A revista Insight Inteligência, em sua edição de julho a setembro de 2021 (v. XXIV, n. 94, p. 62-75), publicou um artigo de minha autoria, sob o título "Nem todos os 'conservadores' são conservadores". Na verdade, ele é a versão muito reduzida de um outro texto, em que desenvolvo pormenorizadamente uma avaliação do conservadorismo à luz do Positivismo. Abaixo eu publico essa versão longa e completa do texto.
A motivação para redigir esse texto é clara: a importância política que os assim-chamados, ou autoproclamados, "conservadores" têm atualmente no Brasil. Sob o rótulo geral mas ilusório de "conservadores", um grupo heterogêneo e contraditório tem tentado implantar mudanças retrógradas e reacionárias no país, com críticas variadas a tudo o que eles chamam genericamente de "progressistas" - e que inclui também o Positivismo. A questão que me preocupou foi a seguinte: será que o "conservadorismo", por si só, tem que ser reacionário? Ou, o que dá na mesma: o conservadorismo tem que ser contrário ao progresso?
* * *
Os conservadores entre alguns acertos e
muitos erros –
avaliando o conservadorismo à luz do
Positivismo
1. Introdução
É fato conhecido por todos que o “conservadorismo” é uma
corrente e uma tendência política que integra os debates públicos no Brasil,
para bem ou para mal, quer gostemos, quer não gostemos disso.
Esse conservadorismo, claro, está adaptado ao nosso ambiente social, cultural e
político, ao mesmo tempo em que não deixa de apresentar incoerências e “tensões”
mais ou menos graves; de fato, considerando a atual realidade brasileira, a
maior fonte de tensão está em conservadores apoiarem, em nome desse
conservadorismo (mas também considerando o fantasma do antipetismo), a gestão
do atual Presidente da República, que desrespeita de maneira sistemática as
liberdades públicas, a tolerância, o cuidado com o meio ambiente, o
multilateralismo internacional etc. etc.. Nos
últimos anos, em diversos momentos (LACERDA, 2018a; 2019a; 2019b; 2020c) procuramos
indicar algumas das limitações do conservadorismo, menos com um espírito
destruidor e mais no sentido de evidenciar, mesmo para os próprios
conservadores, que o conservadorismo não é nem precisa ser sinônimo de
reacionarismo nem, de modo mais central, sinônimo de autoritarismo.
Considerando que aos intelectuais cabe a tarefa de
constituir um “poder Espiritual” (nos termos precisos de Augusto Comte (1929;
1972)) ou de realizar uma “Sociologia pública” (nos termos mais ambíguos de
Michael Burawoy (2009)), a participação contínua nos debates públicos é quase
uma obrigação (auto)imposta, que assume um caráter tanto político quanto
pedagógico e moral. No que se refere à discussão com e sobre o conservadorismo,
é possível, ou melhor, é necessário darmos um passo além em relação às intervenções
anteriores e indicar com clareza no que ele erra em termos históricos (e, daí,
políticos) e também em termos epistemológicos (e, daí, morais). É a esse exame
que nos dedicaremos neste artigo.
Antes de passarmos à discussão substantiva, convém esclarecermos
que a nossa perspectiva é positivista, ou seja, baseada nas concepções e
propostas de Augusto Comte, fundador da Sociologia, da Sociologia das Ciências
e, mais importante, da Religião da Humanidade. Bem vistas as coisas, o emprego
da perspectiva positivista ao exame crítico do conservadorismo pode oferecer
diversas possibilidades: por um lado, isso reafirma um dos aspectos centrais do
Positivismo, a sua já citada proposta de um novo “poder Espiritual”; por outro
lado, isso indica que as propostas comtianas não são peças de museu, que variam
entre o exótico e a pura velharia, mas que são instrumentos efetivos de
compreensão da realidade e de intervenção nos debates públicos; por fim, mas
não menos importante, considerando que uma longa tradição de esquerda,
especialmente da esquerda marxista,
apoda ao Positivismo o título de “conservador” (com isso querendo significar “reacionário”
ou “retrógrado”), o exame do conservadorismo a partir do Positivismo pode
oferecer um contraponto no mínimo interessante ao que é, por seu turno, um
preconceito político faccioso.
2. Algumas premissas do
pensamento conservador
Os conservadores – talvez não todos, mas com certeza muitos deles – definem-se afirmando que
não são contra as mudanças sociais, mas que, muito mais importante que isso,
para eles as longas tradições históricas,
as instituições legadas pelo passado
é que são importantes; nesse sentido, o que foi legado pelo passado como que
passou pelo crivo da história, passou por uma espécie de teste histórico; essa
aprovação garantiria não apenas que as instituições e as tradições herdadas são
resistentes mas que, mais do que isso, são boas.
A partir dessa concepção, para os conservadores, as mudanças não seriam ruins
em si mesmas, mas elas devem ser incrementais e lentas, de modo a poderem
ajustar-se às instituições e tradições herdadas e, de qualquer maneira, devem
também ser postas à prova do tempo. Em contraposição ao legado histórico, as
mudanças “bruscas” e/ou as mudanças feitas com base em projetos racionais são
vistas com forte suspeição e/ou repudiadas pelos conservadores.
A concepção exposta acima tem várias características dignas
de nota. Em primeiro lugar, ela tem o evidente mérito de respeitar o passado e,
com isso, afirmar a historicidade humana, no sentido de que o ser humano é, por
definição, acima de tudo, um ser
histórico, um ser que resulta do acúmulo da atividade das gerações, umas
após e sobre as outras. Em segundo lugar, os defensores dessa concepção
preocupam-se em particular em afirmar que ela é apenas uma “noção”, uma
concepção geral, não uma doutrina formalizada; o que mais lhes importa, ao
afirmá-lo, não é que eles movam-se por um sentimento, mas é que eles desejam
evitar a todo custo um roteiro claro que aponte para a frente; em outras palavras,
eles querem limitar-se a respeitar o passado e, por isso, não querem indicar
caminhos para o futuro: sua rejeição de um pensamento bem estruturado não visa
a um irracionalismo (ainda que ele possa de fato aproximar-se do irracionalismo),
mas à rejeição de projetos de engenharia político-social, vistos como essencial
e necessariamente traumáticos. Em terceiro lugar, está implícita a noção de que
as instituições devem ajustar-se à natureza humana; essa concepção é correta em
si mesma, embora seja criticada por pensadores para quem o ser humano é
infinitamente plástico e que ele pode ser, literalmente, qualquer coisa, incluindo
deixar de ser humano.
