O livro Passado imperfeito, do historiador Tony Judt (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008), é muito interessante e suscita muitas reflexões; essas reflexões concernem tanto ao tema de que o autor trata quanto dos defeitos que o livro apresenta. Como não poderia deixar de ser, a forma como o autor cita Augusto Comte e o Positivismo é exemplar dos defeitos desse livro. Assim, por todos os motivos - positivos e negativos -, parece-me que vale a pena divulgar estas pequenas anotações sobre ele.
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Sobre o livro Passado imperfeito, de Tony Judt
O livro expõe e critica, com base em um certo liberalismo, o
comportamento dos intelectuais franceses nos dez anos que se seguiram à II
Guerra Mundial. Na última seção do livro essas diversas escolhas são explicadas
e justificadas: por que os franceses; por que os dez anos após a II Guerra; até
mesmo por que o liberalismo. De modo geral, essas escolhas temáticas fazem
pleno sentido: os intelectuais franceses costumavam ser a consciência moral e
intelectual da Europa e, daí, do mundo; além disso, o período posterior à II
Guerra foi o de acerto de contas com a devastação feita pelo nazismo (antes e
durante o conflito). Mas, de modo mais importante, após a II Guerra ocorreu o
início da Guerra Fria, o engajamento político estridente dos intelectuais, após
uma atividade em geral apolítica e antipolítica até 1940 (ou, pior, até 1944,
isto é, até a libertação da França pelos aliados), a adesão da maioria desses
intelectuais ao comunismo (quer fossem, quer não fossem eles mesmos comunistas,
incluindo aí muitos católicos e todos os existencialistas) e o conseqüente
silêncio sistemático desses intelectuais às atrocidades stalinistas e/ou as
justificativas mirabolantes que eles davam aos crimes stalinistas.
O argumento do autor em linhas gerais é simples e
convincente: antes e durante a II Guerra, muitos intelectuais eram apolíticos
ou antipolíticos; o conflito e a Libertação, com o acerto de contas político e
moral dos colaboracionistas, acarretou uma crise de consciência dos
intelectuais, levando-os ao engajamento; quanto maior a crise (e, antes, quanto
mais irracionais e sem sentido os sistemas filosóficos esposados pelos
intelectuais, como nos casos paradigmáticos dos existencialistas, Sartre e sua
consorte à frente), mais estridente era o engajamento. Na conjuntura da época,
esse engajamento era necessariamente esquerdista, na medida em que ele
decorria, por um lado, da luta contra o fascismo e, por outro lado, da então
recente aliança da União Soviética como “país democrático”. Entretanto, a má
consciência dos intelectuais franceses, seja por sua atuação antes da guerra,
seja por sua atuação durante a guerra, levou-os a serem cada vez mais radicais
em seus engajamentos; a isso se associava também o antiamericanismo e uma valorização
extremada da “francesice”: o resultado disso tudo foi uma valorização intensa e
intensamente acrítica da União Soviética e uma desvalorização do “liberalismo”;
assim, na década que se seguiu à II Guerra, a grande maioria dos intelectuais
franceses silenciou-se a respeito dos crimes cometidos por Stálin e/ou pelo
comunismo, quando não os justificaram das maneiras mais estapafúrdias
possíveis. (Quais os crimes do comunismo? Invasão de países; antissemitismo;
aprisionamentos, julgamentos e execuções arbitrárias e em massa; incoerências
sistemáticas; censura sistemática.) Essa submissão dos intelectuais ao
comunismo tinha elementos messiânicos e milenaristas, bem como de
auto-rejeição: no que se refere a este último aspecto, os intelectuais
afirmavam com todas as letras, em seus artigos e livros, que, como burgueses,
eram desprezíveis e que precisavam do
povo, ou do proletariado, para justificarem-se socialmente; por sua vez, o
comunismo – e o Partido Comunista em particular – era o canal por definição
desse acesso ao proletariado; entretanto, o próprio Partido Comunista (francês,
no caso) era explicitamente contra esses mesmos intelectuais.
