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14 maio 2017

"Vatileaks" e a violenta corrupção financeira no Vaticano

A entrevista abaixo foi recentemente publicada na revista portuguesa Visão; ela indica o fato escandaloso de que o Vaticano, isto é, a Cúria da Igreja Católica, embolsa por baixo 80% dos recursos arrecadados para auxílio aos pobres. Além disso, a entrevista também indica que a canonização é um negócio como qualquer outro e no qual é necessário fazer pesados investimentos financeiros.

Chama a atenção o fato de que a sede mundial de uma igreja tenha leis soberanas próprias, um governo teocrático, e que, por meio de acordos internacionais, um outro Estado soberano aplique as decisões jurídicas dessa igreja. Tal situação verdadeiramente anômala existe desde 1929, quando o regime fascista de B. Mussolini celebrou o Tratado de Latrão, reconhecendo à Igreja Católica personalidade jurídica de Estado soberano - mesmo que o Vaticano seja, no final das contas, apenas um pequeno bairro na cidade de Roma.

O livro já recebeu uma tradução brasileira, publicada em 2016 - pode ser adquirida aqui. É de questionar-se, de qualquer maneira, se ele ensejará investigações aprofundadas sobre a riqueza da Igreja Católica no Brasil, além de maiores investigações sobre as igrejas evangélicas também aqui operantes.

O original da entrevista encontra-se disponível aqui.

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"O meu livro é um mapa da corrupção no Vaticano. Todo o dinheiro recolhido fica para os cardeais, em vez de ir para os pobres"
MUNDO 09.05.2016 às 9h47






Entrevista a Emiliano Fittipaldi, o jornalista que passou um ano a investigar a gestão das finanças das instituições que gerem os bens da Igreja Católica. A investigação resultou no livro Avareza, e a fuga de informação que relata já mereceu o nome de Vatileaks

Isabel Nery
ISABEL NERY
Jornalista

O dinheiro do Vaticano entra sobretudo pela mão dos fiéis, que esperam vê-lo aplicado em obras de caridade. Mas, afinal, está investido em ações como as da petrolífera Exxon, e bens imobiliários. Depois de receber uma lista de propriedades da Igreja em Londres, Paris e Roma, no valor de 4 mil milhões de euros, o jornalista da revista italiana L'Espresso passou um ano a investigar a gestão das finanças das instituições que gerem os bens da Igreja Católica. Fittipaldi descobriu que as esmolas são transformadas em fundos e que as beatificações são verdadeiras máquinas de fazer dinheiro. Chegou a dizer-se que a fuga de informação teria vindo de elementos próximos de Francisco, mas o Papa também já criticou publicamente o livro. Avareza é agora lançado em Portugal, pela editora Saída de Emergência, numa altura em que o autor, de 41 anos, enfrenta um processo, acusado do crime de “subtração e divulgação de notícias e documentos reservados”, previsto na lei do Estado do Vaticano. Se perder, poderá ser condenado a um máximo de 8 anos de prisão. Por isso, confessa-se “cansado”. Pela reação negativa de Francisco, “surpreendido”. As revelações, e fuga de informação inscrita em documentos sigilosos, já mereceram o nome de Vatileaks.

Quais foram as descobertas mais chocantes desta investigação jornalística?
Em 2012, as esmolas recolhidas para apoiar os pobres somaram 53,2 milhões, mas só 11 milhões foram para ajudar os mais desfavorecidos. A Cúria romana ficou com 35,7 milhões. Há cardeais a viverem em luxo. No meu livro digo o nome e apelido de cada um. Descobri que há cardeais a viver em Roma em apartamentos de 400 metros quadrados. E não usam esse espaço nem para pobres nem para refugiados.

Como é que usam o dinheiro das esmolas?
Descobri que Tarcisio Bertone [ex-secretário de Estado] usou 200 mil euros de um hospital pediátrico para fazer restauros na sua casa. Um cardeal pedófilo pagava 50 mil euros por mês à secretária.