As três características indicadas acima são importantes e,
até certo ponto, devem ser valorizadas e preservadas. Entretanto, importa notar
que elas são insuficientes e que, em particular as duas primeiras, devem necessariamente
ser complementadas por outras. Quais outras? Concepções que reconheçam, afirmem
e valorizem as mudanças sociais, intencionais ou não.
Em si mesmo, o respeito às tradições e às instituições
herdadas do passado tende ao mais completo imobilismo; se o respeito às
tradições for erigido em valor último, o resultado é que nenhuma alteração será
possível, pois não será tolerada, exceto com hipocrisia e/ou amnésia, ou,
talvez, com incoerência doutrinária. Mas, de qualquer maneira, esse imobilismo
exige também o controle centralizado das instituições e das tradições sociais,
a fim de que se certifique de que nada mude; tal centralização pode ser maior
ou menor, isto é, ocorrer em um indivíduo ou em uma corporação, embora, em todo
caso, a necessidade da centralização mantém-se.
Outro aspecto que deve ser indicado é que as sociedades
caracterizadas pelo respeito geral às tradições são muitas vezes chamadas de “tradicionais”,
em que o que importa é apenas refazer hoje e amanhã o que se fez ontem, isto é,
em que a condução das atividades humanas teria um certo automatismo. A palavra “automatismo”
não é a melhor no presente momento, pois ela sugere mecanismos, ou melhor,
máquinas e, daí, indústria; o que nos importa sugerir aqui não são as idéias de
máquinas e indústria, mas, simplesmente, a repetição contínua, mais ou menos
cíclica, de comportamentos. Claro está que esses comportamentos são realizados
conscientemente pelos seres humanos, mas, ao mesmo tempo, há a concepção de que
não cabe ao ser humano escolher o seu destino (individual e/ou coletivo), muito
menos acelerar esse destino. Mesmo que a concepção cíclica do tempo não seja
muito intensa, permanece a outra concepção, segundo a qual não cabe ao ser
humano decidir os rumos que deve seguir, especialmente em termos coletivos.
Assim, em certo sentido, o ser humano vive às cegas – e é precisamente o
respeito às tradições herdadas que, supostamente, preveniria os danos desse
viver às cegas.
O que se evidencia dos comentários acima é que a concepção
de historicidade presente em tais sociedades é estática, no máximo cíclica: as
coisas devem ser como sempre foram; temos ciclos mais ou menos regulares (as fases
da Lua, o movimentos diário e anual do Sol, o movimento das estrelas, as
estações do ano, o nascimento, amadurecimento, envelhecimento e morte de todos
os seres vivos), mas não é possível e não se deve romper essa ordem geral, quer
nossa vida esteja inserida em um desses ciclos, quer não esteja. Entretanto, de
fato não importa aqui tanto a adequação aos ciclos, na medida em que a vida
humana pode realizar-se independentemente da ocorrência dos ciclos: por
exemplo, na teologia católica (e, de modo geral, cristã), o sentido da vida humana
está em aguentar o que ocorre nesta vida para viver-se “de verdade” no outro
mundo (seja na punição eterna, seja na fruição eterna, seja, ainda, na
antecâmara da fruição eterna). No Ocidente, esse quadro que procuramos descrever,
claro está, refere-se à Idade Média, especialmente nas fases e nas regiões
menos urbanizadas e fora dos centros de poder e de riquezas.
Ora, quando os conservadores definem-se pelo respeito às
tradições legadas pela história, com isso afirmando que preferem mudanças
incrementais e lentas, eles são completamente incoerentes e deslocados, pelo
menos por dois motivos: (1) porque eles consideram uma realidade histórica falseada e (2) porque a nossa sociedade não é imobilista, tradicional e/ou cíclica, nem anda
às cegas.
3. Uma concepção histórica
falseada
A concepção de conservadorismo como o respeito às tradições
legadas pelo passado e aprovadas na prova do tempo foi elaborada pelo irlandês
Edmund Burke; não por acaso, ela foi exposta na obra Considerações sobre a revolução em França, de 1790 (BURKE, 1997);
na verdade, pode-se considerar essa obra como a fundadora do conservadorismo
como forma de pensar. Refletindo sobre a Revolução Francesa, iniciada no ano
anterior, Burke criticava a destruição social e institucional generalizada que
começava a ter lugar na França, no curso do processo revolucionário; cada vez
mais rápido, em pouco tempo e até 1794 os revolucionários franceses aboliram o
feudalismo (isto é, as leis que mantinham vigente a ordem feudal), a nobreza, a
monarquia e ainda executaram o rei (por alta traição, após o vergonhoso
episódio da “fuga a Varennes”); instituíram a República, a igualdade perante a
lei e ainda enquadraram o clero católico e nacionalizaram os bens da igreja
católica. Ao mesmo tempo em que esses eventos desenrolavam-se, era necessário
manter a ordem pública na França e fazer frente a sucessivas guerras
contra-revolucionárias e invasões externas; tudo isso resultou na radicalização
política e na instituição do tribunal revolucionário, com o “grande terror”
mantido em 1794 pelo Comitê de Salvação Pública. Parte desses eventos decorreu
da dinâmica política e social daquele período, mas as bases intelectuais e
morais tinham sido lançadas ao longo do século XVIII – ou seja, nas décadas
anteriores à Revolução – pelos pensadores do Iluminismo, em particular os das suas
três grandes escolas (a de Voltaire, a de Rousseau e a de Diderot).
Enfim, foi contra o conjunto da Revolução Francesa que Burke
definiu o conservadorismo; até mesmo a rejeição de uma definição doutrinária do
conservadorismo liga-se ao temor de estabelecer parâmetros norteadores
semelhantes aos desenvolvidos pelo Iluminismo. Ao mesmo tempo em que defendeu o
primado do legado histórico, Burke contrapôs o processo revolucionário francês
à história inglesa – entendida por ele como exemplar de sua concepção “conservadora”
(mudanças incrementais, respeito à história etc.).
