito do imaginário: é um desejo de que existam coisas que não se verifica empiricamente
- Durante a teologia e até durante a metafísica, o sobrenatural é aceitável:
o Seja porque, por definição, o sobrenatural corresponde à explicação disponível na teologia e, assim, o sobrenatural como que integre o mundo durante essas fases da Humanidade
o Seja porque o ser humano não tem base empírica suficiente para avaliar o mundo, isto é, para avaliar o que existe ou não no mundo
o Seja porque não se tem o conhecimento das leis naturais e, daí, explica-se o mundo por meio de vontades arbitrárias invisíveis
§ Nesse sentido, a invisibilidade das vontades aproxima o “sobrenatural” do “metafísico”
- A manutenção atual da crença no “sobrenatural” vincula-se a diversos fatores:
o Persistência da crença na teologia (de maneira implícita ou explícita)
o Sensação de que o que existe efetivamente é “pouco” (ou, inversamente, sensação de que é limitador considerar que somente a “nossa” realidade existe de fato)
- Os motivos que justificariam a crença atual no “sobrenatural”, portanto, são puramente subjetivos e rejeitam a realidade e a objetividade
o Cada vez mais, eles referem-se à pura crença na existência do “sobrenatural”
o É importante insistir: se algo existe de verdade, é natural e não há necessidade de nenhuma “crença” para que essa existência seja provada empiricamente
§ A ciência por si só é cética a respeito das afirmações quaisquer (em última análise é a navalha de Ockham) e, no que se refere ao “sobrenatural”, tal ceticismo chega no máximo ao agnosticismo
§ O ônus da prova cabe sempre a quem afirma algo, não a quem descrê da afirmação
o Essa pura crença no sobrenatural é muito próxima da estrutura mental da do protestantismo e, em particular, da do protestantismo dos EUA
- Mas a crença no sobrenatural não se justifica atualmente:
o O ser humano já conhece muito do mundo para saber o que existe e o que não existe
§ É importante reiterar: o ônus da prova cabe a quem afirma!
§ É importante reiterar: a mera crença subjetiva, o mero “crer”, não é prova de nada (ou melhor: nada além de que o ser humano é capaz de manter crenças subjetivas)!
o A realidade é maior e mais ampla do que qualquer pessoa consegue imaginar:
§ Não se trata, com essa afirmação, de propor que o “sobrenatural” existe, mas, bem ao contrário, trata-se de considerar que a exploração do que existe de verdade é sempre surpreendente
§ O conhecimento da realidade satisfaz muito a nossa imaginação:
· Seja porque conhecer novas coisas com freqüência é surpreendente
· Seja porque para explicar as coisas temos que usar muito a imaginação
· Como sugere Christopher Hitchens (deus não é grande), muitas das explicações científicas propostas são tão ou mais surpreendentes que muitas daquelas propostas pela teologia e pela metafísica
o As explicações científicas, ou melhor, as leis naturais rejeitam as vontades arbitrárias invisíveis
§ Vale lembrar que o sobrenatural é a persistência da crença em vontades arbitrárias invisíveis
§ Vale também lembrar que essas vontades arbitrárias são apenas a postulação-transposição de que uma realidade puramente subjetiva existe objetivamente
- Os comentários até aqui foram basicamente de caráter intelectual; mas importa notar que, em termos morais, a crença no sobrenatural combina um quê de arrogância com um quê de insatisfação com os limites da realidade
o Assim, em qualquer caso, a crença atual no sobrenatural é uma forma de imaturidade
- Ainda assim, há um aspecto que convém também reconhecer: como o próprio Augusto Comte afirmava, a ciência por si só resseca o coração; as tendências materialistas da ciência tendem a tornar o mundo um ambiente radicalmente seco e “desértico”
o Isso é o que a metafísica idealista alemã chamava de “desencantamento do mundo”
- A Religião da Humanidade resolve – na verdade, evita – o problema do “desencantamento do mundo”:
o Augusto Comte, após resolver diretamente o principal problema humano (obtenção da harmonia via disciplinamento altruísta do egoísmo), aprofundou suas reflexões e percebeu que o primado da afetividade na existência humana é um princípio realmente geral e que deve ser aplicado de maneira sistemática
o Em outras palavras, a Religião da Humanidade estabelece que o mundo todo deve ser objeto (e sujeito!) da afetividade
o O meio para a “afetivização” geral da realidade é a incorporação do fetichismo inicial ao positivismo final, na forma do “neofetichismo”
o De modo mais específico, a Trindade Positiva estabelece subjetivamente que tudo no mundo é dotado de afetividade, com variados graus de atividade e de inteligência
§ Trindade Positiva: Grão Ser (Humanidade: inteligente, ativa e afetiva), Grão Fetiche (Terra: ativa e afetiva), Grão Meio (Espaço: só afetivo)
[1] A extensão destas reflexões sobre o sobrenatural às teorias da conspiração (feitas as devidas adaptações) tornou-se evidente (para mim, pelo menos) à medida que lia descrições de algumas dessas teorias, em particular vinculadas ao nazismo (cf. Conspirações sobre Hitler, de Richard Evans (Crítica, São Paulo, 2022)).
Por outro lado, em conversa pessoal, após a exposição destas anotações no dia 6.12.2022, nosso amigo Hernani Gomes da Costa sugeriu que as teorias da conspiração correspondem à metafísica própria à fase militar defensiva da Humanidade; além disso, ele notou que essas teorias atribuem aos “grupos secretos” um poder e uma eficácia social muito maior que aquela atribuída, na Idade Média, ao diabo – embora a função social supostamente desempenhada pelos grupos secretos seja idêntica à atribuída ao diabo.