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OPINIÃO DO DIA 2
Produtividade parlamentar e legitimidade política
Gustavo Biscaia de Lacerda
Publicado em 28/10/2011
É no controle dos atos do governo que os parlamentos assumem sua grande relevância. A fiscalização do dia a dia governativo garante a lisura político-administrativa ou, pelo menos, diminui os casos de desvio
Para que servem os parlamentos? Essa pergunta pressupõe uma série de considerações e suas respostas, embora não necessariamente simples, tem as mais diferentes consequências. Além disso, ela se refere a concepções difusas e arraigadas, por vezes contraditórias; assim, não é uma discussão fácil nem simples; ao mobilizar paixões, pode rapidamente se degenerar.
Em todo caso, podemos tentar uma resposta indicando três ou quatro funções para os parlamentos, percebidas como “clássicas” pela teoria política: 1) fonte de legitimidade política; 2) contrapeso político e institucional aos outros poderes; 3) fiscalização dos atos públicos; 4) elaboração de leis.
As duas primeiras estabelecem, em linhas gerais, que os parlamentos representam “o povo” por meio da eleição (direta ou não) e, daí, têm legitimidade para governar. A partir dessa origem, os parlamentos podem (ou devem, dependendo de quem fala) atuar como um contrapeso aos demais poderes, em particular ao chamado “Poder Executivo”, isso é, ao governo, a fim de evitar os abusos do poder. O parlamento como fonte da legitimidade política sugere a sua supremacia sobre os demais: é a ideia de Locke; o parlamento como contrapeso aos outros sugere a equivalência mútua, atuando em oposição ou em complementaridade uns com os outros: é o que propuseram Montesquieu e os “federalistas” dos EUA (Hamilton, Harrison e Jay).
Em todo caso, todos reconhecem que o parlamento não é o governo: o governante possui uma instituição diferente, com poderes específicos – limitados, sem dúvida, mas é a ele que compete a iniciativa política e administrativa. Nesse sentido, afirmar o parlamento serve mais para limitar os poderes do governo que para constituir um órgão de mando.
Ora, desse modo, é no controle dos atos do governo que os parlamentos assumem sua grande relevância. A fiscalização do dia a dia governativo garante a lisura político-administrativa ou, pelo menos, diminui os casos de desvio. Em particular, como afirmava Augusto Comte, o grande instrumento de controle sobre o governo é a votação do orçamento, com o exame dos gastos passados e a discussão dos gastos futuros.
Todavia, os parlamentares têm de ser eleitos e para isso têm de se mostrar visíveis e supostamente representativos de demandas locais e particulares. A fiscalização do governo, especialmente a orçamentária, é um assunto técnico, enfadonho e de gabinete: quase que por definição não gera visibilidade; da mesma forma, os debates orçamentários – em que as perspectivas sociais são confrontadas, afirmadas e/ou negadas – são mais ou menos breves, durando poucos meses a cada ano.
A produção de leis acaba se tornando o instrumento prático de visibilidade parlamentar. Como a quantidade de parlamentares é sempre grande e suas decisões, de modo geral, podem ser vetadas pelo governo, qualquer parlamentar pode propor leis e projetos inócuos sabendo que sua eventual derrota pode ser atribuída a “interesses ocultos” ou à mesquinhez dos governantes. Como não há critérios objetivos para se aferir a legitimidade de um parlamentar e justificar os custos financeiros com o parlamento, a proposição de leis é um dos principais parâmetros para avaliar-se a “representatividade” parlamentar, por mais inócuas, paroquiais, tolas que sejam essas propostas. E, como se sabe, isso ocorre nos três níveis (federal, estadual e municipal), piorando de cima para baixo.
Pode-se afirmar que esse é o jogo democrático e esse é o custo da democracia. Todavia, essa ideia equivale a dizer que a democracia autoriza a leviandade – o que é o oposto de qualquer conceito digno de “cidadania”. Deixando de lado o custo financeiro – que os escândalos de corrupção nos últimos anos têm tornado cada vez maiores –, o fato é que esse jogo da “produtividade parlamentar” é autodestrutivo, pois mina a legitimidade política.
Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR. E-mailgblacerda@ufpr.br