Ora, ainda que a crítica feita por Burke naquele momento à
Revolução fosse até certo ponto justificada, o
quadro histórico inglês contra o qual ele avaliou a França e, portanto, a
partir do qual ele definiu o conservadorismo nada mais era do que pura ilusão. As instituições tão
valorizadas por Burke, conservadas após a prova do tempo – a representação baronial
no parlamento britânico, a submissão do rei inglês ao parlamento, a manutenção
da monarquia britânica, a existência da igreja anglicana, a constituição dos
partidos políticos e até mesmo a participação da sua Irlanda natal na
comunidade britânica –, tudo isso e muito mais foi resultado não de mudanças
incrementais transformadas em longas tradições históricas testadas e aprovadas
pela prova do tempo, mas, bem ao contrário, foi o resultado de rupturas dramáticas, com freqüência
violentas, na história da Inglaterra; mais do que isso: várias vezes, essas
mudanças foram o resultado de engenharia social-institucional consciente. Senão,
vejamos:
-
a representação baronial começou com a revolta
dos barões contra o poder divino do rei, em 1215;
-
o rei foi submetido ao parlamento após revoltas,
guerras civis, violências, golpes e contragolpes que encerraram em 1689 um
século tormentoso, que incluiu a decapitação de um rei e o fim temporário da
monarquia;
-
a monarquia só foi garantida em 1689 na Revolução Gloriosa porque o Commonwealth britânico (1649-1660),
governado por Cromwell, tinha sido visto como autoritário, embora os ingleses,
ou melhor, os barões ingleses de modo geral detestassem os reis que antecederam
e sucederam Cromwell, ao mesmo tempo em que esses mesmos barões decidiram
submeter de vez a coroa ao parlamento;
-
a igreja anglicana surgiu a partir de uma
violenta revolta de Henrique VIII contra a milenar
igreja católica, que incluiu a imolação dos dissidentes (como Thomas More);
-
os partidos políticos foram uma inovação completa em termos políticos,
defendida, justamente, pelo próprio Burke (BURKE, 1770);
-
a Irlanda foi anexada à Grã-Bretanha após
séculos de violências entre irlandeses e ingleses.
A bem da verdade, é necessário termos clareza de que muitas
dessas engenharias institucionais, embora conscientes, nem sempre ocorriam no
sentido de romperem os grandes laços históricos; de fato, era comum a
referência às tradições para sinceramente justificar esses rompimentos. Além
disso, deixando de lado a revolta baronial que instituiu no século XIII a Magna Charta, todas as demais alterações
ocorreram em um período de cerca de 250 anos (entre a criação da igreja
anglicana, em 1534, e a redação de Considerações
sobre a revolução em França, em 1790).
Dito isso, o que temos é que o idílico teste histórico das
instituições e tradições é pura tolice, portanto. Mas, se não fosse pouco,
também importa notar que antes (e também depois) de escrever as Considerações, Burke defendeu a justeza
da Revolução Americana (nome adotado
nos ambientes anglossaxões para a independência dos EUA), que foi um violento
processo de ruptura histórica, social e institucional (embora o próprio Burke
lamentasse a guerra revolucionária em que a Inglaterra e os futuros Estados
Unidos estivessem então envolvidos). Para coroar tudo isso, não deixam de ser
altamente irônicos – pelo menos para os conservadores atuais – os fatos de que
Burke era amigo pessoal e apoiador de pensadores iluministas (como Adam Smith),
era membro não do partido conservador inglês (Tory), mas do partido liberal (“progressista” – Whig), que ele era defensor da
tolerância religiosa e crítico da escravidão.
Se o pano de fundo a partir do qual Burke definiu o
conservadorismo é pura ilusão, isto é, reconstrução histórica fantasiosa, o
fato é que, como Augusto Comte (1929, v. III; 1972) observava, desde o final da
Idade Média, o conjunto do Ocidente vive um processo revolucionário, em que a
antiga ordem católico-feudal tem que ser e é paulatinamente destruída, mas em que, ao mesmo tempo, a
nova ordem demora para constituir-se e firmar-se. Todos os acontecimentos
históricos indicados nos parágrafos acima pertencem a esse grande movimento
revolucionário ocidental, cujo clímax foi, precisamente, a Revolução Francesa,
devido ao descompasso entre os dois movimentos (rapidez da destruição com
resistência conservadora; demora da constituição de instituições substitutivas,
baseadas em elementos dissolventes). Mas, o que expusemos até agora corresponde
apenas ao aspecto destruidor; entre muitos outros elementos, o aspecto
construtivo do movimento moderno corresponde, para o que nos interessa aqui, à constituição da ciência moderna. É claro
que essa constituição não se dá no vazio nem de maneira isolada; entretanto,
não podemos deter-nos nesses vários outros elementos; também não nos interessa
examinar cada uma das ciências em particular nem as inúmeras disputas travadas
em seus interiores e com as instituições que as cercavam, nem, por fim, não nos
interessa abordarmos a epistemologia das ciências.
O que nos interessa da ciência é algo mais específico e ao mesmo mais global; são
os aspectos ligados à sua poderosa crítica às crenças teológicas; a
possibilidade de ação humana consciente e racional sobre a natureza; por fim,
mas não menos importante, a constituição da Sociologia.
4. Ocidente e ciência moderna
como não imobilistas
Comecemos pela parte destruidora: o poder dissolvente da
ciência sobre a teologia não é ignorado por ninguém; a famosa distinção sofístico-metafísica
entre “razão” e “fé” corresponde justamente à incapacidade crescente de a
teologia explicar o mundo, acossada de maneira inapelável pela concomitante
capacidade da ciência em fazê-lo com clareza, eficiência e estreita relação com
a realidade (empírica) (cf. COMTE, 1972). Não se trata aqui de problemas
abstratos ou de detalhistas reflexões epistemológicas, mas acima de tudo da
dissolução das crenças, das tradições e das instituições baseadas na teologia: grosso modo, a maior parte das
instituições medievais, que se presume respeitadas pelo “conservadorismo”.