Esse quadro só mudou após a morte de Stálin, em 1953, e,
ainda mais, após o “vazamento” do relatório de 1956 de Kruschev, no XX
Congresso do PCUS, em que o novo líder soviético denunciava o culto à
personalidade e os crimes de Stálin. O autor observa que, embora a partir disso
os intelectuais franceses tenham-se “libertado” do comunismo (ou, pelo menos,
tenham passado a “libertar-se” dele), tal libertação foi apenas dos próprios
intelectuais, que não deixaram de adotar o mesmo comportamento em relação a
outros temas – fosse o anticolonialismo (em face da independência da Argélia),
fosse o terceiromundismo (em que a revolução comunista camponesa fora da Europa
ganhava o espaço da admiração pelo comunismo europeu) – e, em particular, os
intelectuais não passaram, após 1956, a mudar de comportamento em relação ao
comunismo na Europa Oriental e na União Soviética: eles simplesmente
abandonaram o tema do comunismo europeu (sendo, todavia, obrigados a
enfrentá-lo novamente a partir de 1974 – embora o autor não esclareça o que
teria ocorrido em 1974 na França).
A exposição que o autor faz das idéias e do comportamento
dos intelectuais franceses entre 1944 e 1956 é o ponto forte do livro; essa
exposição é organizada tematicamente. Não resta pedra sobre pedra do que ele
expõe; os intelectuais franceses foram mesmo infantis e irresponsáveis.
Entretanto, há uma série de problemas metodológicos e
teóricos no livro. Em primeiro lugar, o autor faz suas reflexões muito com base
em literatura de segunda mão; embora ele cite com freqüência textos dos
intelectuais franceses, tais citações com grande regularidade – talvez em pelo
menos metade das citações – são obtidas em livros de outros pesquisadores, que
já selecionaram as passagens que julgam importantes e interessantes; em outras
palavras, o autor não fez de fato uma pesquisa sistemática sobre os originais.
Em segundo lugar, embora à primeira vista possa parecer secundário, faltam
exposições historiográficas elementares; por exemplo, não faria nenhum mal
indicar aos leitores quando ocorreu a invasão nazista da França, a instalação
do regime de Vichy, a tomada total do território francês pelos nazistas – ou,
então, quando ocorreu o governo socialista de Léon Blum nos anos 1930 ou o que
ocorreu na França em 1974.
Mas é nas explicações sociológicas e até psicológicas que o
autor oferece para os comportamentos dos intelectuais franceses que estão os
seus aspectos mais fracos. O autor argumenta que os intelectuais que atuaram
após 1944 desprezavam o liberalismo; o conjunto de sua exposição parece
confirmar com clareza esse diagnóstico; mas o autor recua até a Revolução
Francesa, ou melhor, até o século XVII (até antes do Iluminismo!) para explicar
esse desprezo. Ao tratar das tentativas dos liberais franceses de terem e
manterem o poder, ele observa que eles fracassaram mas que a culpa pela falta
de êxito do liberalismo na França, em última análise, seria da III República
(1870-1940) e dos republicanos, que estavam mais preocupados em serem
republicanos que em serem liberais. Ora, os liberais que ele defende eram
monarquistas e parlamentaristas (Guizot e Tocqueville, por exemplo), ou seja, defensores
da sociedade de castas, dos privilégios de classe, da censura, da repressão e
até do colonialismo: nada disso é exposto pelo autor e, assim, muito menos
entendido como defeito. Já os republicanos, preocupados em acabar com a
instabilidade política e social que caracterizava a França desde 1789, são
acusados de não serem liberais, apesar de garantirem as liberdades públicas e
mesmo tendo que lidar com o reacionarismo da Igreja Católica e do Exército. Em
outras palavras, se a França republicana estava preocupada em garantir a
estabilidade e em ser moderna e com liberdades, isso não é problema do e para o