De onde vinha todo esse dinheiro?
Um dos negócios incríveis que denuncio no meu livro é o das beatificações. O caminho mais rápido para chegar a santo é pagar a um bom advogado para tratar do processo. Pela beatificação da espanhola Francisca Ana de las Dolores cobraram-se 482 693 euros.

Quer dizer que nos países pobres não pode haver santos?
Não. Em África ou nas Filipinas não há dinheiro para isso. Mas o Banco do Vaticano ganhou 100 milhões de euros. Francisco quis fechá-lo e depois mudou de ideias. Todo o dinheiro devia ir para os pobres. Mas, em dois anos, o fundo do Banco do Vaticano só entregou 17 mil euros, embora tenha amealhado cem milhões. Daí o título do meu livro, Avareza.

O Vaticano é avarento?
O Vaticano comporta-se como uma offshore. Nem sequer dá toda a informação à polícia sobre quem tem contas no seu banco. Por vezes, o Vaticano decide como um banco e não como uma Igreja. Francisco quer mais transparência para o futuro, mas não quer que se descubra o passado. Quer limpar a Igreja por dentro sem que ninguém saiba. Mas eu não trabalho para o Vaticano nem para o Papa. Sou jornalista.

Vive num país que alberga o Estado do Vaticano. Como conseguiu escrever sobre um tema tão sensível?
Em Itália é muito difícil escrever sobre isto. Temos o Vaticano dentro do nosso país. E o Vaticano tem uma relação muito estreita com a televisão, com muito poder sobre ela. Mas o tema é bom para quem faz jornalismo de investigação, como eu.

Conseguiu publicar artigos e livros sobre o tema, apesar de tudo.
Sou um jornalista sortudo: tenho toda a liberdade no meu jornal. Em Itália é muito difícil escrever sobre corrupção na Igreja Católica. A comunicação social italiana está em 77º lugar no índice de liberdade de imprensa. O Governo é muito próximo da Igreja e não diz nada sobre este escândalo. A informação que publico está a ser revelada pela primeira vez na história.

Ficou isolado com a publicação do livro?
Os meus colegas dizem que roubei os documentos, uma rádio católica sugeriu que me enforcasse. Mas tenho todo o apoio do meu editor. E já muita gente leu o meu livro. Fico feliz com isso. Porque o que um jornalista mais quer é ser lido. Comecei há 4 anos a escrever sobre o tema para a minha revista.

Quem lhe passou a informação queria prejudicar o Papa ou ajudá-lo?
As minhas fontes são seculares e do Vaticano. Não se conhecem. Algumas gostam do Papa e outras não. Não sei se querem ajudar ou destruir o Papa. Mas os jornalistas não têm de perguntar “porquê” às fontes. As motivações da fonte não são um problema nosso. Nós só temos de fazer o nosso trabalho.

Que leitura faz do facto de aparecerem estes documentos na altura em que o Papa é Francisco, visto como moderado e defensor dos mais fracos?
É estranho.

Mas, lendo o seu livro, parece que é mais uma questão de imagem do que de conteúdo.
A propaganda do Vaticano é muito forte. Francisco é um comunicador perfeito. Escrevemos que este Papa mudou tudo em apenas 3 anos no Vaticano. Mas não é verdade. Não é possível. O Papa é o homem mais poderoso do mundo. O grande escândalo é em Roma. Todos sabem que a Igreja Católica tem problemas com as finanças.

Por haver demasiados vícios e demasiado antigos na Igreja?
O Vaticano é um Estado rico. Mas todo o dinheiro recolhido fica no Vaticano, para os cardeais, em vez de ir para os pobres. Isso é incrível! É aí que está o problema. Mas fico feliz por estar a denunciar. Depois do meu livro, Francisco mudou o sistema para haver mais controlo.