De maneira complementar ao poder dissolvente da ciência em
relação às interpretações teológicas da realidade, a ciência descortina, ou
melhor, permite uma enorme possibilidade de intervenção humana consciente e
racional, o que, por seu turno, põe por terra, de maneira decisiva, aquele
comportamento próprio às sociedades tradicionais que denominei antes de “automático”,
isto é, aquele comportamento repetitivo e realizado às cegas. Buscando ao mesmo
tempo explicar e prever, o conhecimento científico permite ao ser humano passar a
agir de modo cada vez mais consciente do que pode e não pode fazer, dominando
os resultados de suas ações. De
posse do conhecimento científico, deixamos de agir de determinada maneira
apenas porque nossos antepassados agiam dessa forma e passamos a examinar se
essa forma de agir é correta, é boa, é eficiente; os parâmetros morais deixam
de ser as crenças herdadas do passado apenas porque foram herdadas do passado e
porque apontam para uma suposta outra vida (caracterizada pela punição ou pela
recompensa eterna) e passam a seguir parâmetros imanentes, como o benefício
coletivo, o estímulo ao altruísmo, o combate à violência, o combate à miséria
etc. Vale notar que, por mais que ainda existam crenças que resistem ao poder
dissolvente da ciência e ao crescimento do humanismo moral, o fato é que mesmo
essas crenças sofrem uma constante e crescente pressão pelo seu término e por
sua substituição pelo humanismo. Não podemos deixar de notar que a própria
ciência foi estimulada por muitas tradições e instituições tradicionais ao
longo dos séculos; por exemplo, nos estertores do movimento progressista da
Igreja Católica e seguindo justamente essas tradições, o padre polonês Nicolau Copérnico foi o autor moderno da teoria
heliocêntrica (cf. REPCHECK, 2011), com seu bem conhecido efeito devastador
sobre a crença bíblica de que o mundo foi criado pela divindade e que,
portanto, o homem e a Terra são o centro do universo (cf. COMTE, 1972).
O terceiro aspecto relativo à ciência que tem interesse para
a discussão sobre o conservadorismo refere-se à fundação da Sociologia. Esse
acontecimento, no início do século XIX – não por acaso, após a Revolução
Francesa –, continua, consolida e aperfeiçoa os processos intelectuais e
sociais assinalados acima para a ciências. A Sociologia, todavia, contribui
pelo menos com dois elementos fundamentais para essa marcha: por um lado, ela
afirma com clareza a noção de progresso, isto é, a noção de que a história
humana não é caminho às cegas nem rota cíclica, mas uma caminhada – longa, com
muitas curvas, desvios, pedras e buracos, não há dúvida – com uma direção
determinada; essa caminhada pode ser acelerada ou retardada, mas, enfim, é uma
rota que pode ser e é cada vez mais seguida de maneira consciente, racional e
intencional, em direção à paz universal, às liberdades de pensamento e de
expressão, às concepções positivas. Por outro lado, a Sociologia sugere que a
intervenção consciente e racional do ser humano sobre a própria história não
apenas é possível como, acima de tudo, é necessária:
mudanças e inovações institucionais são freqüentes, com os mais variados
objetivos, desde regular a atividade econômica (por exemplo, com a fixação de
taxas de juros) até garantir a isonomia jurídica, passando pela proibição da
escravidão, o respeito aos trabalhadores, a proibição da violência contra as
mulheres e muito mais... não podemos deixar de mencionar a constituição do
aparato do Estado de bem-estar social, que corresponde, justamente, a uma forma
de intervenção prática na realidade social, a partir de estudos e concepções
propriamente sociológicos, embora com preocupações políticas. Essas duas
contribuições específicas da Sociologia têm como contrapartida a superação, a
extinção e/ou, pelo menos, a desvalorização de um sem-número de tradições e
instituições herdadas historicamente; para citar apenas algumas bastante
evidentes, a escravidão, as guerras de conquista, o homem como dono da esposa e
dos filhos, o ser humano como inerente e tão-somente egoísta. Mas podemos ir
muito além: as vacinas, as técnicas pedagógicas, os procedimentos
psicoterapêuticos, a biotecnologia, os fármacos específicos, as fontes
renováveis de energia... todas essas formas de intervenção humana na realidade,
sempre mediadas pela moral, ao mesmo tempo que correspondem à ampliação da capacidade
humana de definir os seus próprios destinos, exigem que se deixe para trás os
hábitos e os valores puramente tradicionais, ou melhor, os hábitos e os valores
mantidos por mero automatismo. Na verdade, bem vistas as coisas, mesmo os
valores “tradicionais” têm que ser afirmados atualmente com enormes clareza e
autoconsciência, em um processo racional de escolha e de justificação que é
totalmente tributário da revolução científica que comentamos aqui.
Diversas manifestações intelectuais chamadas atualmente de “conservadoras”
mas que, no fundo, são “só” e assustadoramente irracionais e antimodernas
correspondem, portanto, não a manutenções contemporâneas de valores e
concepções conservadoras, mas, em um sentido bem diverso, a gritos desesperados
de visões de mundo que estão fadadas a desaparecer – e que, em certos círculos,
têm a consciência contraditória de que devem
desaparecer: assim é o negacionismo atual, que afirma coisas moral e faticamente
despropositadas mas que encontram guarida apenas em termos “tradicionais”, como
a Terra plana, a ineficácia das vacinas, as vacinas com possibilidade de
transmutar-nos em jacarés, a irrealidade do aquecimento global e por aí vai.
Mais que esquisitices defendidas por políticos retrógrados e/ou por empresas que
desprezam o bem-estar humano e a preservação do ambiente, essas concepções são
mantidas por pensadores que rejeitam em bloco, na totalidade, a civilização
moderna e o legado do Iluminismo e desejam, em contrapartida, a restauração de
uma idílica mas há muitíssimo inexistente “época de ouro” das tradições: esse é
pensamento de fundo dos olavistas no Brasil, dos trumpistas nos EUA etc..
5. A natureza humana encontra o conservadorismo
Notamos antes que os conservadores pressupõem que as
instituições que sobrevivem ao teste do tempo são boas porque correspondem às
características da natureza humana. Já vimos que essa concepção é
essencialmente imobilista; embora ela afirme valorizar a história, ela acaba
sendo anti-histórica; além disso, ela tem como conseqüência a idéia de que as
mudanças operadas consciente e racionalmente nas instituições não correspondem
à natureza humana. Para usar uma metáfora marinha, enquanto a natureza humana
seriam as correntes submersas, as mudanças seriam apenas as ondas superficiais.
