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13 setembro 2012

Sobre a "higiene cerebral"

Em meados do século XIX Augusto Comte falava que era então necessária uma “higiene cerebral”. Ele percebia a grande multiplicação de livros, artigos, jornais, textos que ocorria naquela época; entretanto, essa multiplicação era freqüentemente apenas quantitativa, ou seja, somente era mais coisa publicada, sem haver um aumento concomitante de qualidade. Pior, muitas vezes o aumento na quantidade era acompanhado pela diminuição do nível desses textos. Face a tal realidade – e tendo plena consciência de que “falar mais” não equivale a “pensar melhor” (e, antes, a “amar mais” e/ou “agir melhor”) –, Comte recomendava que se limitasse severamente as leituras, escolhendo com muito cuidado o que ler e o que não ler. Com essa recomendação ele visava a um controle do tempo e, acima de tudo, um cuidado com a cultura intelectual e moral. É óbvio, todavia, que os comentadores de plantão criticaram com rapidez e superficialidade essa proposta, afirmando que se tratava de uma forma de alienação face ao mundo.

Entrementes, hoje em dia a realidade de enorme aumento de textos, artigos, livros não mudou; ou melhor, bem ao contrário, mudou, mas para pior: o desenvolvimento dos meios de comunicação, em particular com a TV e a internete, estimulam a produção e a disseminação de algo que não pode ser chamado senão de
 lixo intelectual[1]. O mercado editorial de maneira mais ampla também não colabora: livros de auto-ajuda, de misticismo e/ou de pura irracionalidade estão sempre nas listas dos “mais vendidos”[2].

A “academia”, ou seja, as universidades, os institutos de pesquisa e os governos, também dá sua poderosa contribuição à multiplicação de textos pela mera multiplicação. Trata-se do “produtivismo”, estimulado por uma competição internacional pela pura quantidade de textos e livros publicados, de acordo com o qual aquele que publica mais é “melhor” (em quê, afinal?).
 Como diria Comte, acumulam-se “verdades” da mesma forma que se acumulam riquezas no industrialismo selvagem (“capitalismo selvagem”, como gostam de dizer os marxistas): mas são verdades meramente acumuladas, no sentido de serem entulhadas, empilhadas, sem verdadeiro uso.

Esse produtivismo acadêmico, altamente dispersivo, ultra-especializante,
 incentiva também textos irracionais e/ou superficiais. Se pensarmos, por exemplo, no pós-modernismo, não é difícil perceber que sua tese da ausência de objetividade da realidade foi também estimulada pela necessidade de escrever por escrever, sem maiores compromissos com uma compreensão ao mesmo tempo real, útil e relativa para o ser humano. Um outro exemplo: as perspectivas irracionalistas e autoritárias de Nietzsche, Heidegger, Gadamer, Carl Schmitt, são celebradas como “desafiadoras”, em vez de serem percebidas como irracionalistas, autoritárias e absolutas (metafísicas ou teológicas); tais perspectivas são valorizadas porque “desafiam os valores fundamentais da sociedade ocidental”, ou seja, porque são contrárias à racionalidade, ao pacifismo, ao altruísmo. É claro que esse tipo de afirmação “desafiadora”, cultora da “violência viril”, encontra um amplo e obsequioso público, ou seja, vende bem entre o público acadêmico. Em outras palavras: o produtivismo acadêmico estimula o que há de pior no ser humano; estimula tudo aquilo que não é “positivo” (de acordo com a definição comtiana da palavra “positivo”).

Dessa forma, ficamos incapazes de apreender tudo o que se produz, ao mesmo tempo em que,
 ativamente, somos obrigados a continuar produzindo e, passivamente, somos cada vez mais expostos a todo tipo de “mensagem” (sob o duvidoso argumento de que temos que “ficar em dia”, “sabermos dos fatos”, “mantermo-nos informados”, “conhecer o ‘estado da arte’”). Cada vez mais gente fala (sobre qualquer coisa), mas cada vez menos gente ouve e, acima de tudo, cada vez menos gente pensa e reflete sobre o que ouve.

Assim, se em meados do século XIX a “higiene cerebral” era necessária (mas ironizada ou desprezada), ela é ainda mais necessária no início do século XXI. Felizmente há (algumas) pessoas que a
 reconhecem como sendo importante, hoje.


[1] O livro de Andrew Keen, O culto do amador (J. Zahar, 2009), é muito didático a respeito. Por outro lado, uma visão parecida, mas altamente aristocrática, irracionalista e preconceituosa, é a da Escola de Frankfurt, que tratou longamente da “indústria cultural”.

[2] Aliás, como se um livro ser o “mais vendido” indicasse alguma coisa além do fato evidente de que vende bastante. Isso transforma o livro em uma  commodity e deixa de lado o mais importa: algo ser lido por muita gente não significa que essa muita gente está lendo algo que preste, ou seja, que esclareça sobre a realidade, que a torne mais altruísta, mais convergente, mais propensa a lidar com realismo os problemas concretos.