Está desiludido com Francisco?
Francisco e o Vaticano estão muito zangados comigo porque destruí essa propaganda. Ele queria reformar, mas não teve tempo para isso. E agora está sozinho. Tem muitos inimigos.

O Papa corre mais perigo de vida por ter querido reformar a Igreja?
Não me parece. Mas, na Cúria romana, muitos odeiam-no.

Tendo em conta tudo o que denuncia, pode ser bom sinal, ser odiado pela Cúria?
Para um papa que quer mudar a Igreja, sim. Mas não sei se será capaz. Espero que ele ganhe esta batalha, mas não tenho a certeza. O meu livro não é contra a fé, mas contra a corrupção na Igreja. Os padres devem rezar, não andar em casa dos políticos. Em Itália, a Igreja tem negócios, incluindo na área da saúde, casas e palácios. A ingerência da Igreja em Itália é muito forte e Francisco quis mudar isso.

A popularidade ajuda-o ou prejudica-o?
Ser tão popular é muito importante. Pode fazer algumas reformas por ter o povo com ele. Mas cometeu erros.

Quais?
Quando mudou os homens próximos de Benedict [Bento XVI, anterior Papa] deu a sua confiança a Pell [responsável pelas finanças do Vaticano]. Foi um grande erro de Francisco. Pell trabalha dentro do banco do Vaticano e não quer transparência. Francisco viveu muitos anos em Buenos Aires. Talvez não soubesse bem o que se passava no Vaticano.

Como reagiu àquilo que revelou sobre o Vaticano no seu livro?
A reação deixou-me muito surpreso. Ele é um rei no Vaticano e eu tenho um problema com a justiça dele. O Papa está muito zangado com a edição do meu texto. Levou-me a tribunal. Depois da publicação disse em público, na Praça São Pedro, em Roma, dirigindo-se à multidão, que o meu livro era mau para a Igreja.

Porquê?
Não percebo porque é um problema para a reforma que Francisco quer fazer. O meu livro é um mapa da corrupção no Vaticano! Acho que o livro poderá ajudar no futuro.

Preocupa-o que os radicais islâmicos usem investigações como esta para denegrir a Igreja Católica e ganharem terreno?
Nunca me tinham perguntado isso… Não tenho o poder de mudar o mundo. Não sei se pode destruir a fé na Igreja. Mas isso não é um problema meu. Sou jornalista. Toda a informação que divulgo é verdadeira.

Ninguém o acusa de publicar informações falsas ou erradas?
Não. Nem uma linha do livro foi desmentida.

Nos processos que tem contra si, de que o acusam, então?
Acusam-me de ter revelado informação confidencial. Dizem que os meus documentos são privados e pessoais. Mas ninguém diz que publiquei mentiras. Se digo a verdade, não devo ter problemas com a justiça.

Mas está a ter.
Sim. A sentença deverá ser conhecida em meados de maio. Mas fiz outro trabalho jornalístico sobre Bertone e estou com problemas porque um tribunal de Roma diz que o difamei. Nos próximos tempos, vou passar mais tempo em tribunal do que no jornal.

Que pena poderão aplicar-lhe?
Uma lei do Vaticano de há 3 anos prevê penas para quem publique informações confidenciais como as que divulgo no livro.

A possível ilegalidade surge à luz da lei do Vaticano?
O meu crime é ser jornalista. O Vaticano não tem imprensa livre. Rege-se por leis próprias, que não são as mesmas das italianas. Mas há um acordo entre Itália e o Vaticano, e quem cometer um crime no Vaticano pode ter problemas com a lei italiana.

Que problemas?
Podem aplicar-me uma pena de 5 a 8 anos. Mas será difícil porque Itália tem lei de liberdade de imprensa.