autor; na verdade, isso é um defeito a ser criticado. Não é que os “liberais”
franceses fossem ruins – para o autor, assim como para outros historiadores
(como Pierre Rosanvallon), os liberais franceses seriam bons, a despeito de
suas ações concretas e dos regimes que eles apoiaram, justificaram e
legitimaram ativamente –; os políticos não liberais é que seriam ruins, mesmo
que tais políticos (na III República francesa) tenham procurado agir da melhor
maneira possível, de modo a estabilizar o regime, legitimá-lo, combater os
reacionários e garantir as liberdades públicas. (Isso não quer dizer que a III
República tenha sido perfeita: por exemplo, ela reforçou o colonialismo no
Norte da África; mas por outro lado, ela conseguiu manter-se durante 70 anos,
enquadrou os reacionários militares ao longo do caso Dreyfus, separou
(imperfeitamente) igreja e Estado, passou pela prova duríssima da I Guerra,
conseguiu manter-se relativamente ilesa da crise econômica iniciada em 1929 e
ainda elegeu um governo socialista em 1936: tudo isso é muito mais do que os
liberais franceses fizeram e pretenderam.) Em um aspecto o autor está certo,
todavia: a concepção – democrática – de que a Assembléia Nacional seria
todo-poderosa; essa idéia, em si mesma puramente democrática, já é em si mesma
desastrosa e era criticada por muitos (por exemplo, Augusto Comte) desde antes
da III República; no parlamentarismo – que, aliás, é o regime que se segue
naturalmente dessa concepção totalitária – isso se torna desastroso.
Entretanto, mesmo ao indicar o defeito congênito da democracia rousseauniana, o
autor é superficial, seja porque não considera a história política e
intelectual efetiva da III República, seja porque, como conseqüência do
problema anterior, o autor procede dedutivamente a respeito dessa fase
histórica da França.
Essa concepção curiosa que o autor defende baseia-se no seu
liberalismo anticomunista. Esse liberalismo anticomunista não é de tradição
estadunidense; é mais próximo do liberalismo anticomunista francês, conforme
exposto e defendido por Raymond Aron (citado em muitas e elogiosas ocasiões) e,
depois, retomado por François Furet. Esse liberalismo anticomunista seguia a tradição
do conservadorismo britânico, à la
Burke, que rejeitava os projetos de mudança racional e planejada da sociedade,
bem como a visão correlata de homens aperfeiçoados: deixando de lado a necessária
e correta crítica da total irresponsabilidade dos intelectuais franceses entre
1944 e 1956, o autor considera que eles estavam fadados a serem errados devido
ao projeto de mudança racional e planejada do homem e da sociedade; esse
projeto seria em si mesmo errado e até imoral, sendo a base para a crítica da
Revolução Francesa, da III República francesa, da Revolução Russa e do que veio
depois. É bem verdade que os comunistas russos fizeram o possível para
estabelecer uma conexão histórica e moral entre 1917 e 1789; mas, em vez de
perceber que a história da França era uma coisa e a da Rússia, outra, o autor
compra a tese dos comunistas e condena em bloco todo o projeto. Aliás, mais do
que isso; o liberalismo anticomunista do autor fá-lo adotar as mesmas
concepções historiográficas e sociológicas de François Furet, cuja “nova
história crítica” da Revolução Francesa consistia em entender os acontecimentos
de 1789-1799 meramente como a sucessão de eventos sociais e políticos – eventos
de grande porte, mas em si mesmos sem maiores conseqüências ou importâncias filosóficas,
sociológicas e históricas; em outras palavras, para combater o determinismo
materialista dos comunistas, o melhor que Furet (e, no presente caso, Judt) tem
para oferecer é um historicismo hipercontextualista e politicista, que rejeita
qualquer filosofia da história e qualquer filosofia do progresso do ser humano.
