A matéria abaixo, publicada pela revista Época na véspera do aniversário da Abolição da Escravidão no Brasil, é extremamente alvissareira. Como se sabe, os passaportes especiais ("passaportes diplomáticos") concedidos pelo governo brasileiro a determinados cidadãos, tornou-se moeda de troca política e prebenda familiar nas últimas duas décadas: líderes religiosos e membros da família Lula da Silva, injustificadamente, receberam-nos. Apesar disso, aos poucos, esses passaportes estão sendo anulados, seja por decisões políticas, seja por decisões judiciais.
No caso em tela, um dos homens mais ricos do país, que amealha fortuna com isenção crescente de impostos, perdeu um de seus inaceitáveis privilégios, isto é, o direito de ter tratamento especial para sair do país. (Aliás, como indica a matéria, não foi apenas R. R. Soares que perdeu esse privilégio, mas também sua esposa.)
Em meio à degradação da vida pública que se constata no Brasil há algumas décadas, bem como da laicidade, a decisão da Justiça traz um alívio para todos os verdadeiros republicanos e para os defensores da laicidade do Estado.
O original pode ser lido aqui.
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Justiça anula passaporte diplomático de RR Soares
Na decisão, a magistrada refuta o argumento dos líderes
religiosos de que eles possuiriam “relevância nacional necessária” e aponta que
o Estado brasileiro é laico
MATEUS COUTINHO
12/05/2017 - 17h29 - Atualizado 13/05/2017 17h08
A Justiça Federal em São Paulo anulou a portaria do
ex-ministro de Relações Exteriores José Serra (PSDB) que concedeu no ano
passado passaporte diplomático ao pastor da Igreja Internacional da Graça de
Deus, R. R. Soares.
A decisão desta quinta-feira (11) é mais uma derrota de
líderes religiosos na Justiça que foram beneficiados com o documento que, na
prática, permitia ao pastor e sua mulher, também beneficiada com o documento
especial, a ter acesso à fila de entrada separada nos países e vistos
gratuitos, quando necessários aos brasileiros.
No ano passado, a Justiça já havia determinado a suspensão e
o recolhimento dos passaportes dos pastores. Agora, o juiz anulou o ato do
Poder Executivo que concedeu o benefício. A rigor, o documento é concedido a
autoridades que, entre outros motivos, viajam para representar os interesses do
país.
“A Portaria de 28 de junho de 2016 do Ministério das
Relações Exteriores deve ser anulada em razão de manifesta ilegalidade
ocasionada tanto pela ausência de motivação idônea, como pelo desvio de sua
finalidade, o que, em última análise, fere a moralidade administrativa”,
assinala a juíza da 7ª Vara Federal Cível de São Paulo, Diana Brunstein, na
decisão.
A sentença foi expedida na ação popular movida pelo advogado
Ricardo Amin Abrahão Nacle questionando a concessão do benefício aos
religiosos. A decisão é de primeira instância e ainda cabe recurso.
Apesar de citar uma portaria do então ministro José Serra, o
tucano não é alvo da ação, pois a Justiça Federal entendeu que ele deveria ser
excluído do processo e que a União Federal, por meio da Advocacia-Geral da
União, deveria responder pelo caso.
Na decisão, a magistrada ainda refuta o argumento dos
líderes religiosos de que eles possuiriam “relevância nacional necessária” e
aponta que o Estado brasileiro é laico. “As viagens missionárias dos corréus
são indubitavelmente constantes, porém, como dito na própria contestação, visam
defender os interesses da Igreja, propagando a doutrina cristã e isto não
representa os interesses do país, que como organização estatal é laico e,
portanto, neutro em relação às mais diversas crenças e religiões, cabendo
apenas garantir e zelar pela liberdade de consciência e de crença, assegurando
livres manifestações religiosas, nos termos do artigo 5º, VI da Constituição
Federal”, segue a sentença.
A juíza também analisou os argumentos de que a concessão do
benefício buscava dar isonomia aos líderes religiosos, já que durante o Brasil
Império líderes católicos receberam o passaporte. O magistrado lembrou que,
durante o Império, o Estado não era laico e que, portanto, não caberia comparar
a situação com a de outros líderes religiosos. “Modificado este princípio
fundamental do Estado, a atenção à isonomia se dá com a não concessão do
passaporte diplomático a qualquer líder religioso, inclusive os católicos, não
a extensão desta prática reconhecidamente arcaica e inconstitucional, que
ofende a isonomia entre líderes religiosos e os demais Cidadãos”, afirma a
sentença.
O benefício a RR Soares e sua mulher não foi o primeiro
concedido pelo governo federal. Em 2013, durante o governo Dilma Rousseff, o
líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, Valdemiro Santiago de Oliveira, e a
mulher dele, Franciléia de Castro Gomes de Oliveira também receberam o
benefício. Outros líderes de igrejas também já receberam o documento, que dá
direito ao uso de uma fila especial nos aeroportos, mas não dá imunidade
diplomática.
Com menos de uma semana no cargo, em maio deste ano, José
Serra concedeu o mesmo benefício para o pastor Samuel Ferreira e a mulher
Keila, também pastora, da Assembleia de Deus. Ferreira é investigado na Lava
Jato suspeito de lavar dinheiro de propina para Eduardo Cunha (PMDB-RJ) por
meio da igreja em Campinas. A assessoria de imprensa de Ferreira afirma que ele
devolveu o passaporte em fevereiro.
O sistema de concessão de passaportes diplomáticos foi
alterado em 2011, depois de revelado que os filhos e netos do ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva tinham o documento mesmo depois da sua saída do
governo e de não serem menores de idade, como determinava o decreto sobre o
tema. Na época, a legislação dava ao ministro o poder de decidir quem poderia
receber o passaporte em casos considerados de interesse nacional – o então
ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, concedeu o documento aos filhos
de Lula pouco antes do final de seu governo, em 2010.
O advogado Alexandre Henrique, que representa o pastor e sua
mulher, diz que vai recorrer da decisão, que classificou de “muito fraca”.
“Acredito que a decisão vai ser reformada. O desembargador do caso já negou a
liminar que mandava recolher os passaportes no ano passado. Acreditamos que
essa decisão também deve ser revista no Tribunal (Regional Federal da 3ª
Região)”, disse.