Como o tempo era limitado e também como, em princípio, não se previram anais do evento, elaborei apenas um roteiro da exposição.
O folheto com a programação do evento pode ser visto aqui.
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A ortodoxia da Igreja
Positivista
Gustavo Biscaia de Lacerda
Roteiro da exposição
Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2014 – Fundação Casa de
Rui Barbosa
1. Agradecimentos:
a. Ao
público presente
b. À
Casa de Rui Barbosa
c. Ao
Christian Lynch, pelo convite
2. Questão
básica da comunicação: o que é ser “ortodoxo”?
a. Quem
eram os “ortodoxos”? Embora não exclusivamente, eram aqueles ligados à IPB
b. Os
dois mais conhecidos eram Miguel Lemos e, ainda mais, Raimundo Teixeira Mendes
3. Os
ortodoxos eram religiosos e é nesse sentido que eram “ortodoxos”
a. O
próprio Augusto Comte já tinha definido a distinção entre “ortodoxos” e “heterodoxos”:
i. Os ortodoxos eram os religiosos, ou seja, os que
aceitavam todas as obras de Comte, em particular as “religiosas” (Sistema de política positiva, Discurso sobre o conjunto do Positivismo,
Apelo aos conservadores, Catecismo positivista, Síntese subjetiva)
ii. Os heterodoxos eram aqueles que rejeitavam a
parte religiosa e tinham preocupações mais intelectuais, restringindo-se ao Sistema de filosofia positiva
1. Secundariamente,
os heterodoxos apoiavam ativamente a tese de que Augusto Comte tinha ficado
louco, ou retomado a “loucura” de 1826-1828
2. E.
Littré; J. Stuart Mill, A. Giddens
4. Os
ortodoxos não eram fanáticos nem dogmáticos:
a. Eram
pessoas que adotavam as idéias religiosas e políticas de Comte como parâmetro
de ação e de pensamento
b. Em
outras palavras, não eram pessoas que adotavam de maneira genéricas as idéias
filosóficas de Comte como fonte de inspiração e como apoio metodológico
5. Há
a concepção geral de que a ortodoxia corresponde a rigidez mental e/ou a falta
de imaginação ou inventividade
a. Mas,
por um lado, a gigantesca maioria das idéias que qualquer indivíduo tem em
qualquer momento já foi pensada antes por outras pessoas, seja no mesmo
contexto, seja em períodos anteriores
b. Além
disso, em particular, as idéias de qualquer pessoa baseiam-se nas idéias de
outras pessoas, sejam pensadores sistemáticos, sejam indivíduos comuns
c. Assim,
a concepção de que a imaginação das pessoas é “ilimitada” – defendida tanto
pelo vulgo quanto por acadêmicos – é fantasiosa, quimérica e, no fundo, é
anti-histórica, anti-sociológica e profundamente individualista
d. Costuma-se
afirmar que a ortodoxia corresponde à falta de imaginação e de “inovações”: mas
as inovações por si próprias não querem dizer muita coisa:
i. Muitas “inovações” consistem apenas em
repetições de idéias já lançadas em outros momentos, com ou sem conhecimento da
parte do “inovador”: as “viradas” (“turns”)
acadêmico-intelectuais demonstram sobejamente essas falsas inovações
ii. Além disso, muitas inovações consistem
simplesmente em retrogradações ou em propostas daninhas e/ou liberticidas: o
nazismo e o comunismo soviético são dois exemplos perfeitos dessas inovações
retrógradas
e. Deve-se
notar que os ortodoxos não eram meros comentadores acadêmicos, sem maiores
compromissos com o Positivismo e a obra de Comte: eles defendiam essa obra e
aplicavam-na abertamente aos vários temas que agitavam as sociedades carioca,
brasileira, americana e internacional
6. Um
aspecto central da ortodoxia: a Religião da Humanidade
a. Em
círculos acadêmicos e vulgos pode parecer estranha a religião secular proposta
por A. Comte, seja porque se considera que Comte era “cientificista”, seja
porque se considera de modo geral que religião é igual a teologia
b. Todavia,
para Comte “religião” não equivale a “teologia”: a religião é um sistema geral
de regulação das condutas e das vidas, individual e coletivo: para Comte,
religião vem de “religare”, isto é,
produzir a harmonia individual e também produzir a harmonia coletiva
c. Ao
mesmo tempo, os acadêmicos adotam um desprezível double standart (dois pesos e duas medidas) a respeito da religião:
i. As religiões teológicas e metafísicas afirmam
com enorme freqüência as coisas mais aberrantes e assustadoras a respeito do
ser humano, da natureza, da realidade, da sociedade e da moral, mas, mesmo
assim, são respeitadas e levadas a sério, por serem “sistemas de pensamento”, “religiosidades
populares”, “fontes de identidades coletivas” etc.
ii. Mas, ao mesmo tempo, os acadêmicos costumam negar
ao Positivismo esse respeito, simplesmente porque a Religião da Humanidade não
é teológica – mesmo que o Positivismo afirme e exija a fraternidade universal,
o pacifismo, o realismo cognitivo e político etc.