Resumindo em si os defeitos do livro, a postura que o autor
adota a respeito de Augusto Comte e do Positivismo é exemplar: são poucas
citações e referências, mas essas poucas são todas elas negativas e superficiais. Por um lado, as breves
exposições que o autor faz do Positivismo são todas erradas e baseiam-se em
procedimentos “dedutivos”: o autor tem uma idéia preconcebida (um preconceito,
em outras palavras) e quer usar o Positivismo para ilustrar um argumento
qualquer; a fim de realizar tal ilustração, ele deduz as conseqüências que lhe
interessa no momento. Nenhum dos seus argumentos baseia-se em qualquer tipo de
citação ou de referência – e, evidentemente, não há nenhuma do próprio Comte ou
dos positivistas –, mas com freqüência, e injustificadamente, o autor associa
Comte a Saint-Simon, como se o fundador do Positivismo fosse uma derivação, e
uma versão piorada, do conde falido. Por outro lado, o Positivismo é mobilizado
para explicar traços que interessam ao autor: por exemplo, um culto às
estatísticas; entretanto, não apenas esse traço não corresponde ao Positivismo
(Comte era contrário à sociometria como sinônima de Sociologia, como no projeto
de Quétélet), como o autor só faz aparecer no presente traços longínquos do
Positivismo se esses traços antigos forem, supostamente, negativos, mas nunca positivos; em outras palavras, todas as
vezes em que ele invoca o Positivismo ele comete o vício teórico-metodológico
do viés de seleção. (Além disso, o autor é incoerente, ao afirmar, no começo do
livro, que no início da IV República havia uma preocupação entre muitos
intelectuais com as estatísticas oficiais, mas, no final do livro, insistir na
idéia de que os intelectuais buscavam manter-se ignorantes da realidade (fosse
francesa, fosse estrangeira)).
No que se refere ao tema específico do livro – a exposição
das imbecilidades dos intelectuais franceses entre 1944 (ou, talvez, 1940) e
1956 –, isto é, em termos de história das idéias no período subseqüente à II
Guerra, o autor é muito bem-sucedido, embora haja diversas limitações, como as
indicadas acima. Entretanto, assim que o autor afasta-se do tema específico do
livro, as limitações indicadas ganham peso e maculam o seu esforço; sua interpretação
filosófica, sociológica e histórica das fontes do irracionalismo, da
irresponsabilidade e da imoralidade dos intelectuais franceses desde a década
de 1930 e até, pelo menos, 1956 (mas estendendo-se até 1974) revela-se profundamente
falha e insatisfatória.
O conjunto do livro deixa, então, um sabor misto, ambígüo,
para o leitor. Por um lado, o núcleo duro da pesquisa do autor é importante e
em linhas gerais é convincente; a crítica moral que ele realiza funciona, em
termos amplos. Mas, por outro lado, a interpretação sociológico-filosófica que
ele propõe das origens do problema que denuncia é fraca e, se isso não fosse
pouco, a concepção que ele esposa do ser humano e da sociedade, na qual baseia
a sua crítica, é ainda mais frágil e superficial (ainda que tenha alguns
elementos relevantes – basicamente, a idéia moderna de que as liberdades
individuais devem ser preservadas).
Anos depois, o autor pelo menos abrandaria esse liberalismo
em favor da defesa de uma certa social-democracia; como o seu liberalismo não é
exatamente o anglossaxão (ao estilo Tatcher-Reagan, ou Popper-Hayek-Friedman),
mas segue as linhas do liberalismo conforme entendido e praticado por Aron e
Furet, essa defesa posterior da social-democracia não é totalmente incoerente;
mas, mesmo assim, a ênfase estrita no indivíduo (contra a sociedade) passa para
o respeito às noções de coletividade e de bem público. Da mesma forma, Tony
Judt tornou-se famoso por seu gigantesco livro Pós-guerra e por centenas de resenhas e comentários sobre livros e
pesquisas históricas, filosóficas e políticas: não deixa de ser motivo de
tristeza percebermos que uma investigação prévia que ele fez, relevante e útil
em si mesma, apresenta uma quantidade enorme de falhas, limitações e equívocos.
(Vale notar que a tradução brasileira é péssima, o que
também não ajuda o livro.)