Essa concepção tem o evidente mérito de considerar que o ser
humano é histórico, ou seja, que é o resultado da acumulação paulatina dos
esforços de geração após geração. Entretanto, se a história deve ser
valorizada, ela deve ser valorizada pelas várias lições que ela pode ensinar,
quer gostemos, quer não gostemos dessas lições; em particular, a história
ensina que... as coisas mudam. Novamente a imagem marinha: se tudo muda e se as
mudanças ocorrem o tempo inteiro, podemos considerar que nada muda (ou, talvez,
que nada deva mudar); daí a mudança do foco das ondas superficiais para as
correntes submersas, da agitação constante e sem sentido (aparente) para a
calmaria e permanência das profundezas. Ora, a Sociologia reconhece ambas as
possibilidades, mas percebe que as tendências profundas conduzem as agitações
superficiais; que as correntes profundas não são estáticas, mas que se dirigem
para diferentes lados e que se encontram com outras correntes, modificando-se à
medida que percorrem seus caminhos; que, às vezes, intensas agitações
superficiais (no caso de tempestades) podem modificar mais ou menos os trajetos
submersos; que a água das correntes profundas e das agitações superficiais é a mesma;
que as correntes e as agitações resultam em outros elementos (a vida marinha),
que vão modificando aos poucos essas mesmas correntes; que é possível alterar de
maneira mais drástica muitas das correntes por meio de barragens e canais.
O que podemos concluir da digressão sobre a imagem marinha a
respeito da natureza humana entendida pelos conservadores? Talvez o seguinte:
para os conservadores, assim como a história é imóvel, a natureza humana para
eles resulta em apenas duas possibilidades, agitação constante mas superficial
e calmaria durável e constante; o movimento, quando existe, é apenas o
superficial – e que, como superficial, pode e deve ser desconsiderado no
cômputo geral das coisas. Entretanto, não há motivo para considerar que a
natureza humana é estática; essa concepção só faz sentido de verdade quando
temos pouca história atrás de nós (como era o caso dos antigos, isto é, dos
gregos e dos romanos) (cf. BURY, 1920; COMTE, 1929) e/ou quando queremos que o
mundo fique parado; mas se tivermos uma longa história e percebermos que o
movimento integra de pleno direito a existência humana, a natureza humana será
entendida de modo dinâmico.
Os conservadores, portanto, escolhem o que querem apoiar, no sentido de que decidem ignorar
aspectos que lhes são desagradáveis. Eles escolhem ignorar as mudanças sociais
que o espetáculo histórico, muito mais por meio da Sociologia que da própria
História, oferece; analogamente, eles escolhem uma concepção estática da
natureza humana, deixando de lado todas as evidências em favor da concepção
dinâmica. Essas escolhas incoerentes ocorrem desde a fundação do
conservadorismo pela pena de Edmund Burke, na medida em que esse irlandês
escolheu deixar de lado em sua definição a Revolução
Americana como revolução, a revolta
baronial contra o rei como revolta, as guerras
civis inglesas com guerras, a Revolução
Gloriosa como revolução e muito mais; em suma, ele escolheu entender a história
inglesa moderna como se fosse a história das antigas dinastias egípcias ou
chinesas, ou seja, como grandes imobilismos temporais (cf. LAFFITTE, 1861;
1928). Os conservadores atuais igualmente fazem escolhas desse tipo, à la carte, adotando o que lhes convém,
rejeitando também o que lhes convém e sendo vagos a respeito dos critérios para
adoções e rejeições.
Um exemplo banal é a total incoerência a respeito da aceitação de trechos
bíblicos: por um lado, são vigorosamente aceitos por muitos conservadores trechos
que, supostamente, condenam a homossexualidade; mas, por outro lado, são
ignorados pela virtual totalidade de conservadores os trechos que condenam ao
apedrejamento as mulheres que não se casarem virgens: se é para aceitar a Bíblia como a palavra da divindade, ela
deve ser aceita literalmente e em sua totalidade; mesmo que critérios heterodoxos
sejam adotados na interpretação, de qualquer maneira é necessário adotar-se
parâmetros homogêneos e consistentes – o que está claro que não ocorre nos
exemplos da homossexualidade e do apedrejamento de não virgens.
Outro exemplo em que os conservadores são ambíguos, ou
confusos, ou contraditórios, ao escolherem à
la carte as suas tradições: a rejeição da escravidão. Como sabemos, no
Ocidente moderno, ela desgraçadamente vigeu por mais de 300 anos; esse prazo –
três séculos – deveria ser suficiente para garantir-lhe a aprovação no teste do
tempo, mas, no caso do Brasil, quando ela foi abolida de uma vez, de verdade
ninguém resistiu à mudança.
Embora durante a monarquia – que, aliás, fundou e manteve-se enquanto houve
escravidão no Brasil – houvesse conservadores que defendiam a escravidão (como
José de Alencar (2008)), não vemos nenhum conservador de hoje lamentando, no
Brasil, a mudança não incremental que
foi o fim do trabalho servil no país.
Outro exemplo: a despeito do cinismo envolvendo o suposto “tratamento precoce”
contra a covid-19, não vemos nenhum dos autodenominados conservadores
defendendo de verdade tratamentos tradicionais, como rezas, a colocação de
pedras aquecidas na testa, o consumo de alface ou coisas assim: todos fazem
questão de usar o mais atual, o mais moderno, o mais eficiente tratamento
científico, mesmo que seja na forma enganosa do emprego da hidroxicloroquina
(supostamente justificada com base em pesquisas científicas).
Vale a pena repetir: o suposto respeito à historicidade,
proclamado pelos conservadores, é apenas meio
respeito; na verdade, é apenas um apego a algumas instituições e práticas,
escolhidas segundo suas conveniências políticas, econômicas, filosóficas e por
vezes até estéticas.
6. Um conservadorismo progressista
Em suma, diferentemente do que propõem os conservadores,
atuais ou não, a fórmula “respeito às instituições que passaram pelo teste do
tempo”, amparada pela concepção estática da natureza humana e contrária ao “progressivismo”,
é inadequada e insuficiente em termos políticos, mas, de modo mais central para
o presente artigo, ela é ruim para a própria concepção “conservadora”.