Sendo pouco provável a condenação judicial, que outras consequências lhe trouxe a publicação deste livro sobre os escândalos financeiros do Vaticano?
Tentaram destruir a minha reputação. E a reputação é o mais importante para um jornalista. Fui ao Vaticano para me defender deste ataque. Eu não ameacei ninguém. Para o Vaticano eu sou culpado. Mas terão um problema político se me acusarem.

O seu livro mudará alguma coisa?
Às vezes podemos mudar alguma coisa. Denunciei 10% do escândalo económico dentro do Vaticano. Sei de cardeais que têm milhões de euros no banco do Vaticano. Se outros quiserem investigar, terão muito sobre o que escrever.

Quer dizer que não continuará a escrever sobre o tema?
Estou muito cansado. Fui muito atacado em Itália. Dei entrevistas a jornais dos EUA, Espanha e Portugal. Mas, em Itália, nem um jornal quis ouvir as minhas denúncias.

É Católico?

Sou agnóstico.

13 dezembro 2009

Chico Alencar: A corrupção não é culpa do "sistema"

Caros amigos:

Vejam o discurso abaixo do Dep. Chico Alencar, enviado por um amigo do Rio de Janeiro. O Deputado argumenta que a corrupção que vivemos não é culpa do "sistema", mas das pessoas e, acima de tudo, dos valores que permitem, aceitam ou toleram as práticas criminosas e antirrepublicanas. Além disso, o Deputado critica - coberto de razão - que não adianta pôr a responsabilidade pelas canalhices em uma abstração chamada "sistema político", que deveria ser modificada, fazendo-se abstração dos motivos pessoais e dos valores que orientam as pessoas.

Embora o Chico Alencar seja da extrema-esquerda de origem marxista, nesse discurso ele apresenta-se radicalmente positivista: afinal, para o Positivismo não faz sentido, não é razoável querer mudar as instituições antes ou no lugar da mudança dos valores. A crise que vivemos não é "institucional" , ela é ética no sentido mais profundo; o que faz uma república algo "republicano" não são as instituições, mas os valores e as práticas dos cidadãos.

Gustavo.

* * *

http://www.chicoale ncar.com. br/chico2004/ chamadas/ pronuncs/ pronunc20091203c .htm


A culpa não é só do sistema

Virou costume se dizer que todos os escândalos de corrupção acontecem por causa do sistema político e da falta de uma reforma profunda nele. Sim, o sistema político-eleitoral brasileiro, mantido intacto tanto na era FHC quanto no período lulista, instituiu uma espécie de "democracia empresarial" e de "eleições de negócios". Nós, do PSOL, repetimos sempre que os partidos são, com poucas exceções, ajuntamentos de interesses difusos para fruir das benesses do poder, viabilizando aumento de patrimônio de suas figuras mais importantes. Adesistas sempre, com programas que servem apenas para encher papel. Por isso, cada vez mais, incidem pouco ou nada no dia a dia das pessoas, anestesiadas pela despolitização galopante. A não ser quando, com suas malfeitorias reveladas, os "políticos", ancorados nos seus partidos, provocam indignação cidadã, como a que move, neste momento, os que ocupam a Câmara Legislativa do Distrito Federal, protestando contra o detrito federal que ali, e nas instâncias do Executivo, se produz. Os mandatos são meios de vida e não serviço, representação.
Todas estas distorções são amparadas pelo modelo político vigente, é verdade. As doações ocultas de campanha, que poderiam acabar na recente mudança da legislação eleitoral aqui votada, foi mantida. Mas há uma base essencial, de caráter, que também responsabiliza os indivíduos que ingressam na vida pública por seus delitos. Afirmar que tudo vem do "sistema" pode contribuir para a minimização dos crimes e para a praga alastrada da impunidade. Há aqui, sr. presidente, parlamentares que, apesar do sistema, não se deixam corromper. O "todo mundo faz" ou o "é da nossa cultura" ou mesmo o "só com Reforma Política", que eu mesmo tanto reitero, acabam sendo leniência, senão cumplicidade, com esses desvios que abalam a República, e que precisam acabar. Quem os pratica não é inocente presa de um sistema perverso: é mau caráter mesmo! Nenhum sistema político, por mais viciado que seja, obriga a pessoa a ser desonesta e dar as costas ao interesse público.
Nessa linha, transcrevo aqui a coluna de Dora Kramer, publicada hoje em vários jornais do país, e que aborda esta questão com muita propriedade:

Responsável de plantão

Quando o primeiro escândalo de corrupção do governo Luiz Inácio da Silva emergiu das imagens de Waldomiro Diniz, então braço direito do então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, extorquindo o dito empresário Carlos Augusto Ramos, também conhecido como o bicheiro Carlinhos Cachoeira, de imediato todas as vozes se levantaram em defesa de uma reforma política "profunda".
A tese por trás da proposta era a de que a culpa é do sistema político, eleitoral e partidário daninho. De lá para cá, repete-se a mesma cantilena a cada novo caso escabroso de corrupção, conferindo-se à reforma política o status de solução de plantão para todos os males.
Por esse raciocínio, o "sistema" é que seria o grande corruptor de pessoas inocentes, cujo desejo de governar para fazer o bem só se realiza ao custo da adesão à realidade nefasta fazendo política com as mãos sujas, não obstante o coração permaneça imaculado. Seria o preço a pagar.
Essa lógica sustentou o discurso de quem queria uma justificativa para apoiar a reeleição de Lula, mas não tinha coragem de dizer que estava pouco ligando para a ética. Esta servira como bandeira de oposição, mas atrapalhava a execução do projeto de poder.
Isso no caso do PT. Nos partidos que não haviam feito nenhum trato explícito com a ética na política, nem se apresentam justificativas. Muito embora também se agarrem com veemência na defesa da reforma política na hora em que a assombração transita por seus terreiros.
Depois da manifestação espontânea ao modo de Pôncio Pilatos - "as imagens não falam por si" -, orientado por sua assessoria sobre a ultrapassagem do limite do aceitável, o presidente Lula passou a considerar "deplorável" o que todo mundo viu sobre as atividades da quadrilha que atuava no governo de Brasília.
E, claro, atribuiu tudo à ausência da reforma política, acrescentando desconhecer as razões pelas quais ela não é aprovada. Levantou, porém uma suspeita: "Provavelmente porque os parlamentares seriam afetados pelas mudanças".
Para um gênio da política, Lula se mostra um tanto ingênuo. E esquecido. O primeiro enterro da reforma, ainda no primeiro mandato, ocorreu porque os partidos de sua base trocaram o arquivamento por votos a favor do projeto - fracassado - da reeleição do então presidente da Câmara, o petista João Paulo Cunha.
O funeral seguinte deu-se agora em 2009 pela conjugação de interesses dos partidos do governo e da oposição que, no lugar da reforma, aprovaram uns remendos que facilitaram sobremaneira o uso do caixa 2 e encurtaram os prazos para punições, na prática impedindo cassações de eleitos, inclusive os deputados de Brasília agora pegos com as mãos imundas na botija.
Isso quer dizer que o defeito primordial não é das regras - de fato defeituosas - é da deformação das pessoas, da permissividade geral e da impunidade de que desfrutam.

Agradeço a atenção,
Sala das Sessões, 03 de dezembro de 2009.