iii. Assim, os intelectuais costumam ser ou
hipócritas ou cínicos a respeito da Religião da Humanidade
iv. Quais “acadêmicos” fazem isso? Os mais variados
possíveis: católicos, marxistas, liberais; além disso, os especialistas em “religião”
(isto é, em teologia): sociólogos, antropólogos, historiadores, filósofos da
religião
7. Os
positivistas ortodoxos eram “intelectuais públicos”
a. A
idéia do “intelectual público” tem sido defendida há vários anos pelo marxista
Michael Burawoy
i. O intelectual público é aquele intelectual que
desenvolve uma atividade “extramuros”, que participa dos debates públicos,
procurando constituir e desenvolver uma “consciência pública”
b. Em
outras palavras, a figura do intelectual público corresponde à ação do que
Augusto Comte chamava de “novo poder Espiritual”, que constituiria e
mobilizaria a opinião pública
i. Incidentalmente, cabe notar mais um caso de double standart: se um marxista defende
o “intelectual público”, a proposta é válida; se Augusto Comte defende um “poder
Espiritual”, um “sacerdócio” que desenvolva a opinião pública, é motivo de
chacota e desprezo
c. Os
positivistas ortodoxos manifestavam-se a propósito de tudo que julgavam útil
e/ou importante, de acordo com suas possibilidades materiais e pessoais:
problemas sociais, políticos, econômicos, jurídicos, íntimos etc.
d. Assim,
de fato, eles procuravam constituir uma nova moral pública e uma nova
consciência pública
i. Deve-se notar que eles tinham como alvo o
público não-estatal, ou seja, a sociedade civil
e. Em
suas intervenções, eles procuravam dialogar com todos, ao mesmo tempo em que
rejeitavam o uso da violência, fosse em suas intervenções, fosse como
instrumento político em qualquer situação; também valorizavam muito as
liberdades individuais e coletivas de escolha e decisão
i. A leitura direta das obras dos positivistas
ortodoxos e, em particular, de Teixeira Mendes, revela e confirma o que o
próprio Teixeira Mendes afirmou certa vez: com o passar do tempo ele(s)
melhorou(raram), tornando-se cada vez mais fraterno(s), pacífico(s), humano(s)
ii. Embora do ponto de vista teórico o Positivismo
rejeite a noção de “direitos humanos”, por ser metafísica, anti-histórica,
anti-social e individualista, o fato é que todas as suas intervenções sempre defenderam o que se chama
atualmente de “direitos humanos”
8. No
Brasil, juntamente com o coro dos que ironizam ou desprezam os positivistas, houve
quem dissesse que os ortodoxos tinham “medo da realidade”
a. O
autor dessa tese é o historiador Sérgio Buarque de Hollanda
i. Nessa tese há um explícito desprezo pelos
portugueses e pela herança portuguesa na colonização e na formação do Brasil,
considerando-os molengas e preguiçosos: dando continuidade a essa “tradição”,
os positivistas seriam intelectualmente moleirões
b. Também
há uma especiosa interpretação da ação e das intervenções positivistas, com a
fantástica e arrogante afirmação de que os positivistas não conheciam a obra de
Comte nem sabiam interpretá-la – evidentemente ao contrário do próprio Sérgio
Buarque
c. A
atuação pública dos positivistas revelava uma preocupação enorme com o Brasil,
com a América e com todos os povos do mundo: suas intervenções tinham por
objetivo melhorar a situação de todos, combater injustiças, corrigir problemas
etc.
d. Assim,
eles teriam tido “horror à realidade”? Não: eles eram sacerdotes do novo poder
espiritual ou, dito de outra maneira, eram “intelectuais públicos”: sua
preocupação era apontar soluções, opções, alternativas para os problemas que
identificavam
i. Ou seja: para usar uma palavra que está na moda
(e que o próprio Augusto Comte empregava), eles defendiam uma utopia
e. Mas
em certo sentido é possível empregar a expressão “horror à realidade”:
i. Ao contrário da interpretação cheia de rancor e
preconceitos de Sérgio Buarque, o fato é que, de fato, os positivistas tinham “horror
à realidade” brasileira do período em que atuaram (1881-1927): era uma
sociedade oligárquica, com exclusão sistemática dos antigos escravos, com
miséria, com uso sistemático da violência da parte dos ricos, dos poderosos e
do governo contra os pobres, os fracos e a sociedade civil; eram uma sociedade
que cada vez mais valorizava o militarismo, que desrespeitava os índios etc.
9. Não
deixa de ser suspeito o desprezo habitual manifestado pelos intelectuais aos
positivistas ortodoxos: provavelmente se escondem em tais manifestações ciúme e
inveja, além de estratégias para afirmação política
10. Em
síntese:
a. A
atuação prática dos positivistas ortodoxos foi positiva para a sociedade
brasileira
b. A
despeito disso, os intelectuais comprazem-se em vilipendiar os positivistas,
gerando os mais variados preconceitos
(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)