Um verdadeiro respeito às experiências históricas, isto é,
àquilo que pode, de fato, ter passado no teste da resiliência histórica, ao
mesmo tempo que aceitando as mudanças exigidas pela própria experiência
histórica e pelas necessidades advindas da vida em sociedade – mudanças
incrementais ou não –, pode ser sumariada em uma outra fórmula, muito superior
à proposta por Burke e, talvez não por acaso, proveniente do lado que o
irlandês criticava: é o “só se destrói o que se substitui”, criada pelo líder
revolucionário Georges Danton, adotada por Augusto Comte e empregada pelos
positivistas desde meados do século XIX (cf. TRINDADE, 2007). Este líder e
patriota, que no final da vida pôs-se contra o rousseauniano Robespierre, teve
a memória louvada por Augusto Comte como o representante da escola construtiva
de Diderot na Revolução Francesa (cf. ROBINET, 1865; COMTE, 1899); a sua fórmula
afirma ao mesmo tempo a necessidade de respeitarmos o que já existe e de sermos
responsáveis em face das necessidades sociais e políticas; além disso, de
maneira central para os nossos propósitos, essa fórmula conjuga a conservação com as mudanças. É possível que, se em vez da
vaga fórmula proposta por Burke, fosse a fórmula dantoniana a adotada na
Inglaterra, atualmente a rainha Isabel II já não seria mais a governante daquele
país, havendo algum(a) presidente no lugar...
Para concluir estas longas anotações, é necessário lembrar
que, não por acaso, os conservadores definem-se em oposição ao progresso e aos
chamados “progressistas”. Não cabe aqui criticarmos a concepção de “progresso”
que rejeita todo o passado histórico, ou que considera que o passado é um peso
que nos oprime – como dizia Marx (2011) e que tanto a esquerda quanto liberais
(!) citam alegremente, com isso querendo afetar “criticidade” –; essa concepção
de progresso é errada do ponto de vista sociológico e desastrosa do ponto de
vista político. Em todo caso, ocorre que os conservadores, a partir de sua
concepção estática da história (e da natureza humana), rejeitam de roldão tanto
o progressivismo que nega toda historicidade quanto o progressivismo que
respeita a historicidade mas reclama mudanças; para usar a famosa fórmula
francesa, os conservadores jogam fora o bebê juntamente com a água do banho.
Se a definição do conservadorismo é vaga e tende ao
imobilismo, embora com clareza valorize a história, ou melhor, valorize uma
faceta da historicidade humana, por outro lado os “progressistas” não se saem
melhor; na verdade, tendem a definir-se de modo pior. A concepção que o comum dos
autoproclamados progressistas defende de progresso é largamente tributária da
oposição ao imobilismo tendencial dos conservadores e, por isso, não raras
vezes tende simplesmente a ser sinônima de “mudança” – qualquer mudança. Entretanto, como bem sabemos, de modo mais
específico os progressistas também são chamados de “esquerda”; nesse caso, as
referências passam a ser a valores e a concepções mais determinados: ao
marxismo e, em virtude disso, às ideias correlatas de luta de classes e de extinção
do “capitalismo”; isso dá um caráter virulentamente classista à esquerda, que,
em seu projeto de revolução mundial, afirma-se equivocamente como “universalista”.
De qualquer maneira, a tendência geral nesse movimento, como observou Norberto Bobbio
(2001) há muitos anos, é que a esquerda busca a igualdade, ao passo que, por
oposição, a direita buscaria a liberdade. No que se refere à “direita”,
parece-nos que a busca da liberdade é apenas a forma que Bobbio encontrou para
determinar uma oposição elegante mas principalmente fácil em relação à
esquerda; ainda assim, o vínculo básico entre esquerda e igualdade proposto por
Bobbio parece-nos correto.
A chamada “microssociologia” gosta de afirmar que o
característico da sua abordagem, em oposição às demais concepções sociológicas,
é o entendimento de que a vida em sociedade é “relacional”; isso é uma
pretensão arrogante desses autores, que tomam exclusivamente para si uma
concepção sociológico-filosófica fundamental. Mas, enfim, deixando de lado
essas picuinhas academicistas, o fato é que, se há um aspecto sociológico verdadeiramente
“relacional”, este é o das definições mútuas dos conservadores e dos
progressistas: uns definem-se em função dos outros, a partir e contra as
definições que cada qual dá para si mesmo. Em diversos artigos anteriores (por
ex.: LACERDA, 2014a; 2014b; 2016) insistimos em o quanto a definição que os
autoproclamados progressistas dão para si mesmos, a partir da definição que
eles dão para o progresso, é ruim; se os conservadores negam a historicidade no
sentido de mudanças, os progressistas
negam a historicidade no sentido de legado.
Ambas as definições tomadas isoladamente são ruins, ou melhor, são
insatisfatórias – embora, evidentemente, possam e devam combinar-se. A
combinação dessas definições não é a soma de cada uma das perspectivas, na
medida em que elas têm pressupostos filosóficos, sociológicos e morais
diversos: a combinação das duas perspectivas parciais necessariamente altera as
definições parciais anteriores, de tal sorte que, analogamente, as perspectivas
políticas dos conservadores e dos progressistas também deveriam mudar. Um
progresso que respeite a ordem, uma ordem que permita (isto é, que seja aberta
a e que desenvolva) o progresso: essa concepção é tão distinta filosófica e
sociologicamente dos conceitos simples subjacentes a conservadores e
progressistas quanto é diferente em termos políticos de cada um desses grupos.
Esse movimento não se trata nem de conciliação, nem de apaziguamento, nem de
justaposição; trata-se de uma nova composição, superior aos dois elementos
prévios isoladamente tomados.
Essa foi e é a proposta positivista, de Augusto Comte: como argumentamos em
Lacerda (2021), parece clara a necessidade de retomá-la – com urgência.
7. Para concluir
Para concluir, desejamos fazer algumas reflexões abertamente
contemporâneas, afastando-nos um pouco das considerações mais abstratas feitas
até aqui.