Chico Alencar
Deputado Federal, PSOL/RJ

09 agosto 2008

Sobre a corrupção


A corrupção não é um problema menor da prática política[1]. Embora ela atinja basicamente os meios e não os fins e, dessa forma, pareça que ela não trata de política substantiva, é importante notar que ela não é apenas uma questão de apropriação privada de recursos públicos, mas também – e talvez principalmente – ela consiste em um desvirtuamento do civismo, isto é, das preocupações com o bem público. Dessa forma, a corrupção abrange também os fins da política, na medida em que a atividade política deixa de visar à coletividade mas aos interesses particulares.
Dessa forma, há algumas considerações a fazer. A primeira é que, a partir da exposição acima, podemos dizer que (idealmente, ao menos) há graus de corrupção: o primeiro consiste nos desvios de verbas pelos agentes públicos[2], na exigência de comissões pelos agentes públicos para liberação de projetos e nos orçamentos superfaturados para enriquecimento ilícito tanto dos agentes públicos quanto dos agentes privados.
O segundo grau consiste na perda de referências para a formulação de políticas públicas. Não é fácil formular com clareza este nível, mas podemos sugerir os seus contornos: os responsáveis pela condução da política perdem a preocupação em elaborar projetos efetivos para o país, os “projetos de nação”. Nesse nível, há uma desmoralização generalizada da atividade política e falar em “civismo” ou em “patriotismo” é sinônimo de tolice ou ingenuidade. Apesar disso, não é exagerado afirmar que a falta de rumo ou os rumos desvirtuados podem resultar, entre outras coisas, no fim das liberdades públicas[3].
Isso nos leva, incidentalmente, a algumas áreas de pesquisa (e de “engenharia institucional e política”): cultura política, estudos das instituições, mecanismos internos e externos de controle do Estado; teoria política. É claro que o problema da corrupção é tanto societal quanto estatal: os agentes públicos podem corromper-se “endogenamente” (a partir da locupletação ilícita oriunda de instituições, práticas e valores próprios aos agentes públicos) ou “exogenamente” (isto é, pelas ofertas de corrupção vindas da sociedade); além disso, a corrupção ocorre porque é tolerada pelo Estado mas, principalmente, pela sociedade; por fim, a ocorrência ou a ausência de manifestações sociais de repúdio à corrupção e a existência ou inexistência de mecanismos institucionais de controle da corrupção. Há discussões específicas sobre cada um desses aspectos nas subdisciplinas específicas da Ciência Política e da Sociologia Política, mas é possível considerá-las como integrantes da teoria republicana, no âmbito da Teoria Política.
Embora, como sugerimos, a corrupção atinja a formulação das políticas públicas, ou seja, os fins, basicamente ela visa aos meios; por outro lado, ela consiste no desvio das funções públicas, que deixam de servir à coletividade e passam a servir a particulares. Ela pode institucionalizar-se em práticas correntes, mas é sempre fora ou contrária à lei (seja na forma, seja no espírito do ordenamento jurídico). Como os meios são, em certa medida, secundários em relação aos fins e como o desvio das funções públicas tem um elemento “valorativo”, isto é, envolve os valores dos agentes públicos corruptos (ou corruptores), é fácil afirmar que tratar da corrupção é discutir algo menor em termos políticos e que resvala no “moralismo” – ou seja: é fácil afirmar que o discurso anticorrupção é mero diversionismo ou hipocrisia.
Sem dúvida, é fácil usar o discurso da corrupção contra um governante ou contra um agente público a que se opõe: a posição de poder de quem ocupa cargos e funções permite, sempre, que ocorram desvios de recursos ou práticas de corrupção; dessa forma, nunca se pode afastar a possibilidade improbidade administrativa.
Também é certo que, na falta de propostas concretas, de capacidade de discussão ou de articulação política ou de alguma coisa como “credibilidade política”, afirmar que a corrupção grassa no governo ou no Estado é sempre uma estratégia possível, na medida em que ela apela para um senso de responsabilidade e de correção da “opinião pública”. Em última análise, é sempre mais fácil apelar para as emoções fáceis[4] que para o difícil exercício da racionalidade política e sociológica.
Finalmente, um político incompetente ou corrupto pode desviar a atenção pública de si mesmo para outros problemas arvorando-se em defensor da ética, da moral e dos bons costumes.
Tudo isso é verdade. Entrementes, não se pode nem minimizar a importância do problema da corrupção nem afirmar que toda denúncia contra ela ou que o tema da corrupção, por si só, é diversionismo, hipocrisia ou moralismo. Além do que vimos anteriormente – que a corrupção pode passar do nível um para o nível dois, ultrapassando os meios para afetar de maneira central os fins – , há casos em que a corrupção é utilizada como um recurso para obtenção do poder político, por meio da desestabilização de um regime político[5].