O atual movimento conservador no Brasil, a despeito da
pretendida unidade política, é muito mais uma construção linguística (a partir
do uso do rótulo “conservador”) que uma realidade fática. Ele consiste em um
estranho amálgama intelectual, político e social: há católicos (como a
professora Cláudia Helena Gomes); há tradicionalistas (como os olavistas); há
evangélicos; há “liberais” (como o Deputado Kim Kataguiri); há autoritários; há
retrógrados e monarquistas (como o Deputado Luiz P. Orleans e Bragança); há
fascistas. Na presente conjuntura,
o que os une, além do rótulo genérico, são a rejeição a um certo progressivismo
(ou melhor, a rejeição ao fantasma do “lulopetismo”) e o apoio ao Presidente da
República, apodado de conservador apenas a partir de sua histeria antipetista. Esse
estranho amálgama reúne sob o mesmo teto grupos heterogêneos, obrigando-os a
compromissos morais e políticos que não têm necessidade de ocorrer. Ao mesmo
tempo, ainda que sejam limitadas e que sejam parcialmente corretas, as
concepções do conservadorismo burkeano emprestam dignidade filosófica e
política aos demais grupos que estão agrupados no rótulo genérico do
conservadorismo; isso ocorre por vontade própria, como podemos ler com todas as
letras na defesa convicta, apresentada com uma condição bastante dúbia, que a
professora Maria Helena Gomes faz do atual Presidente da República (PROFESSORA
DA UFG EXPLICA, 2021):
Para quem vê de fora, o universo
bolsonarista pode parecer um balaio de gatos. A impressão não está de todo
incorreta. A direita é assim porque não há um conjunto de dogmas como na
esquerda. O conservadorismo é, na verdade, a negação da ideologia. Não cabe
aqui uma explicação mais detalhada, mas resumidamente posso dizer que o
conservador é alguém que vê a continuidade da experiência humana como um
caminho mais seguro, com pequenos ajustes na direção, em detrimento de um
“grande salto” para construção do “paraíso socialista”, experimentados na China
e em Cuba com seu milhões de mortos pela fome ou paredão de execução. Em
particular, como católica, meio apoio está condicionado à obediência do
presidente Bolsonaro aos valores professados pela minha Igreja. Enquanto o
presidente Bolsonaro estiver ao lado do que ensina a Igreja Católica, terá meu
apoio irrestrito.
Todavia, os elementos que reúnem os grupos “conservadores”
são cada vez mais frágeis, menos coerentes e – isso é o principal – mais
daninhos para o país: no cenário ideal, caber-lhes-ia uma reflexão profunda,
uma “autocrítica”, que lhes permitisse perceber os danos institucionais,
sociais e morais de que o Brasil cada vez mais padece. Não há dúvida de que os
elementos autoritários, fascistas, retrógrados não farão nenhuma reflexão sobre
si mesmos e suas ações, pois eles realizam agora que estão no poder exatamente
o que desejam realizar, ainda que não realizem tudo o que desejam. Tornou-se
famosa a sintomática frase dita pelo atual Presidente da República, logo após a
sua eleição em 2018 ou no início do seu governo, em 2019, segundo a qual ele que
tinha que destruir muito antes de fazer qualquer coisa positiva. Essa
afirmação, dita com a aquiescência do seu ultraliberal Ministro da Economia,
pode concordar com o perfil de autoritários, fascistas, retrógrados e mesmo
ultraliberais; entretanto, é difícil entender como é que ela coaduna-se com o
conservadorismo. Mas, mesmo assim, nutrimos um pouco de esperança e cremos
existir conservadores que, apesar das limitações de sua perspectiva filosófica,
valorizam mais as liberdades, a tolerância, o respeito mútuo, as instituições
de bem estar social, a história republicana do Brasil, do que o apoio a um
determinado Presidente da República a quem é atribuído o rótulo de
“conservador”.
Enquanto isso, de qualquer maneira, a conclusão geral a que
podemos chegar a respeito dos conservadores é o que dá título a este artigo:
eles têm alguns acertos, mas muitos erros.
Referências bibliográficas
ALENCAR, José. 2008. Cartas a favor da escravidão. São Paulo:
Hedra.
BOBBIO, Norberto. 2001. Direita e esquerda. 2ª ed. São Paulo:
Unesp.
BURAWOY, Michael. 2009. Cultivando
sociologias públicas nos terrenos nacional, regional e global. Revista de Sociologia e Política,
Curitiba, v. 17, n. 34, p. 219-230.
BURKE,
Edmund. 1770. Thoughts on the Cause of
the Present Discontents. London: J. Dodsley. Disponível em: https://archive.org/details/thoughtsoncause00burkgoog/page/n16/mode/2up.
Acesso em: 1.6.2021.
BURKE, Edmund. 1997. Considerações sobre a revolução em França.
2ª ed. Brasília: UnB.
BURY, John
B. 1920. The Idea of Progress. An
Inquiry into Its Origin and Growth. London: MacMillan.
COMTE, Augusto. 1899. Apelo aos conservadores. Rio de Janeiro:
Igreja Positivista do Brasil.
COMTE, Augusto. 1929.
Système de politique positive. 4e
ed. Paris: Société Positiviste.
COMTE, Augusto. 1972. Opúsculos de filosofia social. São
Paulo: USP.
DAVIDSON, James W. 2016. Uma breve história dos Estados Unidos.
Porto Alegre: L&PM.
DRIVER, Stepanhie S. 2006. A Declaração de Independência dos Estados
Unidos. Rio de Janeiro: Zahar.
Escravidão é “aspecto da natureza humana”,
diz deputado descendente da família imperial. 2019. Congresso em Foco, Brasília, 14.5. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/direitos-humanos/escravidao-e-aspecto-da-natureza-humana-diz-deputado-descendente-da-familia-imperial-declaracao-causa-protestos/.
Acesso em: 1.6.2021.
GRANGE, Juliette. 2008.
Expliquer et comprendre de Comte à Dilthey. In:
Zaccaï-Reyners, N. (ed.). Explication-compréhension. Bruxelles:
Université de Bruxelles.
HARRISON,
Frederic. 1888. Oliver Cromwell.
London: MacMillan.
HARRISON,
Frederic. 1908. Realities and Ideals.
London: MacMillan.
HILL, Christopher. 1988. O eleito de deus. São Paulo: Companhia
das Letras.
HILL, Christopher. 2012. O século das revoluções: 1603-1714. São
Paulo: Unesp.
JUDT, Tony. 2010. Reflexões sobre um século esquecido. Rio de Janeiro: Objetiva.
KIMBALL, Roger. 2010. Radicais nas universidades. São Paulo:
Peixoto Neto.
LACERDA, Gustavo B. 2009. Augusto Comte
e o “positivismo” redescobertos. Revista
de Sociologia e Política, Curitiba, v. 17, n. 34, p. 319-343.
LACERDA, Gustavo B. 2014a. Necessidade do “ordem e progresso”;
superioridade sobre “direita-esquerda”, “situação-oposição”. Disponível em:
https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2014/10/necessidade-do-ordem-e-progresso.html.
Acesso em: 30.5.2021.
LACERDA, Gustavo B. 2014b. “Ordem” e “progresso” como categorias
sociopolíticas legítimas. Disponível em: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2014/12/ordem-e-progresso-como-categorias.html.
Acesso em: 30.5.2021.
LACERDA, Gustavo B. 2016. Brasil atual: má concepção de ordem
impede o progresso. Disponível em: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2016/10/brasil-atual-ma-concepcao-de-ordem.html.
Acesso em: 30.5.2021.
LACERDA, Gustavo B. 2018a.
Conservadores à deriva no Brasil. Gazeta
do Povo, Curitiba, 1.4. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/conservadores-a-deriva-no-brasil-d2ab296olgpnt4rjnbl26jsxb/.
Acesso em: 30.5.2021.
LACERDA, Gustavo B. 2018b. Comtianas brasileiras. Curitiba: Appris.
LACERDA, Gustavo B. 2019a. Os conservadores
brasileiros rumo ao desastre. Gazeta do
Povo, Curitiba, 24.10. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/os-conservadores-brasileiros-rumo-ao-desastre/.
Acesso em: 30.5.2021.
LACERDA, Gustavo B. 2019b. Quais
tradições os conservadores querem conservar no Brasil hoje? Gazeta do Povo, Curitiba, 28.11.
Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/quais-tradicoes-os-conservadores-querem-conservar-no-brasil-hoje/.
Acesso em: 30.5.2021.
LACERDA, Gustavo B. 2020a. Comparação entre Positivismo, direitas e
esquerdas. Disponível em: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2020/02/comparacao-entre-positivismo-direitas-e.html.
Acesso em: 30.5.2021.
LACERDA, Gustavo B. 2020b. Positivismo
como cortina de fumaça para os erros da direita brasileira. Monitor Mercantil, Rio de Janeiro, 22.5.
Disponível em: https://monitormercantil.com.br/positivismo-como-cortina-de-fumaca-para-os-erros-da-direita-brasileira/.
Acesso em: 30.5.2021.
LACERDA, Gustavo B. 2020c. Mais que
crise política, o Brasil vive uma crise moral. Insight Inteligência, Rio de Janeiro, n. 89, p. 76-89.
LACERDA, Gustavo B. 2021. Positivismo, uma oportunidade desperdiçada
no Brasil. Disponível em: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2021/05/positivismo-uma-oportunidade.html.
Acesso em: 30.5.2021.
LAFFITTE, Pierre.
1861. Considérations générales sur
l’ensemble de la civilisation chinoise et sur les relations de l’Occident avec
la Chine. Paris: Dunod.
LAFFITTE, Pierre. 1880. La
Révolution Française
(1789-1815). Paris: Leroux.
LAFFITTE, Pierre.
1928. Les Grands types de l’Humanité.
V. I, fasc. II. Rio de Janeiro: Artes Gráficas.
LILLA, Mark. 2018. O progressista de ontem e o do amanhã. São Paulo: Companhia das
Letras.
LOOMIS, Stanley. 1965. Paris sob o Terror: 1793-1794. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira.
LYNCH, Christian E. 2020. “Nada de novo sob o
Sol”: teoria e prática do neoliberalismo brasileiro. Insight Inteligência, Rio de Janeiro, n. 91, p. 16-34.
MARSHALL,
Theodore H. 1967. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar.
MARX, Karl. 2011. O 18 brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo.
MCALLISTER, Ted V. 2017. Revolta contra a modernidade. São Paulo:
É Realizações.
MIGNET, François-Auguste. 1899. História da Revolução Franceza. 2 v. São
Paulo: São Paulo.
Professora da UFG explica apoio a Bolsonaro
e critica Gabriela Rodart e Major Vitor Hugo. 2021. Jornal Opção, Goiânia, 15.5. Disponível em: https://www.jornalopcao.com.br/bastidores/professora-da-ufg-explica-apoio-a-bolsonaro-e-critica-gabriela-rodart-e-major-vitor-hugo-329106/.
Acesso em: 30.5.2021.
REPCHECK, Jack. 2011. O segredo de Copérnico. Rio de Janeiro:
Record.
RISÉRIO, Antônio. 2019. Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia
fascista da esquerda identitária. Rio de Janeiro: Topbooks.
ROBINET,
Jean-François E. 1865. Danton.
Mémoire sur sa vie privée. Paris: Chamerot.
ROSS, Ian S. 1999. Adam Smith, uma biografia. Rio de Janeiro: Record.
ROSSI, Paolo. 2010. A ciência e a filosofia dos modernos.
São Paulo: Unesp.
SEDGWICK, Mark. 2021. Contra o mundo moderno. São Paulo:
Âyiné.
STERNHELL,
Zeev. 2010. The Anti-Enlightenment
Tradition. New Haven: Yale University.
TEITELBAUM, Benjamin R. 2020. Guerra pela eternidade. Campinas:
Unicamp.
TEIXEIRA MENDES, Raimundo. 1898. As últimas concepções de Augusto Comte.
Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil.
TRINDADE, Hélgio (org.). 2007. O Positivismo – teoria e prática. 3ª ed.
Porto Alegre: UFRGS.
WOLIN,
Richard. 2006. The Seduction of Unreason.
New Jersey: Princeton University.
Worden, B. 2002.
Republicanism, Regicide and Republic: The English Experience. In: van
Gelderen, Martin; Skinner,
Quentin (eds.). Republicanism, A Shared
European Heritage. Cambridge (UK): Cambridge University.
ZANINI, Fábio. 2021. Em debate, Kim
Kataguiri e Coppolla mostram direita dividida por Bolsonaro. Blog Saída pela Direita, São Paulo,
31.5. Disponível em: https://saidapeladireita.blogfolha.uol.com.br/2021/05/31/em-debate-kim-kataguiri-e-coppolla-mostram-direita-dividida-por-bolsonaro/.
Acesso em: 1.6.2021.
Em Lacerda (2020c) fizemos uma análise do apoio fascista ao atual governo
federal.