Comentamos anteriormente que, no âmbito da Teoria Política, é o republicanismo o que trata mais diretamente do tema da corrupção. A teoria republicana, contudo, não é unitária, ou seja, há diversas tradições republicanas, cada qual com suas particularidades, embora mantenham um certo parentesco entre si.
Conforme comentou Quentin Skinner (em A lberdade antes do liberalismo), podemos simplificadamente afirmar que há duas grandes tradições de teoria republicana, a neo-ateniense e a neo-romana. A primeira afirma a importância da participação popular no processo deliberativo e, de maneira mais específica, realça as virtudes cívicas dos cidadãos: interesse pelo bem comum, honestidade, abnegação, dedicação. Esse é o que alguns autores, como Hannah Arendt e o brasileiro Newton Bignotto, chamam de “republicanismo cívico”, que foi teorizado no Renascimento italiano por Maquiavel. De acordo com essa corrente, a fim de evitar a corrupção os cidadãos – aí incluídos, sem dúvida, os governantes – devem ser virtuosos.
Em sentido semelhante, Augusto Comte afirmava que o aspecto positivo da república é a subordinação da política à moral. Nos termos comtianos, a “moral” equivale a “bem público”, a “bem comum”, mas não há dúvida de que o combate à corrupção (nos dois níveis identificados) entra nesse conceito.
Na verdade, a proposta republicana comtiana permite transitarmos das idéias neo-atenienses para as neo-romanas. Assim, há uma outra vertente teórica que surge dos escritos maquiavelianos; embora não seja propriamente republicana, não é totalmente descabido incluí-la na família dos republicanismos: é a linha que surge (ou continua) com John McCormick. Inspirado nos livros históricos de Maquiavel, McCormick afirma que uma das melhores e mais eficazes – se não a melhor e mais eficaz – formas de controlar a corrupção é por meio do contínuo escrutínio público dos “grandes” (ou seja, dos governantes e dos ricos) pelos “pequenos” (os governados e as classes médias e baixas). Esse escrutínio não é apenas uma questão de fiscalização, mas um controle permanente das ações governamentais, para evitar tanto a corrupção quanto a tirania; o conflito político e social não está, de modo algum, ausente dessa perspectiva.
Esse é um exemplo bastante ilustrativo de um dos traços mais importantes do republicanismo neo-romano: o controle permanente dos governantes pelos governados é uma idéia compartilhada por Augusto Comte, por McCormick e pelo principal teórico atual do republicanismo, P. Pettit.
McCormick acentua mais o caráter de confronto do controle do governo pelos “de baixo”; Comte dá maior ênfase à fiscalização e à legitimidade do governo; Pettit poderia ser posto em uma posição intermediária, ao afirmar a fiscalização constante por meio dos mais variados institutos políticos e sociais (tribunais, Ministério Público (no caso brasileiro), ouvidorias, manifestações públicas etc.).
Não queremos com esses comentários sugerir que o republicanismo, em suas várias modalidades e vertentes, resume-se a uma teoria ou a uma engenharia anticorrupção, pois sua(s) proposta(s) é (são) maior(es), abrangendo configurações sociais, princípios de legitimação e arquiteturas institucionais específicas; além disso, como os republicanismos propõem definições do que seja o “bem comum”, há também neles propostas que visam aos fins, não se limitando aos meios. Entretanto, não deixa de ser verdade que, entre as teorias políticas normativas, é o republicanismo o que mais diretamente trata da corrupção.
Há ainda uma questão de fundo que exige análise e que permeia tudo o que se comentou até agora[6]. Poderíamos chamar essa questão de “problema da natureza humana” (embora a expressão “natureza humana” seja um tanto ambígua e esteja sujeita a várias contestações): afinal de contas, é possível eliminar a corrupção? De modo mais profundo, o ser humano é bom ou mal, é corrupto (ou corruptível) por natureza?
Entre as concepções que Hobbes, Locke e Rousseau tinham do ser humano, ficamos com a de Augusto Comte: em vez de um homem por natureza mal ou bom, o ser humano possui pendores, ou “instintos”, egoístas e altruístas, ou seja, voltados para o próprio indivíduo (ou grupo) ou para os demais; além disso, há a coragem, a firmeza e a prudência. Em cada meio social os indivíduos são educados e socializados de acordo com alguns princípios e em algumas práticas; alguns meios são mais propícios à corrupção e outros menos; alguns indivíduos têm maior firmeza para evitar ou resistir à corrupção e outros, menos. Dessa forma – reforçamos –, a corrupção é um problema tanto moral quanto institucional e societal. Ainda assim, é forçoso reconhecermos: sempre haverá quem deseje obter alguns resultados específicos por fora ou acima da lei. Uma sociedade completamente virtuosa não é possível, ainda que seja desejável: a corrupção é inextinguível. Ainda assim, isso não equivale a afirmar que ela é um mal necessário ou que devamos aceitá-la ou conviver com ela: ela deve ser combatida e evitada, mas sem a ilusão de que o ser humano deixará de ser, algum dia, humano[7].

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁCICAS
BIGNOTTO, N. 2001. Origens do republicanismo moderno. Belo Horizonte: UFMG.
COMTE, A. 1957. A General View of Positivism. New York: R. Speller.
MAQUIAVEL, N. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: M. Fontes.
MCCORMICK, J. P. 2003. Machiavelli against Republicanism: On the Cambridge School’s “Guicciardinian Moments”. Political Theory, London, v. 31, n. 5, p. 615-643, Oct.
PETTIT, P. 1997. Republicanism: A Theory of Freedom and Government. Oxford: Oxford University.
SKINNER, Q. 1997. A liberdade antes do liberalismo. São Paulo: UNESP.



[1] Embora este texto seja de minha inteira e exclusiva responsabilidade, ele não seria possível sem as discussões que o Núcleo de Estudos em Pensamento Político da Universidade Federal de Santa Catarina (NEPP-UFSC) realiza; também não seria possível sem a bolsa de estudos concedida pelo CNPq.
[2] Concentramo-nos aí na corrupção que atinge o Estado, mas é importante notar que ela não existe ou ocorre apenas no âmbito estatal. Não apenas a corrupção tem uma dimensão societal como também é possível determinarmos processos de corrupção estritamente societais. No que se refere ao Brasil, não é descabido perceber no “jeitinho” uma forma de corrupção.
[3] É claro que os dois níveis que sugerirmos e as várias práticas que identificamos (ainda que de modo sumário) permitem considerar a constituição de uma tipologia da corrupção.
[4] Entram nessa categoria não apenas o moralismo anticorrupção como também os discursos que apelam para políticas de tolerância zero em questões de segurança.
[5] Basta pensarmos nas propostas de Lênin para desestabilizar os “regimes burgueses” e cimentar o caminho para as revoluções bolcheviques – cujas influências chegaram ao Brasil (de que Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra e vários esquerdistas, desde a década de 1930, são exemplos).
[6] Agradeço ao amigo Tiago Losso pela proposição desse tema, tão central aqui.
[7] Talvez a melhor forma de ilustrar o combate à corrupção seja por meio de uma curva assintótica: à medida que o combate à corrupção aumenta e avança, ela diminui; ainda assim, por mais que a curva (da corrupção) aproxime-se do zero, ela nunca alcança o valor nulo, sempre restando algum resíduo.